domingo, 26 de agosto de 2012

Malabaristas do horror

* Por Laís de Castro

Todos vão dizer que eu estou mentindo e, ainda uma vez, vou repetir que na minha família tem todo tipo de gente, menos mentiroso. Então o que será descrito, embora sórdido e desditoso, é a mais pura verdade, e vou contar tudo o que eu vi e ouvi, já que estava lá e portanto fui testemunha ocular do massacre mental e profissional e ocorreu naquela tarde, que se alongou noite adentro como uma alucinação que deixa mudas as pessoas a quem se mostra. Pessoas em torno de uma mesa, silenciadas pelo espanto, a boca em articulações sombrias, sem emitir um som, o cérebro embotado pelo choque da grosseria que não se queria registrar, como se as pessoas estivessem sendo introduzidas a um túnel de pesadelo do qual sabiam que não iriam mais escapar, mas que precisavam suportar pelo menos enquanto buscavam uma saída. Essa busca, hoje, já sei quanto tempo durou para cada uma daquelas vítimas, diretores conceituados de produtos idem, mas vocês ainda vão esperar algumas linhas para saber. O que se sabe é que ali se avisava, numa voz meio fanha, com ésses engolidos, sílabas e concordâncias assassinadas, que os dias seriam piores dali para a frente.

Já vou avisando que o orador tinha cara de cavalo e barriga de égua prenha, mas sua verdadeira prenhez era verbal e diarréica e ele ia parindo ali mesmo toda sua biliar verborragia sobre os interlocutores presentes. Vou logo esclarecendo que o cara não conseguia juntar duas palavras sem cometer três erros de português, “nós pode ganhar dinheiro isso é fácil, mas nem num interessa mais porque dinheiro é pouco perto de poder realizar, nós vamos faze uma empresa grande e que dá lucro, vocês vai trabalhar mais, ganhar menos, vender nossos produto e produto bonito é produto que vende”, ele vomitava as palavras de um modo pausado como um padre velho, tinha uns dentes pra dentro e todos juntos, bem esquisitos, parecendo os dentes de primata. E lá vinha mais um capítulo hemorrágico de lucubrações desde o cérebro bem menor do que a barriga até nós, sujeitos àquela calamitosa opressão. Éramos oito (eu também estava sentada lá), como oito gatas e gatos mansos, a que ponto chegamos, simulando aprovação e conjugando o verbo fingir diante daquele delírio ou daquele acesso de epilepsia talvez, (de repente, uma epilepsia crônica). Eu, sinceramente, já pensando em escrever essa história e registrando tudo o que saía daquela boca insana para empregar depois na minha vã literatura.

Os outros eu não sabia, naquela hora o que pensavam, mas depois eu fui sabendo e os pensamentos eram sempre os mais tristes. De minha parte também fiquei com pena das orelhas daquele homem feio que avisava toda hora que tinha muitos milhões e era formado em filosofia (onde, diabos, se formam analfabetos em filosofia?). Também vou escrever isso no meu conto, o gordo é um personagem ridiculamente inédito, gordos e bobos dão bons personagens, todos sabem. Eu imaginava e ia protocolando também os trejeitos e tiques nervosos que ele projetava e marquei bem marcado que as mãos dele, como se fossem patas redondas de cavalo mesmo, não se cruzavam direito sobre o incomensurável abdome tão grande que repuxava deselegantemente os botões da camisa azul bebê. Anotei também que uma das sobrancelhas tremia involuntariamente e as narinas dançavam com a de um cão ofegante sobre o buço amarelo.

É preciso falar também do buço e dos cabelos amarelos, ele parece um bóia-fria paranaense, todos sabem, com o perdão dos queridos paranaenses, que o Paraná exporta bóias-frias loiros de olhos verdes para São Paulo e outros Estados. A maioria deles, no entanto, caminha pela Rodovia Raposo Tavares e é simpática, doce, afável. Esse excremento é aquele filho que a gata mata quando nasce imbecil, mas a mãe dele não era gata e ele sobreviveu. Voltemos à mesa e à reunião.

Depois de umas duas horas de massacre, “quem quiser ficar fica, mas se a empresa ficá bem eu não sei se você vai ficá bem mas se a empresa ficá mal quem vai se ferrá é vocês”, comecei a ficar com pena dos ouvidos dele que tinham que ouvir aquela besteirada até morrer, os ouvidos dele deviam sangrar de tanta tristeza porque depois da segunda hora os meus ouvidos começaram a sangrar para dentro do cérebro e eu comecei a ver tudo nublado e quase desmaiei por overdose de asneiras (sem trocadilho com a origem da palavra) e do chorrilho de impropriedades e gafes, da verborragia inútil e indigesta. E o hôme continuava,como um gravador tísico e lesado, a avisar que “todos tinha que trabalhar mais e ganhar menos eu tô preservando emprego eu sou um filósofo”, pobres Platão e Sócrates, rolando em suas centenárias tumbas. Pobres dos meus ouvidos, sangrando.

O pior foi a tortura e a tontura de todos se manterem em silêncio ali, os mais medíocres jogando a cabeça para cima e para baixo como gansos velhos, em sinal de aprovação àquele discurso desolador e doloroso, pesaroso e aflitivo. A única coisa que me animava era a oportunidade de reviver o teatro mambembe aqui e agora. Ele tinha até o discurso de “a gente morre e os milhão fica”, e parecia que se animava na mesma medida em que a sala se tornava inexoravelmente sufocante. Era um sádico retardado.

Quando me mexi pela primeira vez, senti que as pernas estavam dormentes, troquei de lado e fiquei até adormecer do outro lado, reparei que não só as pernas mas a cabeça também havia adormecido, eu já não ouvia aquela enxurrada de lixo que voava daquela boca sobre as nossas cabeças, apenas meus olhos se mantinham abertos, mas de vez em quando os absurdos vinham mais alto (embora o homem falasse baixo como um padre em confessionário, eu tenho certeza, esse indigente foi seminarista). Porém quando os absurdos passavam dos limites, meu cérebro, desacostumado com tanto pauperismo mental tocava um alarme que levantaria até doente do coma, “tem que aperfeiçoar todo dia, precisa faturar mais para a empresa e trabalhar dez, doze horas, tem que agradecer de ter emprego, tem que morrer de enfarto aqui doando até as vísceras para esta maravilhosa firma que te acolhe e você tem que moer seus comandados tirar cada fibra de seus músculos”, isso já sou eu que estou inventando porque o cavalo louro nem sabe se músculo tem fibras, ora bolas.

O silêncio entre os diretores ficava cada vez mais pesado, tão pesado que quando eu levantei para ir ao banheiro quase precisei abrir uma cortina de chumbo para deixar o recinto. Na volta eu observei (e anotei, claro) que o ódio pairava no ar e que havia uma tal densidade de hipocrisia, maldade e deslealdade misturadas ao raro oxigênio que ali se respirava que, se houvesse um termômetro daqueles que mede febre para medir essas langonhas ia voar mercúrio para todo lado, ele ia estourar sem direito a apelação a instâncias superiores.

Agora vocês vão me perguntar porque eu estou dando tanta importância àquele maldito e desditoso encontro, àquela purulenta reunião ou àquele cara de cavalo com barriga de égua prenha. Bem, porque a reunião foi há dez anos e eu sei o que sobreveio a ela e vou contar em seguida, não sem antes dizer que minha veneranda e brilhante tia repetia sem cansaço “minha filha o dinheiro está nas mãos dos burros, egoístas e ambiciosos, já não há como salvar o Brasil”.

Sei que não interessa a ninguém o destino de um cavalo velho, mas é preciso que se diga, pelo menos para consolar a tia morta e para polvilhar ainda uma vez de esperanças esse melancólico país, que o cavalo gordo agora bate nos 180 quilos de remorso e solidão, depois de trocar, definitivamente, a razão pela ambição, a pouca decência que lhe restava pela prática inidônea da exploração, pela inglória perfídia de espalhar a ojeriza em torno de si mesmo. Como se plantasse cardos e colhesse espinhos embora fossem espinhos de ouro, malfadados e mal falados, retorcidos como a boca também murcha que naquele rosto de cavalo se instalou durante essa década.

Os empregados que dali saíram humilhados, fora um que morreu e outro que emigrou para a Austrália sem deixar rastros, em pouco tempo seguiram seu caminho, com certo sucesso, eventuais fracassos, mas nenhum que se comparasse ao do filósofo analfabeto. Um fracasso melancólico, o bóia-fria se cobriu de ouro e de lágrimas, de brilhantes e de uma indigência pessoal indescritível. Bem feito.

Os sócios que jogaram a toalha ficaram recebendo por alguns anos, esmóleres, alguns espinhos de ouro com que o gordo lhes agraciava, fazendo questão de deixar claro que estava alimentando, de má vontade, no coxo, bois e vacas que não lhe haviam dado medalhas.

Entretanto, como a verdade, (ainda que apenas através dos olhos), vem sempre à tona, todos os que estavam em torno daquela mesa branca naquele dia negro sabem, hoje, que o que aconteceu ali foi um espetáculo circense de quinta categoria, com atores amadores trôpegos e vencidos, molambos da sorte, malabaristas do horror, trapezistas do medo e palhaços da vida.

Assim foi e eu assino em baixo, não sem assumir, no meu rosto o sorriso irônico de quem manteve a saúde, a lucidez e a sabedoria intactas para contar essa macabra história.

* Jornalista do grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.

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