domingo, 23 de setembro de 2012

Tinhoso – VIII

* Por Fernando Barreto

Capítulo 8- O coiso!!!

A visita a Bernardo foi deixada de lado naquele dia, porque Gladis veio visitá-los no apartamento, trazendo cervejas em lata e sacos de pipoca de microondas. Elvis sentiu-se satisfeito pelo adiamento da visita que seria feita a Bernardo na companhia de Miro, mas nos dias seguintes continuou visitando sozinho o rapaz.

Gastava seus dias comprando livros e discos de vinil, como sempre, e usava o resto de seu tempo levando os cadernos de anotações de Miro à lan house e tentando trabalhar num texto sobre o qual pouco falava a Miro. Esse por sua vez dedicava-se cada vez menos à literatura. É bem verdade que sempre fazia anotações, acumulava o ‘sumo’ para a composição de seu prometido romance, mas essas anotações eram feitas em pedaços de papel soltos, que ficavam debaixo dos copos de café e cerveja que bebiam em casa, enquanto a parte organizada desses manuscritos era aproveitada somente por Elvis. Não se podia culpá-lo pela indolência de Miro, que no fundo sentia-se honrado pela forma com a qual Elvis tratava de aproveitar seus cadernos para tentar sozinho tornar-se escritor.

Os escritos de Elvis mais pareciam diários organizados do que propriamente literatura. Sentia receio de tentar arriscar desenvolver um estilo próprio e ser acusado de imitar algum autor que ele nunca tenha lido. Estava fazendo todo o possível para dedicar o máximo de tempo às suas leituras. Isso o deixava cada vez mais fascinado pela literatura, e cada vez mais confuso no que diz respeito a organizar as idéias anotadas desenvolvendo um estilo próprio.

Miro considerava (e não sem razão!) que o trabalho do escritor não se resumia ao tempo em que este passava produzindo o texto propriamente dito. Era preciso viver, fazer anotações, ler, para depois entregar-se ao trabalho mais duro e solitário de ordenar esse material colhido e formatá-lo da melhor maneira possível. A amizade de Elvis (que tentava encorajá-lo a finalizar suas histórias ) ironicamente o fez distanciar-se dessa parte de produção final do textos. Elvis era um cara divertido, e que inclusive servia de inspiração para que Miro criasse certos personagens, que se não eram o próprio Elvis em sua totalidade, ao menos tinham parte dele em suas personalidades .

Elvis teve acesso aos contos que Miro produziu anteriormente e ao que parecia nunca identificou em nenhuma das personagens nada que o fizesse constatar que ele havia sido fonte de inspiração para esses trabalhos. Em parte desistiu de contar com a ajuda de Miro para que este lhe ensinasse truques literários, e também passou a seguir a orientação de que nada havia a ser ensinado. Era preciso apenas ler e praticar a escrita, além de tomar cuidado para não se tornar um intelectual de gabinete, que deixa de viver para dedicar-se exclusivamente ao trabalho de esculpir textos. Para Miro parecia ser um sacrifício grande demais mandar uma visita embora para que pudesse se dedicar a esse trabalho, já que tinha a vida como prioridade em relação à arte.

O anseio por conseguir finalizar um trabalho autoral fez com que Elvis resolvesse investir tempo na preparação de um conto, ainda que esse fosse entregue a Miro para que no final das contas, o resultado fosse uma colaboração, uma obra escrita a quatro mãos. Pensava que com uma parte significativa do trabalho já razoavelmente estruturada, Miro finalmente voltasse ao trabalho duro e desse um acabamento digno ao texto, usando os tais truques literários que Elvis achava que algumas pessoas conheciam, e que por alguma razão que jamais iria compreender, não passavam adiante.

Foram necessárias quatro semanas para que um esboço com 15 mil palavras fosse produzido por Elvis, contando as aventuras e desventuras pelas quais passou desde a infância. Tudo sem pontuação e sem parágrafos. Uma vez que Miro perdeu o interesse pelo projeto em pouquíssimos dias, voltando a dedicar-se apenas a colecionar discos de vinil, então Elvis decidiu dar também um direcionamento musical ao projeto, e não mais apenas literário.

A parte final desses escritos eram sobre Bernardo, já numa fase de debilidade acentuada por causa do ácido, e já era um cara com quem Miro havia perdido completamente o contato, que antes já não era dos mais expressivos, mesmo quando os rapaz trabalhava com os taxistas. A intenção de Elvis era chamar novamente e atenção de Miro ao caso Bernardo, para que os trabalhos literários fossem retomados, pois a dona da pensão em que Bernardo vivia definitivamente nunca desconfiou do que realmente o levou à derrocada final da loucura completa. Além da parte escrita, Elvis registrou as falas e os trejeitos de Bernardo numa câmera de celular. O pobre rapaz continuava nas mesmas condições, repetindo apenas ‘Beerrr - nnnaaarrrr - dooooo, Beerr – nnnaaarrrr - dooo!’, e para que as características que do rapaz antes que ele tomasse ácido não fossem perdidas por falta de registro, Elvis gravou a si mesmo fazendo os movimentos e o jeito que o rapaz falava quando conseguia trabalhar. Decidiu que usaria isso na performance de sua banda. Pensava seriamente em recrutar um baixista para a banda, para que pudesse dedicar-se apenas aos vocais e à parte cênica, fortemente influenciada por Bernardo, antes e depois do ácido.

Numa noite em que assistiria a uma cópia em VHS de uma adaptação do ‘Grande Gatsby’, de Fitzgerald, e pensava em como seria árduo esperar que as latas de cerveja que estava carregando para seu apartamento gelassem, Miro encontrou Elvis diante do espelho que tinham na parte interna da porta do armário embutido da quitinete ensaiando o que seria a tal performance inspirada em Bernardo antes e depois do LSD. Elvis não se assustou com a entrada de Miro, nem ficou constrangido, e nem ao menos tentou disfarçar, e isso foi o que o chocou tanto ou mais do que o resto da cena. Explicou-lhe que se tratava de um misto de ensaio de uma manifestação artística com a adição da necessidade de extravasar uma parte da raiva que sentia com relação à maioria das pessoas, e que não conseguia parar de pensar em como seria sua vida caso conseguisse algum sucesso de público com sua banda. De Bernardo, ele imitava apenas os trejeitos e os olhos virados. Estava maquiado como um integrante de bandas de Black Metal Norueguês, parecendo de fato um ser saído de alguma floresta européia, branco como papel, mas em vez dos cabelos lisos e escorridos característicos daquelas criaturas, usava a peruca de King Buzzo que pertencia a Bernardo.
- Meu intuito não é só a arte pela arte. Sem dúvida quero que ela sirva como válvula de escape para o que sinto com relação à humanidade. Um efeito complementar aos entorpecentes e bebidas, que servem para consertarmos a maneira como nos sentimos com relação ao nosso meio. Eu tive um sonho maravilhoso, e devo admitir que caso consiga colocar em prática a metade do que me lembro desse sonho, aí entraremos para a história da região central da cidade. Lembro de estar encarnando, após o show de estréia da minha banda, o personagem que estou idealizando para liderá-la, e saí sei lá como do local do show materializando-me no apartamento dessa velha filha da puta aí do andar de baixo, e eu estava interpretando o que tinha feito minutos antes no palco, mas ao invés de ter comigo o Valente e o Brito, eu tinha como comparsas o Bernardo e o Pida. Bernardo dessa vez tinha tomado um ácido inteiro e estava ensandecido, e Pida tinha fumado várias pedras e estava inacreditavelmente fora de controle. Nesse sonho eu vi e senti a arte se sobrepor à vida, pois a velha já estava morta, e nós três continuamos a performance por algum tempo, como se na dimensão em que nos encontrávamos não houvesse polícia, pelo menos não do jeito como a conhecemos na vida real. Você entrou e eu estava acrescentando elementos das encenações de Pida e Bernardo à minha. Quero ser os três ao mesmo tempo quando estiver encarnando o ‘COISO’. Quando acordei daquele sonho, me senti confuso, porque na mesma proporção em que senti certo alívio por não ter que me desfazer do cadáver da velha, senti-me mal por saber que aquele encosto ainda existe, e que está aí embaixo com sua vida morta. Preciso retomar os planos para liquidar essa desgraçada– disse Elvis
- Ela sai de casa cada vez menos. Eu acho que é por isso que a filha dela tem aparecido com mais freqüência. A velha se desloca com muita dificuldade para fazer compras. Se você conseguir entrar na casa dela sem que ninguém veja, se um dia ela sair novamente dos limites do sétimo andar, aí você pode providenciar algo – retrucou Miro.
-Sim... Eu nem precisaria fazer a performance completa. Chamaria demais a atenção. É melhor guardar isso para os palcos dos becos onde formos tocar. Se eu entrar lá com o Pida, posso dar umas pedras pra ele e fazer com que ele as fume no armário, então eu vou embora e quando a velha voltar ela morre com o choque. Aí o Pida vai preso ou finalmente morre de overdose e a gente se livra de dois encostos de uma vez só – complementou Elvis.

Leia o nono e último capítulo deste conto na edição de amanhã.

• Escritor.

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