segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Tinhoso – IX

* Por Fernando Barreto

Capítulo 9- All The Best Cowboys Have Chinese Eyes

Um mistério de dois anos se desfez para Miro e Elvis quando de repente descobriram a razão pela qual o chinês que era dono do bar que freqüentavam na Avenida Duque de Caxias conseguia estar atrás do balcão qualquer que fosse o dia ou hora em que algum deles passasse por ali. O detalhe é que esse bar funcionava 24 horas, mas o fato é que eram dois irmãos chineses, gêmeos, que eram os donos, e revezavam-se no comando do estabelecimento. Eram gêmeos tão extraordinariamente idênticos, que muitos dos bêbados que passavam dias e noites ali também não sabiam que se tratava de dois elementos.

Os gêmeos chineses simplesmente NUNCA trabalhavam simultaneamente, e de acordo com testemunhas, era muito raro alguém ver a troca de guarda que faziam. Ambos eram chamados de China pelos clientes. Praticamente não falavam português. Sabiam pronunciar o valor que os freqüentadores deviam ao levantarem-se para sair do bar. Havia uma particularidade naquele bar, que era o fato de, em pleno centro da cidade, os caras venderem doses bastante caprichadas de Ypióca, em copos americanos, por um preço bem abaixo da média. Elvis divertia-se pedindo sempre ao chinês que o atendia para que pronunciasse a palavra Ypióca, e isso os enfurecia. Os chineses também nunca revelavam seus nomes. Elvis tentou de todas as formas fazer com que contassem a ele.

Foi uma velha senhora de tristes olhos azuis, freqüentadora antiga do Bar do China, quem revelou aos dois que não era um só chinês que ficava o tempo todo cuidando do bar. Ela ouviu um comentário de Miro numa ocasião em que o bar estava cheio e eles sentaram-se mais perto dela do que de costume, e então ela riu e contou-lhes a real. Não raro, policiais perguntavam sobre o alvará de funcionamento do bar. Os chineses sempre safavam-se, talvez até mesmo por terem o alvará.
- Ainda me resta outro dilema insolúvel. Realmente não entendo a razão pela qual as pessoas insistiam em me dar bebida, a quantidade que fosse, no período em que eu estava me esforçando para parar de beber, ou para pelo menos manter as coisas sob controle. Às vezes eu atravessava a rua ou dava a volta no quarteirão quando passava perto do Bar do China, ou qualquer bar que abrigasse pessoas que me conheciam, nos dias em que realmente eu queria ou precisava passar sem beber. Nos dias em que eu realmente queria beber, ou nos últimos tempos, depois que voltei a beber com certa regularidade, não aparece um puto de um infeliz para pagar minha bebida. E alguns chegam de surpresa em casa quando tem cerveja na geladeira – disse Miro.
- É o tipo de conspiração ao qual você já deveria estar acostumado. Há outros tipos que são bem mais ingratos e desagradáveis. Basta você deixar de dar uma de compreensivo e mandar as visitas comprarem mais cerveja – observou Elvis.
- Lembra daquele Natal que passamos no Bar do China? – perguntou Miro.
-Sim, aquela senhora de olhos azuis estava lá, como sempre. Aquilo foi comovente pra mim. Eu poderia esperar de mim ou de você que passássemos um Natal no bar de um chinês que não fecha nunca. Mas aquela senhora merecia ter uma boa família. Eu sempre achei que nada poderia ser pior que uma família. Se a família é o núcleo e a célula essencial que dá forma à sociedade, então uma família não pode ser e não é algo bom. Mas eu sentia que aquela senhora gostaria de estar numa casa aconchegante cortando uma fatia de peru para seu netinho, e ela certamente teria uma garrafa de conhaque muquiada para dar uns tragos escondida dos outros familiares. Aí está o ponto: os familiares tornam-se um problema em um momento ou em outro, por uma razão ou por outra. Isso já foi discutido pelo Sartre e pela Simone de Beauvoir, na cama, na cozinha da casa deles, e o que deve ter rolado de café e tabaco nessas discussões ao longo dos anos, ah, isso deve ter sido até engraçado, e se as conclusões as quais eles chegaram não resolveu nossos dilemas, então podemos ficar tranqüilos e esquecer esses assuntos tão logo ficarmos com o saco cheio. O fato é que nós sim merecíamos aqueles momentos com os vagabundos indigentes que não saem do balcão do China nem na noite de Natal. Para pessoas como eu e você, isso é bem menos saudosista e melancólico do que ver velhos tios vestindo suéteres, nos dando uma nota de 50 quando já estão mamados – comentou Elvis;
- É que a sua família deve ser burguesa. Você deve ser um fidalgo. Deve realmente ter uns tios com as grandes barrigas pra fora, bêbados e falando as maiores grosserias, com suas carteiras recheadas de notas para serem distribuídas para sobrinhos que penteiam o cabelo e tem cara de bons moços – tornou Miro.
- Você que é um burguesão. É um hippie metido a alternativo e oriundo da classe média paulistana. Eu conheci aquele amigo da sua família que é político. Aquele deve ser um picareta de marca maior – retrucou Elvis.
- Ele é vereador. Um pequeno político, se comparado aos que têm poder mesmo. Ele é poderoso sob um outro ponto de vista, que é justamente o nosso. Tem um emprego rentável e não enchem tanto o saco. O que importa são as garrafas de uísque que ele pode beber, a renda fixa garantida e essas merdas burguesas todas. Ele não era meu parente. Na família dele, ele é o patrão do Natal – disse Miro.
- Ah, não há dúvida que a gente vê quem é quem numa família na noite de Natal. Sempre tem mesmo o patrão do Natal nas famílias burguesas. Naquele Natal do Bar do China, seus parentes devem ter ouvido o patrão do Natal de vocês contando velhas histórias natalinas, de antepassados que deviam engravidar empregadas e escravas, querendo mostrar que hoje as coisas são diferentes e que hoje há muito mais dignidade. Enquanto isso você bebia Dreher e Nova Schin naquele bar imundo – lembrou Elvis;
- O combo! Dheher e Schin! O patrão do Natal na minha família é meu avô. Eu não poderia deixar que ele ficasse magoado por eu ter me tornado algo tão distante do que ele imaginou. Só no Natal isso acontece. No resto do ano ele não se sente decepcionado com meu destino. Eu também não queria ouvi-lo contar as mesmas histórias, e é só no Natal que ele se enche de vinho, de modo que optei por ficar vendo o China lavando copos atrás do balcão ao invés de vê-lo na cabeceira da mesa, bêbado de vinho e com a camisa suja de molho, com minha avó o importunando – respondeu Miro.
- Antigamente você parecia ficar mais constrangido com essas coisas sobre as quais estamos falando = disse Elvis.
- Hoje eu chego até a pensar em entrar para a política. Quer dizer, não consigo mais desprezar essa idéia. Já não acho que seja algo tão repugnante. É como viver no Centro. É bom desde que haja uma adaptação adequada. Você faz o que precisa fazer na rua e depois fecha a porta de casa e uma vez ali dentro não importa qual é o bairro em que você está. Basta escolher um lugar em que seja possível deixar os problemas do lado de fora. Aqui isso é plenamente viável. Não envolver-se com política só por vergonha de estar no meio dos tubarões é estupidez. Quando você entra no elevador do seu prédio e puxa a porta por dentro para que não dê tempo de ninguém chegar e subir com você... Isso também é corrupção. Queria ter tempo para aproveitar mais a reclusão. Gosto de ficar em casa. Uma vez sonhei que havia aceitado uma candidatura a vereador por um partido rico de direita, que ajudaria de verdade na minha eleição. Se eleito, talvez nem mesmo mudasse do Centro. Eu não tenho mais pena do povo. Depois de acumular uma grana para viver de renda, poderia ir dormir só de manhã, todos os dias, quando todos estivessem saindo para trabalhar. Quero ficar deitado vendo noticiários mostrando ônibus lotados, aquele povo sofrido e amargurado, chegando ao trabalho esgotado. Aqui no Centro poderia ver isso pela janela. A massa acostuma-se às piores condições possíveis de transporte para ir ao trabalho. Acostumam-se ao convívio doentio e diário com milhares e milhares de humanos anônimos espremidos, por isso o comportamento dessa gente não tem limites no que diz respeito a enxergar que há pessoas reservadas e que dão o valor que a privacidade tem mesmo que ter. Talvez devêssemos supor que o mau gosto e a burrice das pessoas é anterior à falta de alternativas com que se deparam ao longo da vida, e essa precariedade do transporte público é apenas um exemplo de situação com a qual também temos contato. Sofrer diariamente com condução lotada e precária é algo que destroça a qualidade de vida do citadino médio. Os mais favorecidos tem meios de amenizar problemas com o deslocamento dentro da cidade – comentou Miro.

O Bar do China ainda reservaria uma surpresa a Miro e a Elvis, que encontraram ninguém menos que a Irmã Nóia lavando o chão do estabelecimento numa manhã em que ambos voltavam do Toninho’s, onde Miro conferiu a apresentação dos Main Drags pela primeira vez, depois de passar semana s ouvindo Elvis falar deles. Miro não conhecia a Irmã Nóia em pessoa, apenas ouvia falar dela por Elvis e pelos vizinhos, principalmente pela velha Mazumi.

Parecia então que a velha Cracolândia voltaria a ter dias emocionantes, com a volta de Pida e da Irmã Nóia. Miro ainda não vivia no Centro quando essas pessoas aprontavam pelas ruas da região. Havia um porteiro em seu prédio, Jairzinho, um mulato divertido que já vendeu muito crack na Rua Aurora antes de empregar-se no edifício. Não fumava das suas pedras, era um profissional sério. Ele investia no potencial comercial do vício entre os jovens. Morou num hotel desgraçadamente ordinário na Barão de Limeira que abrigava traficantes e nóias e que foi lacrado pela polícia após uma operação de combate ao tráfico desenfreado. Era usuário apenas de maconha, que carregava em pequenas quantidades, para consumo próprio. Viu o Trio Calafrio na intimidade dos quartos de hotel da Cracolândia tramando coisas tenebrosas antes de ganharem as ruas. Viu a derrocada da Irmã Nóia desde o começo.

A imagem que Miro tinha da Irmã Nóia em seu imaginário não correspondia plenamente ao que viu naquela manhã. Antes de Elvis reconhecê-la e chamar a atenção de Miro para aquilo, estavam planejando voltar para o apartamento e comer pães com manteiga na chapa, pois Gladis tinha deixado um pacote de pão de forma e uma manteiga da boa para que tivessem algo para comer de manhã enquanto tomavam leite roubado. Os planos mudaram e juntando suas moedas, que àquela altura reduziam-se a migalhas, atravessaram a rua para entrar no China e comprar um cigarro solto para cada um e averiguar o que havia acontecido com a Irmã Nóia desde que todos por ali a perderam de vista.

A satisfação da garota ao ver Elvis aproximando-se surpreendeu Miro, que pensava que entre eles não havia qualquer tipo de proximidade que fosse além de andarem eventualmente pelas mesmas ruas. De fato Elvis já andava pelo centro para comprar e vender seus discos e livros. Nesses tempos mais remotos, antes da mudança de Miro para o centro, Elvis vivia em Taboão da Serra com sua mãe, e ao conhecer Miro constataram que tinham uma amiga em comum que morava em Itapecerica da Serra e que fazia festas em sua casa que duravam dias. Ali Elvis contava histórias sobre os nóias e as algazarras da Boca do Lixo, o que motivou Miro a pedir a seu pai que não alugasse novamente o apartamento para que ele mesmo pudesse viver ali.

Depois que atravessaram a rua e entraram no bar do China, Elvis apresentou um ao outro. Miro conhecia superficialmente a história de Irmã Nóia, enquanto esta nunca tinha ouvido falar dele, o que é perfeitamente natural. Mas a moça sabia que Elvis tinha falado dela para Miro. Sabia disso porque Miro foi apresentado a ela como ‘um amigo que mora no prédio da velha Masumi’. As faculdades mentais de Nóia ainda permitiam-lhe concluir que Miro foi morar ali quando ela já não estava mais vivendo nem trabalhando na Cracolândia. Recorreu por alguns segundos à sua memória defasada antes de ter para si que realmente não o tinha conhecido.

Dadas as circunstâncias de sua vida recente, a aparência da garota era razoavelmente boa. Uma boliviana de 25 anos que ainda seria bonita se não tivesse sofrido duros golpes da vida. Miro não se lembrava do nome da garota, só a conhecia pelo apelido, que era usado por terceiros para referir-se a ela em sua ausência. Não sabia sequer se ela tinha conhecimento do apelido de ‘Irmã Nóia’. Sabendo ou não, era algo ofensivo, e a moça parecia estar afastada das pedras há algum tempo. Naqueles quarteirões do Centro que ficaram esquecidos por décadas pela administração pública, os vizinhos e os funcionários do prédio de Miro funcionavam como uma rádio local que ficava no ar por 24 horas e que informavam sobre tudo o que havia de tenebroso e decadente sobre antigos e novos moradores. Miro conhecia Irmã Nóia somente pelas informações maldosas que vinham dessa gentalha.

Quando estavam se dirigindo a ela, Elvis não sabia direito o que faria caso fosse necessário chamá-la pelo nome, e não queria cometer a gafe de chamá-la pelo apelido sem querer. Já não dava mais tempo também de perguntar a Miro como deveriam chamá-la.
- Miro e eu estávamos voltando de uma espelunca indie onde fomos assistir a uma banda que a gente gosta. Caralho, além dos Main Drags, assistimos a Cantora Tita, que chocou todo mundo ao fim do show, porque ela supostamente era uma cadeirante que foi carregada por dois caras até uma cadeira posicionada no meio do palco, onde foi deixada e cantou belas e tristes canções folk rock, que remetiam a Neil Young, Fairport Convention, Bob Dylan, Joni Mitchell e outros artistas do gênero, emocionando a platéia, que fazia uma puta zona e silenciou sem que ela precisasse pedir. O fato de ela parecer uma cadeirante e bonita, com cabelos loiros com cachinhos que escorriam até os ombros, fez com que a maioria das pessoas ficasse quieta e ouvisse as músicas da jovem deficiente. Ao final da última música, ela simplesmente levantou-se, agradeceu o silêncio, sacou de dentro de seu sobretudo uma pequena garrafa de uma bebida não identificável, deu uma grande golada, sorriu pela primeira vez e foi andando para trás do palco carregando seu violão. Foi brilhante.

- Legal... Me chame da próxima vez. Seu cabelo cresceu, seu puto! Está com alguma banda? – Irmã Nóia perguntou a Elvis
- Sim, mas não com esse cara aqui ao meu lado. Ele é um artista com grande potencial, mas tem se dedicado à literatura, não é Miro? – disse Elvis.
- É verdade. Na literatura não há companheiros de trabalho. Não é como numa banda, onde outros caras têm que ter suas opiniões levadas em conta – disse Miro.
- Pois é, mas você pode ser um artista solo – disse Elvis.
- Um artista solo pode se apresentar sozinho no palco, realmente, o que é uma responsabilidade enorme, ter que preencher vazios que poderiam ser preenchidos por outros músicos. Pode tocar todos os instrumentos numa gravação. E há artistas solo que têm banda de apoio, mas isso eu não faria. Teria que falar pra cada um dos caras: ‘Olhe, meu filho, eu quero que você toque assim, toque aquela parte de novo, até eu mandar parar....’; isso sem falar nos artistas solo que roubam idéias dos subordinados da banda de apoio. Se fosse pra ser assim, preferia ter uma banda ao invés de ser artista solo. Prefiro levar em conta a opinião dos outros caras e dar um nome à banda do que ter banda de apoio e dar ordens e botar mala de patrão – disse Miro.
- Sim, pode apostar que ter uma banda é bem mais legal que ser artista solo. Podem haver atritos criativos, o que é saudável para a produção musical. Evidentemente isso fere o ego de algum integrante que for mais chato. O Police era legal e o Sting na carreira solo é muito chato, e provavelmente isso acontece porque ele faz o que quer em seus discos, porque é ele quem assina. Não há a concorrência com os outros caras, que também escrevem músicas. Isso é um fator preponderante para a qualidade do trabalho, pelo menos quando se trata de Rock, porque sempre me pareceu que a coletividade é um ingrediente importante para a linguagem do gênero – comentou Elvis por sua vez.

A conversa entre os três durou cerca de vinte minutos, até Irmã Nóia contar a Elvis e Miro que estava morando num hotel realmente barato na Rua Timbiras, onde ajudava na faxina, além de estar também fazendo serviços gerais no Bar do China logo cedo, quando a lei veta o comércio de bebidas alcoólicas e começam a chegar os trabalhadores que querem tomar café com leite e pão com manteiga na chapa.

O ressurgimento da Irmã Nóia na Cracolândia fez com que crescesse na mente de Elvis a idéia de dar um fim definitivo à velha Masumi. Nunca havia matado ninguém e àquela altura seu ódio estava quase transbordando. Seria melhor que fizesse algo minimamente planejado para eliminar alguém que realmente merecesse esse destino do que ter um surto em plena rua e matar um infeliz qualquer que esbarrasse nele e derrubasse sua cerveja.

Além da Irmã Nóia ser logo de cara uma potencial suspeita no caso da velha ser assassinada, a garota carregava seqüelas da época de consumo descontrolado de crack, o que poderia ajudar a incriminá-la. A ação criminosa poderia ser executada em parceria, já que Irmã Nóia também guardava rancor e ódio de Masumi. Com um serviço minimamente decente, a velha poderia ser dada como morta por causas naturais. Seria preciso fazer um tipo de abordagem à Irmã Nóia de modo que ELA propusesse por conta própria que matassem Masumi. Elvis apenas a induziria a isso com algum comentário sobre a velha e sobre os sentimentos ruins que tinham sobre ela.

Na noite seguinte à conversa que tiveram, Elvis foi novamente ao Toninho’s para tomar umas cervejas, planejando encontrar Irmã Nóia na manhã seguinte, quando estivesse voltando para a casa de Miro, que já era praticamente sua casa também, e ela já estivesse esfregando o chão imundo do Bar do China.

É curioso o fato de Miro sofrer mais com a existência da velha Masumi do que Elvis. Mas o instinto assassino do primeiro parecia menos agressivo que o do segundo. As parcerias que Elvis planejava buscar para essa empreitada não incluíam Miro, pois este provavelmente argumentaria que por ser proprietário de um apartamento no mesmo prédio do crime sua situação poderia ficar complicada.

Elvis considerava que o ideal fosse que Miro também entendesse que a velha teria morrido de causas naturais. De qualquer forma, os transtornos que a velha causava a Miro potencializavam o ódio que Elvis sentia por ela, pois ficava ressentido pelo amigo. Gostava de ter esse motivo extra para que o crime seja justificado. Elvis adorava pronunciar a palavra ‘crime’, porque até então tinha cometido apenas delitos leves, e isso era motivo de satisfação para ele, que gostava dos delitos, e gostava que estes fossem leves e sem tantas conseqüências. Em sua cabeça, já estava crescido o bastante para arriscar-se um pouco mais, e sentir-se satisfeito por ter ido além de não fazer filhos, não ajudar a foder com o planeta produzindo mais humanos, e ainda eliminando uma humana tosca.

De fato a Irmã Nóia estava trabalhando na limpeza do chão do Bar do China na manhã seguinte à noitada de Elvis no Toninho’s, que dessa vez foi até lá sozinho, para que encontrasse Irmã Nóia sem que Miro estivesse por perto, e assim pudesse tramar a ação criminosa contra a velha Masumi.
- Bom dia, minha filha!!! Quem diria... Ao que parece, está recuperada das pedras, trabalhando logo cedo... – cumprimentou Elvis.
- Fala, Elvis! Você não trabalha? Só o vejo dando rolê no centro e fumando esses cigarros de pedreiro... – respondeu Irmã Nóia.
- Trabalho com cultura. Sou livreiro e disqueiro. Poderia perfeitamente ser pedreiro também, mas compro e revendo livros e discos de vinil e isso é o bastante para que me sustente de um modo que considero digno. Eu leio os livros e ouço os discos antes de revendê-los, de modo que sou um comerciante culto e que ajuda as pessoas a melhorarem como humanos. Eu vendo esses artigos finos para pessoas que também são cultas, ou que querem se tornar cultas, e vivo satisfeito com isso, pois faço minha parte para tentar tornar esse mundo ordinário um pouco mais suportável. Claro que há altos e baixos nessa minha nobre profissão, mas vale muito a pena, por várias razões, principalmente porque posso andar pelo Centro e fazer meus próprios horários – justificou Elvis.
- Sim, você é de uma categoria incrível mesmo= concordou Irmã Nóia.
- Não seja irônica! Você pode até achar que eu não sou o sujeito mais exemplar da história da humanidade, mas há de convir que ajo pelo menos com o mínimo de classe e deveria ser reconhecido por isso. Estou dividindo apartamento com meu camarada Miro, ah , esse sim é um lord, um cara bem acima da média... E ele realmente sofre por ser um cara legal, porque as pessoas abusam. Aquela velha filha da puta para a qual você trabalhava perturba o Miro diariamente – Elvis retrucou.
- Foi a pior fase da minha vida. Eu espero que você não tenha comentado com seu amigo sobre o que aconteceu comigo, mas foi aquela velha desgraçada a culpada pelo meu deslize na vida... Afundei na droga por causa do pesadelo que era minha vida naquela quitinete imunda, naquele pombal que era o prédio em que ela morava = desabafou Irmã Nóia.
- Olha o respeito, minha filha! Eu moro lá também. Quer dizer, quem mora é meu camarada Miro. Estou dividindo o apartamento eventualmente – advertiu Elvis.
- Vocês são dois burgueses. Não quero ofender ninguém, mas vocês sabem disso. São dois fidalgos metidos nesse centro imundo apenas porque querem, gostam de ficar perto dessa marginalidade rasa. Acham bonito. Na hora que a coisa azeda aqui na rua, vocês vão pro apartamento e tomam cerveja e ouvem Rock acusou Irmã Nóia.
- Como era sua vida na época que trabalhava pra velha? – indagou Elvis.
- Porra!!! Você não acabou de falar que ela aterroriza seu amigo? Isso porque ele deve passar pelo sétimo rapidamente... Imagine o que é limpar aquilo, ajudar a velha a tomar banho, fazer comida, ouvi-la todo dia... – desabafou Irmã Nóia.
- Eu a teria matado. Teria feito algo para parecer que ela morreu de velhice mesmo – disse Elvis, como que num comentário casual.
- A idéia não é má. Aliás, eu tenho a chave do apartamento da velha até hoje. Sabia que um dia poderia ter alguma serventia – informou Irmã Nóia.
- Podemos entrar lá numa madrugada. Esse tipo de gente nos mata aos poucos. Já esteve viva por muito tempo. Na verdade sempre teve uma vida morta, mas ela perturba sugeriu Elvis.
- Se a matarmos podemos trazê-la aqui pro Bar do China. Eles me arrumaram esse emprego porque descobri que eles já usaram carne humana, especialmente o fígado, para alguns pratos. Ajuda a manter esses bêbados bebendo sem desmaiarem, sem entrarem em coma alcoólico. São receitas vendidas quase de graça, e os chinas usam o fato de não saberem português para que não tenham que explicar qual o tipo de carne usam. Geralmente são esses salgados aí do balcão que são feitos com ingredientes que você não acreditaria, não só carne humana. Em troca do meu silêncio me deram o emprego. Nem sei como estaria se ainda estivesse desempregada – revelou Irmã Nóia.
- Os chinas vendem fígado humano? – perguntou Elvis, sem esconder sua surpresa.
- Sim, e as pessoas ainda ficam chocadas quando se fala que chineses comem carne de cachorro. A cozinha do bar dos chinas é algo inacreditável. Você só poderia conceber aquilo se visse de perto. Eu fico vendo os clientes comendo com entusiasmo grandes bifes de fígado com cebola, e geralmente pedem fígado depois da bebedeira, quando estão hipoglicêmicos de fome, e devoram com uma satisfação incrível – revelou Irmã Nóia.
- Eu adoro fígado, mas nunca comi fígado humano. Se a gente levar o fígado da velha pros chinas, eu quero um bife. O dela eu faria questão de comer. Deve ser muito bom se for preparado com caldo knorr. Imagine só o ódio com o qual eles vão fazer a receita, se levarmos em conta a rivalidade entre Japão e China...- observou Elvis.
- Não é só por causa do fígado humano que a cozinha dos chinas é bizarra. É muito suja também. Uma vez por semana eles mandam eu limpar a camada de gordura dos azulejos e isso me faz ter saudade da casa da velha Masumi. Fica uma camada de um tom muito peculiar de amarelo, com umas gotas grossas escorrendo... A diferença entre meu trampo atual e o antigo é que eu gosto de bares, deixo uma garrafa de conhaque ali à disposição e enfrento a dureza da vida com um pouco mais de facilidade – explicou Irmã Nóia.
- Você ainda fuma pedra? Dá umas pauladas de vez em quando? – perguntou Elvis.
- Parei com as pedras. Por quê? – retrucou Irmã Nóia desconfiadas.
- Só perguntei por perguntar. Você parece mesmo ter parado. Está com uma boa aparência.
- Eu ia morrer. Eu acordava jogada na calçada e as pessoas daqui da Cracolândia ficavam me olhando com desprezo, cuspiam... Perdi vários dentes por causa das pedras. Era muita foda. Eu ficava no meio desse exército de nóias que fica nas Ruas Guaianazes, Aurora, Gusmões, Vitória... Ficavam me bulinando, me batiam pra tentarem roubar minhas pedras. Rolava muita canivetada ali durante a noite, eu andava com uma faca que não tinha nem cabo. Quando me roubavam e eu ficava realmente descontrolada por causa da abstinência, me prostituía pros nigerianos, que invariavelmente me espancavam nos quartos desses hotéizinhos escrotos daqui das redondezas. Uma das coisas mais baixas que já fiz foi dar de quatro pra um nigeriano, que me desgraçava por trás, enquanto eu fumava uma pedra na lata e então rolou uma invasão dos tiras numa batida num hotel na Rua Vitória. Tomei borrachada dos caras e ainda fiquei feliz porque um tira gostou de mim, sei lá por que razão... quer dizer, ele mandou eu pagar um boquete, então considerei que ele gostou... Eu estava banguela por causa do crack, mais magra do que a Twiggy com fome, naquele tempo.
- Meu Deus, você é banguela... Foi por causa do Pida que você mergulhou nas pedras?
- Sim, aquele filho da puta aproveitou-se de um momento em que eu estava com o saco cheio da vida, mas pelo menos tinha alguma dignidade, pelo menos tinha comida e lugar pra dormir, e quando me vi já estava dormindo na calçada roubando, apanhando, fumando pedra, ficando banguela, correndo atrás de outra pedra, e roubando de novo, e isso não acabava nunca. Eu sei que não deveria voltar para o Centro, porque aqui fico vendo essa filha-da-putice dia e noite, é uma tentação do cacete.
- É meio perigoso mesmo você perder o controle e voltar pra vida de nóia. Vamos nos concentrar agora em destruir a velha, porque pelo jeito ela foi uma das culpadas pelo seu vício, mesmo que ela jamais tenha comprado uma pedra pra te dar.
- Ela tem mesmo uma boa parcela de culpa porque era muito filha da puta comigo, mas ela não tem uma vida. Ela é um naco de carne sem alma que se desloca debilmente dentro de seu cubículo. Eu acho que devemos fazer uma eutanásia.
- Já que você tem a chave do apartamento dela, é fácil. O que você sugere que façamos? Você conhece a velha melhor que eu. Sabe o horário que ela dorme e tal...
- Precisamos ter cuidado. Como farei pra entrar e sair do prédio sem que desconfiem? No outro dia a velha amanhece morta e na mesma hora vão saber que estou envolvida.
- Deixa comigo! Só preciso da chave. Entro lá sozinho, se for o caso. Sua presença seria importante pra pegarmos coisas de valor, se houver algo.
- Pois é, quero aproveitar que vai rolar essa invasão ali e roubar umas coisas que sei onde estão guardadas. Objetos antigos que a velha trouxe do Japão e que ela nem sabe que tem valor comercial. São coisas que ela guardou pelo valor sentimental. Bibelôs decorativos e utensílios domésticos bastante estranhos para ocidentais. Dá pra vender tudo na Benedito Calixto. Mas entrar lá vai ser osso. Tem vizinhos acordados o tempo todo.

As coincidências muitas vezes acontecem para conturbar a vida das pessoas, e aquela região específica do Centro é bastante propícia para que planos sejam destruídos por bobagens cometidas por pessoas das quais os envolvidos na trama nem sequer lembravam da existência. O fato é que Gladis passava do outro lado da Avenida Duque de Caxias quando avistou Elvis conversando com Irmã Nóia, e como se dirigia ao apartamento de Miro para que lá encontrasse Elvis, decidiu não mudar seu itinerário. Foi para o apartamento e como já era de se esperar, encontrou Miro ainda deitado de maneira indolente, esperando pelo leite e pelo jornal, achando que a visita matutina era de Elvis.

Gladis sempre passa na padaria para comprar algo para comer quando visita seus amigos pela manhã, pois sabe como ninguém que aqueles dois sujeitos eram o tipo mais ordinário de vagabundos que se pode sonhar em conhecer. Ela sabia que a relutância deles em desenvolver qualquer tipo de instinto de autopreservação era irreversível. Até a marca dos cigarros que eles fumavam tinha que ser controlada por ela, fazendo com que fumassem marcas melhores e em quantidades aceitáveis. Em parte ela gostava disso, de sentir-se importante num ambiente que gostava e que nunca antes tinha podido freqüentar. Por outro lado sente-se responsável pela manutenção da vida de dois caras que para ela pareciam estar em extinção.

Ver Gladis logo cedo, de surpresa e com as mãos abananando foi quase um choque para Miro, especialmente quando ela entrou no apartamento falando sobre Elvis estar conversando com Irmã Nóia, que ela já conhecia há tempos. Gladis não o cumprimentou nem com bom dia quando ele levantou-se e abriu a porta. Já tinha achado estranho terem tocado a campainha logo cedo, pois Elvis tinha a chave e era o único humano que o visitava de manhã. Miro levantou balbuciando palavras impossíveis de serem compreendidas por qualquer um que não fosse ele próprio, pensando que Elvis poderia ter perdido sua chave ou estar bêbado demais para conseguir usá-la. Chegou também a pensar que poderia ser algo pior, como ele ter sido pego roubando o leite e os jornais.

Miro pediu que Gladis se acomodasse e escolhesse alguma música para que o apartamento parecesse menos desolador naquela manhã, enquanto ela falava sobre Elvis, beirando a histeria. Até que escolhesse um disco nas prateleiras, Gladis falou incessantemente, enquanto Miro, do lado de dentro do banheiro com a porta aberta, escovava os dentes e ouvia. E eis que ela colocou ‘Meat is Murder’ dos Smiths na vitrola e Miro já tinha terminado de escovar os dentes, então fechou a porta do banheiro para cagar, e ela chegou junto da porta, sempre falando sem pausa nem para respirar adequadamente. Ele cagando e ela na porta falando de Elvis, queixando-se da insanidade do sujeito. Dizia coisas sobre a desconfiança que ela tinha de que Elvis pudesse virar um nóia a qualquer momento, e que naquele momento já tinha quase certeza de que essa previsão se concretizaria.
- Aquele verme deve estar fumando pedra, deve estar comendo aquela índia nóia filha da puta! Vai pegar Aids e virar nóia, caralho!!!
- Eu não creio nisso, eu saberia com certeza. Nunca sumiu nada daqui de casa. Ele tem trabalhando, tem estado ocupado com as atividades normais dele. Ele apenas tem curiosidade sobre a vida dessas pessoas porque quer ser escritor e precisa de histórias pra contar. Ele quer tirar essas histórias da vida real. Eu também vim para o Centro atrás de bons temas literários, é natural que tenhamos alguma proximidade com essa gente tosca do Centro.
- Ele é sem vergonha, porra! Gosta de literatura marginal porque gosta de ser marginal. Ele quer viver essa vida paralelamente à literatura porque quer que a arte justifique sua condição de marginal. Ele nunca escreveu nem uma redação. Não é igual a você, que pelo menos faz o mínimo pra se preservar da companhia desses infelizes. Ele gosta desse caminho para a limbose.
- Talvez ele não consiga ainda desvincular uma coisa da outra. Já disse para ele que adoro a Cracolândia só quando estou dentro de casa, quando sei que ela está fervendo aí fora, porque me faz sentir bem acompanhar sem me envolver muito diretamente. Ele demora mais pra cansar dessas ruas, mas não acho que ele vá virar nóia. Ele vê todos os dias e todas as noites como ficam esses porras desses nóias. As manhãs como essa são o melhor momento pra verificar isso, porque as crianças nóias ficam jogadas por aí, na frente das lojas, tomando vassouradas dos comerciantes que estão abrindo seus estabelecimentos.
- Olhe, já me dirigi com ele pra cá, a pé, e constatei que ele prefere andar pelas ruas mais sujas e infestadas de nóias do que vir um pouco mais tranquilamente pela São João ou outra avenida. Ele gosta especialmente de ver um traveco que parece o Ace Frehley, do Kiss, que ficava fazendo ponto na Rua Guaianazes.

O traveco ao qual Gladis se referia se tornou lendário na região da Cracolândia. Seu nome verdadeiro era Gutemberg, mas era conhecido por Guta. Já travou verdadeiras batalhas contra nóias que várias vezes tentaram ocupar o quarteirão onde Guta e suas colegas faziam ponto. Também já foi atacada por playboys que passavam ali de carro e lhe atiravam sacos de lixo cheios de urina. Brigas com giletes de madrugada foram freqüentes em sua trajetória também, com muitos implantes de silicone industrial sendo perfurados, às vezes em prejuízo de Guta, e outras vezes em prejuízo de suas oponentes.

E o papo entre Gladis e Miro ia evoluindo para conclusão nenhuma. As suposições sobre Elvis estavam realmente todas erradas por parte de Gladis, até que Elvis chegou com Irmã Nóia e a surpresa pareceu grande para os quatro humanos envolvidos. Naquele momento Miro terminou de cagar e ainda dentro do banheiro, pensou logo no primeiro segundo em que ouviu a chave entrar na fechadura que deveria ter desconfiado minutos antes que esse tipo de situação do qual reclamamos sem estarmos realmente arruinados sempre pode ficar pior. Lamentou-se no segundo seguinte por não ter feito essa previsão e no terceiro segundo já estava resolvendo que iria tomar banho antes de ver de perto o que aconteceria na sala, ainda que milhares de discos de vinil estivessem sob risco iminente de virarem discos voadores e pedaços estéreis de plástico preto.

Elvis tinha tomado banho na noite anterior, antes de sair para o Toninho’s e certamente deixou o box aberto, inundando o banheiro, certamente pensando que Miro não acordaria cedo o bastante para ver toda aquela água, mas ali estava Miro levantando-se para levantar a calça que estava bastante molhada, e no momento em que o primeiro grito foi emitido por Gladis (‘Seu filho da puta, você está comendo essa nóia!!!!Filho da puta!!!’), Miro gritou também: ‘Elvis, mantenha o controle sobre a situação, porra!!!’.

Saiu do banheiro com a calça molhada da água que escorreu do banho de Elvis, e isso só não era mais ridículo naquele momento porque o contexto era ainda pior. Ele tinha em casa duas mulheres sem que estivesse comendo nenhuma delas, e nem sequer podia supor o que seu amigo tramava. Até porque o que quer que fosse que Elvis estivesse tramando, não poderia imaginar que encontraria Gladis ali esperando por ele, nem que Miro estivesse com sua calça encharcada por sua causa. Era mais uma prova de que as coisas podem sempre piorar sem que ao menos possamos imaginar o quanto ou o porque.

O fato é que Elvis viu-se em maus lençóis porque sabia o quanto Miro ficaria grilado com escândalos em seu pequeno apartamento, pois este passou toda sua vida criticando a falta de classe de gente que por qualquer que fosse a razão perdesse a cabeça a ponto de gritar palavrões. Tramar a morte de uma velha imigrante abandonada à própria sorte não é exatamente a coisa mais fina que se pode conceber. Elvis não conseguia imaginar algo convincente para dizer para Gladis e para Miro naquele momento, e teria que ser algo que convencesse ambos ao mesmo tempo sem que houvesse qualquer comprometimento. Era preciso pensar rápido ou ficar calado esperando que as coisas se resolvessem sozinhas, o que era pouco provável. Elvis aproveitou para ganhar tempo gritando ‘Agora sou eu que falo!!!’ e na verdade apenas esperou que ninguém dissesse nada enquanto pensava em algo minimamente inteligente para remediar a situação, ou ao menos para que ela não ficasse pior.

Elvis fracassou na tentativa e Irmã Nóia finalmente soube de seu apelido por intermédio de Gladis. Miro e Elvis não sabiam se Irmã Nóia tinha conhecimento de seu apelido. Puderam então constatar que a garota não sabia, pelo fato de seu período de entorpecimento ter sido realmente pesado, tendo mantido a moça alheia a assuntos que não fossem relativos à busca incessante de mais e mais pedras. Quando ela resolveu que tinha que deixar isso tudo de lado, não manteve contato com aquelas pessoas nem com aquelas ruas, de modo que deixou para trás um apelido que nem sabia que tinha.
- Por que você jogou sua pouca dignidade fora? Pegar a Irmã Nóia é algo baixo demais...
- Irmã Nóia o caralho, sua pângua!!! Eu amasso a sua cara!!! Isso é uma referência ao fato de minha mãe ser uma beata? Eu nunca freqüentei a igreja...
- Esse apelido não fui eu quem escolheu. Eu não sei o porquê da palavra ‘irmã’, só sei o porquê da palavra ‘nóia’...

Naquele momento Miro finalmente interveio. Sabia que esse esforço era equivalente a enfiar a mão numa privada entupida para tirar um maço de cabelos que em meio à merda entupia o cano. Sabia o quão desagradável era a missão, mas era algo extremamente necessário, e de quebra teria condições de evitar que esse tipo de episódio se repetisse em sua casa e em sua vida.
- Nunca tive qualquer benefício sexual com a presença de vocês duas no bairro, de modo que quero pelo menos não ter que me rebaixar ao ponto de impor autoridade, porque esse é o tipo de coisa que já deveria estar subentendida por vocês há muito tempo, sem que eu precisasse levantar a voz, ou agir como se fosse um policial tentando coibir o caos que é a Cracolândia!
- Você não é um policial, mas agora está tendo que lidar com uma nóia dentro de sua casa, que está sendo traçada por um amigo próximo, que come caldo knorr e fuma dois maços de derby todo dia.
- Desgraçada, vou te pegar à noite aí na rua com um estilete enferrujado e ninguém vai sentir sua falta. Só o Elvis, que fuma Derby e come caldo knorr com o dinheiro que você dá pra ele.
- Vão se foder as duas, porra!!! Meu amigo Miro não merece passar por isso, e eu tenho minha consciência relativamente tranqüila porque sei que quando vocês saírem daqui terei como consertar essa situação ridícula, e quanto ao fato de eu fumar Derby... Porra! Foda-se isso!! É com o MEU dinheiro!!! Ninguém me dá um puto furado!!! Eu trabalho no mais honrado dos ofícios!!! Sou livreiro e disqueiro!!! Trabalho com cultura e como caldo knorr porque quem trabalha com cultura nesse país ribeirinho só se fode mesmo, mas eu estou disposto a não desistir!!! Vocês estão vendo essa prateleira maravilhosa cheia de discos raros? Perguntem a meu camarada Miro quantos desses discos ele comprou de mim!!! Nossa amizade é inabalável, e vocês seriam esquecidas em dois segundos caso fossem escorraçadas daqui por justíssima causa. Devemos nos lembrar imediatamente que jamais qualquer uma das duas conseguiria encontrar pessoas tão distintas como eu e meu amigo Miro, e ainda teriam que enfrentar o resto dessa melancólica existência de vocês amargando a vergonha de nos importunar com a falta de classe da qual nem mesmo eu e Miro conseguimos tirar de vocês. Vocês têm que saber que nós não temos ilusão alguma quanto a isso. Não temos o poder de mudar pessoas pra melhor. Elas não têm inteligência nem discernimento para mudarem, e o que podemos fazer é dar exemplos. Quando perdermos realmente a paciência faremos um pequeno escândalo para tirarmos vocês duas daqui, e continuaremos com nossas vidas, e assim que essa porta se fechar depois da saída de vocês, daremos risada da situação, ou talvez nos lamentemos pela coisa toda ser assim, tão baixa e irreversível. Ouviremos vocês dizerem que somos desumanos, e isso vai soar como o elogio mais glorioso que poderíamos ouvir, porque há tempos que nos sentimos constrangidos pela nossa condição humana. O mais curioso é que vocês não têm discernimento nem para unirem-se. Gladis, minha filha... Você gosta de rock e deveria reconhecer que a Irmã Nóia é a uma das garotas mais rock que você já conversou. Ela desceu para o inferno e não voltou mais. Irmã Nóia, você deveria unir-se à Gladis para manter-se afastada do crack, porque ela também teve muitas aflições da vida e também manteve-se perto da Cracolândia, em meio a traficantes e nóias sem jamais ter sucumbido ao uso dessa droga tosca. No entanto, no primeiro dia em que foram colocadas frente a frente pelo destino, já criaram divergências que ocasionaram essa discussão estúpida que estamos tendo agora.

São esses desvios do acaso que fazem com que os quase mortos consigam se reerguer, ou ao menos continuarem respirando, ainda que moribundos, com sérias dificuldades, e a velha Masumi já estava no lucro pelo fato de a pauta sobre sua eutanásia ter caído com a invasão de Gladis à casa de Miro e ter gerado logo a seguir a ridícula discussão apresentada acima. Depois de uma vida longa e sem qualquer sentido, a velha foi favorecida pela falta de seriedade de seus potenciais algozes.

A velha tinha ainda uma carta na manga. De fato era cautelosa com Elvis porque sua intuição funcionava quando se tratava de instinto de auto-preservação. Sabia que Elvis era uma ameaça caso houvesse uma aproximação entre eles, principalmente se a iniciativa partisse da própria Masumi. Ela sabia que isso serviria de justificativa para que Elvis desse cabo da vida da velha, ainda que fosse de maneira suicida para ele. Mas resistir para não abordar Elvis no corredor ou na escadaria do prédio era um sacrifício grande para a velha, que esperava pelo momento mais propício. Ela queria mostrar para ele que tinha um olho de vidro.

Irmã Nóia pediu a Elvis que a levasse até a rua, e com a demora do elevador, foram pela escada, mesmo sabendo que Masumi poderia estar ali no andar debaixo, e veria os dois juntos, o que seria um desastre para os planos de dar fim a ela. Quando Elvis fez menção de desistir de descer de elevador, e dirigiu-se às escadas, Irmã Nóia segurou-se por alguns segundos, mas seguiu-o. Desceram os primeiros degraus e podiam ouvir a velha praguejando logo abaixo, mas seguiram descendo. Elvis teve alguns segundos para pensar que mais uma vez passaria por ali sem ser abordado. Queria ver qual a reação da velha ao vê-lo com Irmã Nóia, e desejou que fosse abordado, o que de fato aconteceu com ineditismo.
- Você, você!- disse Masumi ao ver Irmã Nóia.

Seguiram-se alguns segundos de silêncio e a velha apontou para Elvis e disse:
- Você também!!!

Masumi gesticulou para que entrassem em seu apartamento.
- Eu enxergo pouco e só posso comer vegetais bem cozidos. Olhem só como eu sou de verdade! – disse a velha Masumi, tirando o olho esquerdo, que era de vidro, e sorrindo sem a dentadura, com as gengivas cheias de chagas com pus seco.

Elvis, que pensava ter estômago e fígado para qualquer coisa com que se deparasse na vida, tombou desmaiado, atingindo Irmã Nóia com a cabeça na altura da cintura, e ela, por sua vez esbarrou num bibelô japonês em formato de cachorro. Era um objeto feito com um tipo de cerâmica grossa, que ao cair, rachou sem espatifar. Foi trazido do Japão décadas antes, o que fazia com que Irmã Nóia, desde quando trabalhava na casa da velha, imaginasse que tivesse um valor econômico interessante.
- Você está tramando pra me derrubar com esse filho da puta, né, sua boliviana do inferno? Você não tem gratidão! Fuma pedra na rua!!! Eu vi você na rua fumando pedra!!! Você também é banguela, sua boliviana!!! E se me desafiar vai ficar com olho de vidro também!!! Vá embora agora, que eu vou dar um trato nesse animal aqui!!! – disse Masumi.

O que aconteceu depois foi demais para Elvis, que voltou à consciência com a velha lhe bolinando. Ela não fazia sexo desde a morte do marido. Desde então não tinha nem ao menos visto um pênis. Tentava fazer com que ele tivesse uma ereção mesmo estando desmaiado, masturbando-o e chupando-o. Elvis acordou e desmaiou de novo, com o pau todo babado e a velha sorrindo diabolicamente e falando obscenidades que o deixaram chocado. Ela segurava seu pau com uma mão e massageava sua próstata com a outra. Elvis teve um início de ereção antes de desmaiar pela segunda vez.
- Você pensava que ia escapar... O Miro também está tentando escapar... Ah, eu precisava de um pau brasileiro, bem gostoso... Fique duro, gatinho, vai, bem duro e gostoso e todo melado... – disse a velha Masumi.

Ela passou a massagear apenas a próstata de Elvis, provavelmente com alguma técnica oriental milenar. Tinha como efeito apenas uma meia ereção e como Elvis tinha transado na noite anterior e não tinha lavado o pênis, sua glande estava com uma grande quantidade de porrite acumulada. Espasmos no corpo de Elvis eram a única manifestação de vida que o pobre rapaz demonstrava. Ele acordou mais uma vez para que finalmente a velha dissesse:
- Seu brasileirinho jovem... meta no meu olho!!!!! Preencha o vazio do meu olho com esse cacete brasileiro!!!

Ela tirou o olho esquerdo e com a língua gesticulou insinuando estar querendo lambê-lo no pau e nos bagos enquanto ele estivesse penetrando a glande onde deveria haver seu globo ocular. Elvis desacordou novamente, e sua meia ereção baixou. Masumi então constatou que Elvis estava morto. Com uma espátula, tirou o olho esquerdo do rapaz. Foi ao banheiro, posicionou-se diante do espelho e colocou o olho de Elvis no buraco que era ocupado pelo olho de vidro. A velha tinha um fogão de duas bocas. Colocou óleo para ferver e foi ao banheiro. Olhou novamente no espelho para certificar-se que com seu novo olho esquerdo lembraria sempre de Elvis enquanto vivesse. Sorriu. Abriu a gaveta do lado direito da pia e tirou uma tesoura de cabelo. Voltou à sala, cortou o saco de Elvis, retirou os seus bagos em meio a um pequeno rio de sangue e colocou-os para fritar.

Abriu uma garrafa de saquê que guardava numa cômoda da sala. Esse saquê estava lá para ser servido às visitas que ela nunca teve. Colocou dois dedos da bebida num copo americano, cheirou-a e bebeu numa golada só. Voltou à cozinha, pegou um prato, cobriu-o com uma folha de papel toalha, e com um garfo tirou de dentro da frigideira cada um dos bagos de Elvis, colocando-os sobre o papel toalha que revestia o prato. Serviu mais uma dose de saquê enquanto o papel toalha absorvia a gordura dos bagos de Elvis e voltou à cozinha. Esperou que os bagos esfriassem um pouco. Comeu um deles com o garfo, tomou metade do saque que estava no copo. Comeu o outro bago e em seguida terminou de tomar a dose de saquê.

Enquanto isso, um andar acima de onde Elvis estava sendo bolinado e morto, Miro pensava estar infeliz porque percebeu que o zumbido que o perseguia nos dois ouvidos era realmente crônico, e começou a sentir medo de enlouquecer. No entanto, percebeu que o custo-benefício de algumas marcas de uísque envelhecido por oito anos era bastante favorável em alguns pontos de venda. Pensou em adotar o Grant’s ou o Black and White como a bebida oficial de seus finais de semana.

Irmã Nóia tinha ido para a rua assustada e agitada, disposta a morrer de tanto fumar pedras, só para não ter que lembrar novamente de Masumi e de todo o resto de seu passado. Já não havia perspectivas para aquela garota boliviana, que era banguela e viciada, a não ser trabalhar no bar dos chineses, que não fecha nunca. Sabia que ali sucumbiria ao crack novamente. Ainda era cedo demais para comprar pedras, só havia nas ruas o reflexo dos danos sociais da noite anterior, com nóias caídos nas calçadas, muitos deles sendo removidos a golpes de cabo de vassoura pelos comerciantes. Irmã Nóia viu um que parecia estar morto, porque não acordava nem a pauladas. Tinha no máximo 15 anos, e vestia só um short de futebol, daqueles antigos, com listas laterais, e seus bagos estavam expostos. As manhãs no Centro eram deprimentes para quem tivesse que sair apressadamente para trabalhar e mais ainda para quem não tinha emprego ou era um viciado em crack que resistiu a mais uma noite.

Pida estava dormindo num hotel no Largo do Paissandu naquela manhã. Tinha umas rochas com ele, compradas com o dinheiro que deveria ser usado para pagar o quarto. Enquanto tivesse alguma pedra para fumar, estaria tudo bem. Depois, com a luta pela próxima pedra, a derrocada começaria novamente, e seria preciso dar um jeito de sair do hotel sem ser visto. Mas ele ainda estava vivo.

Brito e Valente já tinham providenciado respectivamente a guitarra e a bateria dias antes para unirem-se a Elvis e darem início à reformulação do rock brasileiro. Bernardo estava mais magro e quando estava acordado repetia ‘Beerrr-nnaaarrr-dooo, Beerrr-naaarrr-dooo!!!’ em seu quarto de pensão.

No bar do China trabalhadores e vagabundos misturavam-se, alguns com copos de café com leite e pães com manteiga na chapa, outros com copos de aguardente e torresmos com pêlo. No supermercado 24 horas da Cracolândia os seguranças estavam atentos para evitar roubos, em plena manhã, de viciados terminais que perambulavam ali antes que pudessem efetivamente conseguir a próxima rocha.

Os Main Drags lançaram o álbum All Beat Cons, que imediatamente virou um clássico da música alternativa. Permaneceram no underground, pois cada um de seus integrantes dava prioridade a seus projetos individuais, que estavam ligados a diferentes áreas artísticas, como literatura e artes plásticas.

O verdadeiro Elvis não foi grandioso o bastante para fazer com que o cotidiano da Boca do Lixo mudasse. Não viveu o bastante para salvar o Rock brasileiro. Por aquelas ruas, foi esquecido com a mesma rapidez com que entrou em cena.

Herbert, o carteiro legal, entrou no prédio de Miro pouco antes do meio-dia levando as contas de luz dos moradores dali e as deixou com o porteiro Jairzinho, para que ele as distribuísse nos apartamentos. O combinado era que a partir daquele mês Elvis dividiria as contas de luz com Miro.

FIM

• Escritor

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