quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Na margem da rodovia

* Por Marco Albertim

Com dinheiro no bolso, inda que pouco, não recusou o convite para jantar no presídio. Pouparia para a viagem ao Cariri, caroneiro ou testando a resistência das tiras de couro no solado de borracha das alpercatas. A rodovia, àquela hora, deixara-se iluminar pelos faróis. O Posto Fiscal tinha luz própria, no escritório à frente do depósito com um único vão, onde milhares de notas fiscais refugadas amontoavam-se para o regalo de ratos e baratas. A luz também incidia na guarita à beira da rodovia, onde dois ou três fiscais sentavam no controle da cancela, obrigando os caminhões de carga a pararem para a revista das mercadorias.

Brasílio descera do trem na noite anterior, em Aquiraz; viera para o posto para conseguir carona, na boleia ou na carroceria de um caminhão já desprovido da carga. Conviera que, conversando com os fiscais, nenhum caminhoneiro veria malícia na altura de seus vinte e cinco anos. Coincidira de encontrar outro estradeiro, não fugitivo, por certo, posto que nos olhos tinha um carecimento fundo, próprio de quem busca acolhimento, mesmo em troca de trabalho duro. Com meia dúzia de palavras, os dois se viram afins. Não fora difícil a conversa com os fiscais; eram, os fiscais, homens no uso de um brim sem brilho, diferente do cetim lustroso de seus chefes no escritório.

Brasílio e Branquinho dormiram no depósito de papéis sujos, macios, de fazer inveja à estreiteza de uma cama. Alimentaram-se de broa com café, num quiosque de madeira. O dono, à míngua de outros fregueses, servia uma pinga cujo cheiro há muito entranhara as paredes, as telhas de pouca altura.

O soldado descera do ônibus sem pagar a passagem. Brasílio não o invejara, mas quis ser outro, com dinheiro no bolso para pagar o transporte, com sobra para a refeição diária. O soldado há tempo se fizera amigo dos fiscais; tinha a particularidade de também trabalhar por turno; no presídio cercado pela mata de cajueiros ao fundo, atrás de tudo. Nas árvores, com frutos feito penduricalhos num rosto de mulher, ninguém subia. A fábrica de caju em calda, ali perto, tinha um vigia para evitar a ação de algum teimoso. Os fregueses do quiosque apanhavam cajus caídos, bicados de sabiás. A rodovia, ali, recendia aos cajus, à resina nos troncos.

Brasílio e Branquinho mantiveram-se à margem da conversa, intervindo com interjeições curtas; agradaram, pelo visto. O soldado convidou-os para comer no refeitório do presídio, entre os presidiários. Brasílio, há dois anos, gritara abaixo a ditadura na Avenida Guararapes; preso, sofrera maus-tratos, tapas e choque elétrico. Três meses de cadeia. Solto, sempre que havia grita de estudantes nas ruas, era preso para dar conta de sua responsabilidade na distribuição de folhetos com pregação contra os milicos. Por fim, decidiu viver clandestino. Seu irmão, Felício, não tivera a mesma sorte; fora sentenciado a cinco anos de prisão. Para evitar que fosse objeto de romarias inconvenientes, com visitas da família, dos padres que reclamaram da condenação, era levado de um presídio a outro, feito um apenado itinerante. Felício, como Brasílio, tinha um sinal com fios ralos de cabelos acima da sobrancelha do olho direito.

Os dois deixaram a bagagem no depósito, sob os papéis; nada de monta, posto que cada um tinha uma sacola de lona fina, com cuecas, uma calça e uma camisa além das do corpo.

O presídio fora pintado há pouco. O cheiro da tinta, ainda ativo, mas sujeitado à fragrância dos cajueiros. No portão de ferro gradeado, os dois, mesmo com o aval do soldado que os chamara, foram revistados. Sob a camisa, no bolso de trás, o cabo da escova de cabelos de Brasílio, foi confundido com um revólver.
- Tá usando escova de mulher, seu cabra! – brincou a sentinela.

Não havia relógio em nenhuma das paredes do quadrilátero no meio do presídio. O tempo brumoso, os derradeiros pios dos sabiás na fria folhagem dos cajueiros, davam conta de que o ar também se acumpliciara às sentenças de condenação em cada nicho do presídio.

Os dois comensais sem a roupa de presidiário distraíram os outros, lembrando que do lado de fora o uso de roupas tem o cheiro e a cor da preferência livre. Brasílio e Branquinho sentaram juntos, na ponta de uma mesa comprida, num banco de madeira de comprimento igual. Quis olhar, Brasílio, para cada um daqueles rostos, descobrindo-lhes o passado, o tamanho da sentença. Não perdeu a fome, mas estacou vendo Felício a sua frente, com a mecha do cabelo cobrindo o sinal acima do olho.

Com dinheiro no bolso, inda que pouco, não recusou o convite para jantar no presídio. Pouparia para a viagem ao Cariri, caroneiro ou testando a resistência das tiras de couro no solado de borracha das alpercatas. A rodovia, àquela hora, deixara-se iluminar pelos faróis. O Posto Fiscal tinha luz própria, no escritório à frente do depósito com um único vão, onde milhares de notas fiscais refugadas amontoavam-se para o regalo de ratos e baratas. A luz também incidia na guarita à beira da rodovia, onde dois ou três fiscais sentavam no controle da cancela, obrigando os caminhões de carga a pararem para a revista das mercadorias.

Brasílio descera do trem na noite anterior, em Aquiraz; viera para o posto para conseguir carona, na boleia ou na carroceria de um caminhão já desprovido da carga. Conviera que, conversando com os fiscais, nenhum caminhoneiro veria malícia na altura de seus vinte e cinco anos. Coincidira de encontrar outro estradeiro, não fugitivo, por certo, posto que nos olhos tinha um carecimento fundo, próprio de quem busca acolhimento, mesmo em troca de trabalho duro. Com meia dúzia de palavras, os dois se viram afins. Não fora difícil a conversa com os fiscais; eram, os fiscais, homens no uso de um brim sem brilho, diferente do cetim lustroso de seus chefes no escritório.

Brasílio e Branquinho dormiram no depósito de papéis sujos, macios, de fazer inveja à estreiteza de uma cama. Alimentaram-se de broa com café, num quiosque de madeira. O dono, à míngua de outros fregueses, servia uma pinga cujo cheiro há muito entranhara as paredes, as telhas de pouca altura.

O soldado descera do ônibus sem pagar a passagem. Brasílio não o invejara, mas quis ser outro, com dinheiro no bolso para pagar o transporte, com sobra para a refeição diária. O soldado há tempo se fizera amigo dos fiscais; tinha a particularidade de também trabalhar por turno; no presídio cercado pela mata de cajueiros ao fundo, atrás de tudo. Nas árvores, com frutos feito penduricalhos num rosto de mulher, ninguém subia. A fábrica de caju em calda, ali perto, tinha um vigia para evitar a ação de algum teimoso. Os fregueses do quiosque apanhavam cajus caídos, bicados de sabiás. A rodovia, ali, recendia aos cajus, à resina nos troncos.

Brasílio e Branquinho mantiveram-se à margem da conversa, intervindo com interjeições curtas; agradaram, pelo visto. O soldado convidou-os para comer no refeitório do presídio, entre os presidiários. Brasílio, há dois anos, gritara abaixo a ditadura na Avenida Guararapes; preso, sofrera maus-tratos, tapas e choque elétrico. Três meses de cadeia. Solto, sempre que havia grita de estudantes nas ruas, era preso para dar conta de sua responsabilidade na distribuição de folhetos com pregação contra os milicos. Por fim, decidiu viver clandestino. Seu irmão, Felício, não tivera a mesma sorte; fora sentenciado a cinco anos de prisão. Para evitar que fosse objeto de romarias inconvenientes, com visitas da família, dos padres que reclamaram da condenação, era levado de um presídio a outro, feito um apenado itinerante. Felício, como Brasílio, tinha um sinal com fios ralos de cabelos acima da sobrancelha do olho direito.

Os dois deixaram a bagagem no depósito, sob os papéis; nada de monta, posto que cada um tinha uma sacola de lona fina, com cuecas, uma calça e uma camisa além das do corpo.

O presídio fora pintado há pouco. O cheiro da tinta, ainda ativo, mas sujeitado à fragrância dos cajueiros. No portão de ferro gradeado, os dois, mesmo com o aval do soldado que os chamara, foram revistados. Sob a camisa, no bolso de trás, o cabo da escova de cabelos de Brasílio, foi confundido com um revólver.
- Tá usando escova de mulher, seu cabra! – brincou a sentinela.

Não havia relógio em nenhuma das paredes do quadrilátero no meio do presídio. O tempo brumoso, os derradeiros pios dos sabiás na fria folhagem dos cajueiros, davam conta de que o ar também se acumpliciara às sentenças de condenação em cada nicho do presídio.

Os dois comensais sem a roupa de presidiário distraíram os outros, lembrando que do lado de fora o uso de roupas tem o cheiro e a cor da preferência livre. Brasílio e Branquinho sentaram juntos, na ponta de uma mesa comprida, num banco de madeira de comprimento igual. Quis olhar, Brasílio, para cada um daqueles rostos, descobrindo-lhes o passado, o tamanho da sentença. Não perdeu a fome, mas estacou vendo Felício a sua frente, com a mecha do cabelo cobrindo o sinal acima do olho.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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