quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Ou dá ou desce – IV

* Por Fernando Barreto

Capítulo 4 - Sambadrome: A Nação Paranga

A parede do banheiro do apartamento de Brito começou a ser quebrada numa manhã de quinta-feira para o conserto de um cano. Na noite anterior seu pai foi avisar-lhe da necessidade desse reparo, causando grande chateação a Brito. Ele precisava fazer com que o dia do conserto do cano do banheiro passasse o mais rápido possível. Reformas em casa o deixavam realmente triste. Na época em que era estudante e estava sempre atrasado e o banheiro que sobrava tinha que ser dividido, essas reformas eram tão repugnantes quanto um procedimento cirúrgico nos olhos. Mas Brito cresceu ouvindo que a vida era dura mesmo para quem não tinha uma casa e muito menos um banheiro e também para pessoas que não tinham o que comer. Enfim, era algo desagradável, mas ele tentaria viver aquele dia sem lamúrias. Ele podia cagar e tomar banho no banheiro da empregada, que estava desativado.

Os caras terminariam o serviço ás 17 horas e seu pai acompanharia tudo até que fossem embora. O velho Britão gostava de cuidar de seu patrimônio. Gostava dessas reformas na mesma proporção que Brito as odiava.

Brito foi tomar café com sua mãe a partir das nove horas, quando os encanadores chegaram acompanhados de Britão. Ele via sua mãe todos os dias, mas naquele momento, na cozinha dela, a velha parecia ainda mais velha. Rosa tinha 65 anos e Brito achou triste que ela tivesse vivido toda sua vida num casamento tão farsante. Teria sido mais digno e mais humano fazer um contrato de moradia com o velho Britão, que levava o sustento financeiro da família a sério, mas que deixava todos os outros setores da vida familiar no descaso. Rosa se sujeitava às grosserias e à falta de jeito de Britão para lidar com as pessoas. Rosa tinha sido criada para isso. Nunca esboçou qualquer tipo de rebelião contra o machismo do marido. Era como se tivesse aceitado desde muito cedo um triste destino que se cumpriu com a formação de sua própria família. Uma família nos velhos moldes.

Aquela estrutura familiar era tão débil e antiquada que fez de Brito um sujeito completamente avesso aos valores familiares tradicionais, mesmo sendo ele uma pessoa não tão questionadora e rebelde. Quer dizer, ele tinha seu próprio modo de se rebelar e de questionar o que lhe era imposto. Bastava fazer tudo ao contrário. O fato de Brito chegar à beira dos 40 anos sem qualquer indício de que casaria um dia já fazia com que seus pais ficassem intrigados. E Brito procurava não dar motivos para que houvesse atritos por causa dos direcionamentos de vida diferentes dos de seus pais.

No muro do antigo Hospital Matarazzo, na frente do prédio de Brito, alguns mendigos paravam para descansar por algum tempo, antes de serem escorraçados pelos seguranças ou policiais. Havia um em particular que alcançara os 60 anos de idade e que era uma figura lendária da Bela Vista. Desde que Brito era criança, aquele homem era um morador de rua e cachaceiro. O velho homem parecia Hemingway na fase madura de sua vida. Um velho Hemingway depois da guerra. Aquele mendigo em especial já não abusava tanto da bebida como na época em que era mais jovem e conseguia comida suficiente. Podia ser visto regularmente comendo uma farta refeição num prato de papel alumínio. Vez ou outra aparecia barbeado e com banho tomado, depois de passar uma noite no albergue da Avenida Nove de Julho, quando a sujeira já não o deixava relaxar nas calçadas da Bela Vista.

Era um homem relativamente alto, cerca de um metro e oitenta e três, e acima do peso, algo em torno de 120 quilos. Perambulava pela Bela Vista e podia ser visto em vários pontos, mas era no muro do Hospital Matarazzo que passava mais tempo mendigando. Vestia sempre uma calça cinza de moletom encardida e camisetas de propaganda.
- Me dê um Toddynho! – era o que dizia o velho homem para quem quer que passasse por ele.

No dia do conserto do encanamento de seu banheiro, Brito precisou matar o tempo até que pudesse ficar sozinho em casa novamente. Havia passado toda a manhã no apartamento de seus pais ouvindo as marteladas vindas de seu banheiro, que fazia divisa com o banheiro do apartamento de seus velhos. No começo da tarde saiu para ver se na rua o tempo passava mais rápido. No momento em que saía da padaria de sua rua, onde comprara cigarros, a menos de cem metros de sua casa e que era localizada em frente ao muro de onde um dia funcionou o hospital, Brito viu o que parecia ser um ajudante de turnê do Lynyrd Skynyrd ou do Allman Brothers Band. Estava conversando com o velho mendigo da Bela Vista. Parecia que aquele sujeito ainda vivia em 1972 ou que estava fantasiado a caráter para algum evento de rock sulista americano. Tinha cerca de 45 anos, um metro e setenta de altura, magro, um volumoso cabelo preto comprido preso num rabo de cavalo e coberto na parte de cima por um chapéu. O bigode era grande como de David Crosby, só que preto. Usava botas, uma calça jeans desbotada mas limpa e uma camisa de manga comprida de um material que parecia ser seda preta. Usava anéis, fumava Hollywood e tinha só um dente visível na boca, na parte superior, que se mexia quando ele falava.. Brito viu o sujeito dando um cigarro ao velho andarilho e acendendo-o para ele.

Era uma tarde quente de uma quinta-feira e a padaria já começava a receber os primeiros bancários da região que saíam do trabalho para tomarem cerveja e comerem sanduíches de salame. Brito abriu seu maço de Dunhill e retirou dali o primeiro cigarro enquanto olhava com o canto dos olhos para aquele sujeito que parecia completamente deslocado no tempo e no espaço, enquanto ele ainda conversava com o andarilho. Já era uma figura curiosa antes mesmo que Brito visse que atrás dele e do andarilho havia uma sacola de discos de vinil encostada no muro do hospital. A sacola era vermelha e transparente, de modo que do outro lado da rua Brito pode identificar o primeiro disco. Era um belo exemplar do álbum 'Arbet Macht Frei' da banda italiana de rock progressivo Area.

Brito era um fanático por lp's a ponto de deixar de lado sua relutância em interagir quando surgia algum disco que lhe interessasse. Como geralmente conhecia as pessoas que lhe vendiam discos há muitos anos, não sofria tanto com cerimônias sociais quando ia comprá-los, fosse em lojas ou feiras de discos. Aquela situação era diferente, pois Brito não sabia se o sujeito de bigodão queria vender os discos ou mesmo deixar que Brito os examinasse. Mesmo assim ele atravessou a rua e antes de dizer qualquer palavra ao sujeito cabeludo de bigode e ao andarilho, parou na frente deles e fitou a sacola com discos. Por um segundo pensou que nunca mais teria o direito de reclamar de ser um para-raio de malucos. Havia na sacola algo entre 20 e 25 discos.
- Fala, meu jovem!! Você tem cara de roqueiro!! – disse o sujeito cabeludo de bigodão, com uma voz grossa e engraçada que parecia estar satirizando a si mesmo
- Ah, sim, eu gosto de rock. Gosto de vários gêneros musicais. Cheguei mais perto por causa dos discos que você tem aí. Fiquei curioso, também sou colecionador.
- Então é uma feliz coincidência o que está acontecendo aqui, jovem. Eu não sou mais colecionador, já me desfiz de vários belos discos, alguns realmente raros. Já tive quatro mil discos ao mesmo tempo, e no total, cerca de sete ou oito mil passaram pelas minhas mãos. Por problemas financeiros e também por falta de espaço me desfiz de milhares de discos. É doloroso, mas de qualquer forma a música nunca vai se perder de mim. Esses discos que estão na sacola eu ia vender, mas esses lojistas estão completamente loucos. Queriam pagar muito menos do que eu poderia aceitar. Em alguns casos ofereciam menos do que o valor do que valeria o xerox das capas. Eu naturalmente já salvei o conteúdo musical desses discos e também a arte das capas. Eu os reproduzo em cd e vendo. Sou um pirata, mas um pirata que dá valor ao trabalho artístico dos caras que fizeram essas obras primas. Meu nome é Ademar, mas pode me char de Dema – disse Dema, o bigodudo.
- É melhor vender esses discos pra mim, Dema. Se você vendesse quase de graça pros lojistas, amanhã seus discos estarão nas prateleiras por preços altos. Esse disco do Area é sensacional. Eu não o tenho em casa. Meu nome é José Ronaldo, mas pode me chamar de Brito – disse Brito.
- Dê uma olhada nos outros discos! – disse Dema a Brito.
(Brito pegou a sacola que estava encostada no muro e arregalava os olhos a cada disco que via naquele pequeno lote. Edições originais americanas, inglesas, alemãs e japonesas de artistas importantes, mas esquecidos do grande público, inclusive do público do rock. Bandas como as italianas Acqua Fragile, Area e Banco Del Mutuo Soccorso; bandas alemãs como Eloy, Nektar e Amon Duul; bandas francesas como Magma, Ange e Gong, além de outras mais obscuras do Hard Rock e do rock progressivo inglês e americano. Havia também uma edição original do disco As crianças da Nova Floresta, da banda brasileira de rock progressivo Recordando o Vale das Maçãs, e isso fez com que as palmas das mãos de Brito começassem a suar).
- Faça um preço razoável que eu vou comprar todos. Alguns desses discos eu tenho, mas não em edições tão legais como essas. Eu não ligo de ter discos repetidos nesses casos – disse Brito para Dema. Logo em seguida o velho andarilho falou pela primeira vez:
- Pensei que nunca mais veria algo assim na minha vida. Esse tipo de negociação me emociona. Vocês vão me pagar um Domecq? Meu nome é Guido! – disse o mendigo que parecia Hemingway.
- Sim, a garrafa do Domecq vai estar incluída no preço do pacote de discos. Nós três vamos dividir a bebida – disse Brito.

Brito contou 23 discos naquele pequeno lote, e para o caso dele querer levar todos, Dema estipulou o valor de mil reais. Individualmente aqueles discos podiam custar duzentos reais ou mais do que isso em feiras de discos e em cotações de vendedores de discos raros em sites na internet, o que fazia com que a compra de todo o pacote fosse um ótimo negócio para Brito. Venderia pela internet alguns deles, os que fossem repetidos em sua coleção, pelo preço do mercado, e com isso recuperaria pelo menos metade do dinheiro investido.

Guido sugeriu que Brito e Dema fossem fazer a operação bancária o mais rápido possível e voltassem com o conhaque. Enquanto Guido esperava ali mesmo com um Dunhill fornecido por Brito e um Hollywood fornecido por Dema, a transação foi feita num banco da Paulista. Ainda precisavam pegar o Domecq de Guido e o fizeram no mercado da Rua Pamplona, o mesmo lugar onde Braga pode conversar mais tempo com Brito poucos dias antes. Quando finalmente voltaram para encontrar Guido, este reclamou da demora mas alegrou-se muito com a chegada da bebida. Foram tomar o Domecq na ponte. Brito tinha trazido copos descartáveis e também tinha um baseado. Dema também tinha um baseado. Dema já tinha liquidado um maço de Hollywood e abriu outro maço. O sujeito realmente fumava muito. As horas passaram rápido, e durante aquele período os três foram socialmente iguais, humanamente diferentes e até certo ponto, livres. Dema fez um desabafo emocionado quando servia para si mesmo a segunda dose:
- Todo mundo que me vê associa a minha imagem a um sonho hippie, àqueles ideais dos anos 60 que aqui no Brasil se estenderam até os anos 70. Mas muito pouca gente sabe dos meus sofrimentos. Tive uma série de problemas de saúde, principalmente por causa da bebida. Hoje me vejo vivo e com mais de 50 anos e tomando conhaque com um cara mais velho e outro mais novo que eu. O que eu tinha pra perder por causa de bebida, eu já perdi. Tive e ainda tenho uns problemas no fígado, mas o pior foi a trombose hemoroidária e as doenças venéreas. Foram tantas que elas resultaram em um câncer no meu pênis. Isso só pôde ser curado com castração. Minha próstata também estava bastante comprometida. Meus amigos, eu sou eunuco e uso uma saqueira pra disfarçar – disse Dema, levantando-se na sequência e fazendo uma pose para mostrar aos amigos que sua saqueira cumpria o papel de disfarçar o desfalque físico. Brito e Guido se olharam chocados. Foi a primeira vez que Guido pareceu abalado com algo dito desde o instante em que Brito se juntou a eles. Naquele momento, aos olhos de Brito, Dema parecia-se muito com David Byron, o primeiro vocalista do Uriah Heep, só que mais velho. De fato a saqueira de Dema era discreta. Depois de alguns segundos de um silêncio gelado e reflexivo dos três, Dema voltou a falar;
- Quando eu era jovem, dividíamos lendas, mitos e ideais. Hoje os jovens dividem a própria burrice no Facebook. É bem verdade que aquele velho idealismo ceifou a vida de muita gente e daquele sexo livre dos velhos tempos antes da aids, me sobrou somente a possibilidade de fazer sexo oral com as garotas, mas elas enlouquecem com meu bigode em suas vaginas.
- Eu já cheguei a pensar que a miséria em estado puro ia me enlouquecer, mas ela vai me salvar. Nas ruas e na vida não basta correr pra não ser engolido. É preciso ser indigesto. Quando os poderosos forem donos de toda a água potável do mundo a coisa vai azedar e essa classe média asquerosa que me despreza vai pagar caro! – disse Guido, que deu o último gole da garrafa de Domecq. Então Guido se levantou e atirou acintosamente a garrafa vazia contra o asfalto que estava atrás dele enquanto estava sentado na mureta que separava a calçada da ponte e a via para os carros, causando certo estardalhaço, mesmo levando em conta que naquele momento cada carro passasse apenas a cada cinco minutos.
- Não faça isso!!! – gritou Dema enquanto levava as mãos à cabeça.
- Caiu, porra!!! – respondeu Guido em voz alta.

Leia o quinto capítulo deste conto na edição de amanhã.

• Escritor

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