domingo, 28 de outubro de 2012

Morte anunciada

* Por Edmundo Pacheco

O barulho infernal do silêncio é perturbador numa madrugada sem sono. A escuridão fere os olhos. O colchão incomoda. O travesseiro se agiganta, espesso, duro. As cobertas se avolumam e se esvaem. Nenhum lado da cama parece confortável o bastante para que se possa dormir.

Era a décima-quarta noite que Robert passava assim. Virando-se de um lado a outro e torcendo para que, na próxima vez que abrisse os olhos para olhar o relógio, já fosse hora de se levantar. Ou, que Ann acordasse para lhe dividir a angústia.

Nos primeiros dias e noites, haviam escrito furiosamente... Agora só lhe restava esperar e rezar para que a noite terminasse.

Virou-se, impaciente, de um lado a outro, por mais alguns minutos... Ou teriam sido horas? Difícil ter certeza. Lá fora, nenhum som. Tentou divisar o que lhe pareceu ser um cachorro latindo. Imaginou se não havia lhe chegado a hora. Resolveu ir verificar, por medida de precaução. E para tentar afastar o silêncio perturbador da madrugada.

Levantou-se, trôpego, no escuro. Tentou encontrar os chinelos que, tinha certeza, havia deixado aos pés da cama... Nada. Foi descalço mesmo. Caminhou pelo longo corredor que o levaria à sala e sentiu-se aliviado quando pôde ver alguma claridade.

A noite estava... Estava... Linda? O luar iluminava toda a região. Dava pra ver o mar abaixo do penhasco em que estava sua casa. A noite estava... Esplendorosa. A Lua, linda, enorme, brilhante. Poder-se-ia namorar. Compor frases belas. “É, a noite estava translumbrante", pensou. Para casais enamorados, talvez. Mas não para um velho repórter sentenciado à morte.

Ficou ali por alguns minutos, com os olhos entrecerrados, tentando ver se algo se movia. Tentou adivinhar se eles viriam. Por onde? A enorme casa, construída no topo da montanha, de frente pro mar e costas para a cidadezinha de veraneio, era agora sua fortaleza. Expugnável, supunha. Seu último reduto. Era ali, naquele país de língua e costumes estranhos, que Robert Altmann planejara passar seus últimos dias. Só não imaginara que estivessem tão próximos. Agora, o refúgio estava se transformando no túmulo daquele que foi, por vários anos, considerado um dos maiores jornalistas americanos.

Nas últimas semanas, era o homem mais procurado da América. Por isto, voara para seu refúgio...O que ele sabia, deveria ser compartilhado com a humanidade. E quando o fizesse, pelos séculos e séculos futuros, enquanto existisse um ser vivo pensante sobre a face do planeta, capaz de compreender o passado, seu país seria o mais odiado de toda a história das civilizações. Os homens que construíram sua história, hoje heróis, fariam Hitler parecer amador. Teriam sido condenados à morte mil vezes, se mil vidas tivessem. Identificados como a própria figura da morte, se a morte pudesse ser traduzida rostos e nomes.

Um arrepio lhe percorreu a espinha ao pensar em sua sina. Ele sabia!.. Tinha provas... Tinha a história toda escrita. E pretendia publicá-la, a que custo fosse... Isto, se sobrevivesse àquela madrugada secular e infernal...

Virou-se, rapidamente, para a direita, sem descolar o nariz da vidraça. Pareceu-lhe ter ouvido algum barulho vindo das montanhas. Teria visto um vulto? Pensou em ir até a porta, abri-la, caminhar sob a luz do luar. Deixar seus pés se molharem na relva. Enfrentar o que houvesse lá fora. Aquiesceu-se. Fosse qual fosse seu destino, terminaria ali dentro.

Um outro barulho, agora mais próximo, fez seu coração gelar e disparar. Parecia que explodiria. Ficou imóvel. Congelado. Com o rosto ainda colado à vidraça. Lá fora, a noite estava... Tranqüila? Não havia vento, nuvens, nada. Parecia uma fotografia estratificada, em preto e branco. Mas aqui dentro alguém... Movia-se?... Podia senti-lo. A respiração contida, certamente de alguém bem treinado, capaz de caminhar no escuro, com paciência e delicadeza. Um gato, frio, assassino, de olhos escuros, treinado à exaustão e capaz de enfrentar a mata das montanhas, à noite. Talvez tivesse escalado o lado da pedra, contrário à casa. Subira pelas paredes lisas e escorregadias pela umidade constante. Rastejara, sorrateiro, até a casa, abrira uma janela, talvez uma porta e entrara, à procura de sua vítima.

Robert sentia-se desprotegido. O assassino já estava com ele... Ficou a imaginar, naqueles segundos fatídicos que certamente o separavam da morte, como seria este homem. Quem seria? Teria os olhos negros e frios que ele imaginou? Seria forte, atlético, capaz de lhe arrancar a cabeça com um só golpe? Seria um atirador exímio, capaz de lhe varar o coração com um só tiro, mesmo na escuridão? Teria família? Mulher? Filhos? Quem seria seu algoz? Quem teria sido capaz de encontrá-lo e vinha agora ali, de arma em punho, rastejando, pronto para livrar o mundo do mais odiento dos monstros?

A noite estava... Apoclética! Apoclética? “Haveria tal palavra?”, perguntou-se. Não se lembrava de tê-la ouvido. Não, por certo não existia. Como era capaz de se preocupar com a gramática, escolher palavras, definições para noite, quando seu assassino rastejava a centímetros de suas costas? Sentiu o suor escorrer pela face. Lembrou-se de que havia esquecido os óculos. Morreria sem seus óculos. Que diferença faria? Pensou em descolar o nariz da vidraça e virar-se para encarar o assassino. Não teve coragem. Olhou para a grande roda branca que sua respiração ofegante havia produzido no vidro... Começou a imaginar as manchetes dos matutinos: "Repórter é morto a facadas numa casa de campo". Não, não: "Jornalista é morto a tiros dentro de casa". Ou melhor: "Mistério envolve morte de Jornalista da Capital".

Tiros, facadas, golpes mortais... Mil vezes, durante aqueles segundo derradeiros, sentiu a lâmina fria rasgando o pijama, atravessando a pele das costas, varando-lhe o coração. O sangue jorrando; a mancha no tapete. O assassino fugindo na escuridão com um sorriso nos lábios, feliz pela missão cumprida. Ou então... Tiros! Fazendo seu corpo pular de encontro à parede. Suas mão se agarrando à cortina, os vidros se estilhaçando. Ann acordando, assustada, a tempo de vê-lo afogar-se em seu próprio sangue...

Uma mão tocou-lhe o ombro... Fria, assassina... Quase desmaiou. O coração, agora tinha certeza, explodiria antes que pudesse ficar cara a cara com seu algoz. Por que teria que encará-lo? Por que não terminava logo com aquela agonia? Sentiu-se sendo puxado pelo ombro, enquanto um frio infernal lhe percorria a espinha. Tinha certeza, agora, de que seriam facadas. Se fossem tiros não haveria necessidade de tanta proximidade. As pernas bambearam. Lutou por permanecer em pé, morrer com dignidade. O suor lhe inundava o rosto, escorria nos olhos, provocando ardência. Tentou olhar mais uma vez para a noite. Vê-la pela última vez. “Onde a lâmina penetraria primeiro?”, perguntou-se pela última vez.

A noite estava... Pavorosa! Antes de sentir o golpe final, ouviu o que lhe pareceu ser uma voz... Calma. Própria dos assassinos. Sussurrante. O que teria a lhe falar? Leria sua sentença de morte, enquanto o executava? A mão pressionou seu ombro... Ficou tentado a virar-se, mas de onde tiraria coragem? Preferiu continuar com o rosto colado na vidraça.

Lá fora, a noite estava... Mortal! Podia-se ver a morte caminhando na escuridão. Correndo pela relva, sorridente e saltitante... Ali, atrás, o assassino sussurrava ainda mais próximo. Era, com certeza, seu último instante de vida.

-Amor, vem dormir, vem –, disse-lhe o algoz. Pôde ainda sentir a dor atravessando-lhe o peito. O sangue se congelando. Os olhos turvos...

Decididamente, a noite estava... Negra! Negra como a morte que corria lá fora ao luar, zombando de Robert.

*Jornalista, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR

Nenhum comentário:

Postar um comentário