terça-feira, 31 de julho de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Salvo pela Literatura.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado,crônica, “Despertar”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, poema “Ancestrais”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Lição de casa”.

Coluna Porta Aberta – Rubem Alves, crônica, “Sobre bruxas e vassouras”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo “Coração ferido: a irracionalidade da razão”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Salvo pela Literatura

A rebeldia de Edgar Allan Poe, nos anos de sua juventude (característica, aliás, de que nunca se livrou), não o credenciava a ser escritor e nem a exercer outra profissão qualquer. O rapaz detestava os estudos, o trabalho, as responsabilidades e amava a boêmia, o carteado e o álcool. Tornou-se rotina chegar em casa altas horas da madrugada, carregado pelos amigos, tão embriagado que talvez nem soubesse o próprio nome, para desespero dos pais adotivos, o casal John e Francis Allan. As brigas com o padrasto tornaram-se, como seria de se esperar, constantes. E não somente pela costumeira embriaguez, mas por causa das dívidas de jogo que o moço contraía e que o tutor tinha que pagar.

A passagem de Edgar pela Universidade de Virgínia durou pouco, por volta de um ano, se tanto . Alguns biógrafos garantem que foram apenas sete meses. Ao contrário do que havia ocorrido na escola escocesa em que estudou, quando escapou por muito pouco da expulsão e esta somente não ocorreu porque a família decidiu regressar aos Estados Unidos, desta vez, não teve jeito. O rapaz foi expulso. Pudera! Seu estilo aventureiro e boêmio era incompatível, claro, com a vida acadêmica. Foi a gota d’água no seu relacionamento com o tutor. Paciência tem limites. E ocorreu o rompimento de relações entre ambos.

O jovem, sem profissão, e agora sem amparo financeiro, no verdor dos 18 anos, alistou-se nas Forças Armadas. Foi uma das raras decisões acertadas que tomou na época e surpreendente até. Afinal, o natural seria um sujeito rebelde, como ele, fugir do serviço militar, já que a vida na caserna é caracterizada pela extrema disciplina e irrestrita obediência aos superiores hierárquicos. Ou seja, tudo o que ele detestava fazer e não fizera até então.

Ocorre que, para meu espanto, e de todos os que já leram alguma de suas tantas biografias, o danado do “cabeça oca” tinha um talento inato para as letras. Escrevia, e muito bem, poemas e mais poemas e, nos raros momentos de sobriedade, lia tudo o que lhe caía nas mãos referente à literatura, e não somente do seu país. No mesmo ano em que se alistou, publicou seu primeiro livro, “Tamerlane and other poems”. E isso aos 18 anos de idade! A mágoa com seu pai adotivo (imotivada, óbvio) foi tão grande que, ao se alistar, o fez com outro nome, que não o seu: Edgar A. Perry.

Como seria de se esperar, sua passagem pelo quartel não durou muito, apenas dois anos (o que era uma eternidade para os seus padrões). Em 1829, sua madrasta, Francis, morreu. Foi um golpe muito grande para o rapaz. Aquela mulher amável e generosa amou-o como filho de fato e fez, via de regra, vistas grossas aos seus defeitos e rebeldia. Foi nessa ocasião que Edgar publicou seu segundo livro, “Al Aaraf”. A dor da perda da mulher que o acolheu quando tinha apenas um ano de idade e ficou órfão de mãe, o reaproximou do padrasto, com o qual se reconciliou. Mas... a reconciliação duraria pouco, muito pouco, pouquíssimo.

John, supondo que o moço, após tanta cabeçada, havia aprendido a lição, chegou à conclusão de que o melhor caminho para o filho adotivo era a vida de soldado, para a qual achava que levava jeito. E inscreveu-o, em 1830, aos 21 anos, na tradicional Academia Militar de West Point, em Anaheim, tradicional centro de formação de oficiais do Exército dos Estados Unidos e sonho da maioria dos jovens norte-amerticanos. E o que vocês acham que aconteceu? Que Edgar, finalmente, se regenerou, tomou juízo e fez carreira? Não, não e não. Apenas sete meses após seu ingresso na instituição, o rapaz foi expulso, após uma série de prisões, sempre pelos mesmos motivos: embriaguez, insubordinação e desordem.

Desta vez, não houve jeito. John rompeu, de vez, as relações com o problemático filho adotivo e nunca mais as reatou. Ambos jamais voltaram a se falar e a manter qualquer tipo de contato. O padrasto viria a morrer quatro anos após a ruptura, em 1834, sem se reconciliar com o já então escritor.

Sem a bolsa do tutor, para custear-lhe as despesas e desperdícios (principalmente), Edgar teve que trabalhar. E, como a única coisa que sabia fazer era escrever (e, convenhamos, não é pouca coisa) partiu para esse caminho. Deu-se bem, excepcionalmente bem (posto que não financeiramente). Foi nessa ocasião que enveredou para o caminho da ficção, redigindo histórias curtas (que então eram novidade nos Estados Unidos), de mistério e de terror.

Desabrochara o escritor, que já não era inédito, porquanto havia lançado dois livros de poesia. O Exército perdeu um, provavelmente, mau oficial, mas as letras ganharam, em contrapartida,genial inovador. Pode-se dizer que Edgar Allan Poe foi salvo (só em parte, é verdade) pela Literatura. Querem saber o que aconteceu na sequência? Bem, nada como um pouco de suspense, ao tratar da vida de um mestre do gênero. Depois... Bem, deixo a continuação da narrativa de sua vitoriosa carreira para outra ocasião.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk 
Despertar


* Por Evelyne Furtado


A franja do mar persegue meus pés, que fogem dos seus carinhos como o diabo da cruz. Uma onda incansável ameaça meu calcanhar. Quanto mais fujo, mais força ganha o mar.

Não há o que temer. Não há. Já nem ouço o marulho. Ouço trovões que na verdade são as batidas de um coração sobressaltado. A fuga não será vã: a franja do mar não me alcançará!

Acordo como se estivesse rompendo a água após um mergulho. Da janela entra um pedaço de céu e o barulho do mar tal como é. Não há tempestade. Não há trovejar. Faz sol. Um dia esplêndido! A realidade serena o coração.

• Poetisa e cronista de Natal/RN

Ancestrais*

** Por José Calvino de Andrade Lima

A mulher que é fonte
de inspiração poética
dedico esse poema
à minha musa inspiradora

Antepassados
nossos ancestrais
vieram de Portugal
e da África.

Da poesia, eu te vejo
daquele amor antigo
eu fico igual um bruxo
invento um amor sem veto.

Poeta, filho da poesia
das nove musas.
O poeta pintor
pintou as musas
(brancas, negras, índias & mulatas).



* Extraído do livro: "Fiteiro Cultural", p.123 - ed. esgotada.

** Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 12 títulos publicados, todas edições esgotadas. Blog Fiteiro Cultural, http://josecalvino.blogspot.com/

Lição de casa

* Por Talis Andrade

Pernambuco todas as vezes que se revoltava
lhe cortavam um pedaço de terra
e arcabuzavam os libertários
os corpos enterrados
na Igreja de Santo Antônio

Os nascidos pobres enforcavam
os corpos atirados aos cães

Pernambuco aprendeu a lição
Para conservar o chão
que restava se aquietou
Lavou o sangue que ficou
e nunca mais pensou em revolução

In Balas de Festim, livro inédito


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

Sobre bruxas e vassouras

* Por Rubem Alves

NUNCA ENTENDI AS RAZÕES por que as bruxas usavam vassouras como seu meio de transporte. Pelo que sei, as bruxas são entidades dotadas de grande poder, e não há razões para que saiam pelos céus exibindo a sua indigência, usando esse objeto sujo como se fosse um disco voador. Eu preferiria, para seguir as histórias das mil e uma noites, que elas viajassem num tapete persa mágico ou que cavalgassem um macio dragão soltando fogo pelas ventas.

Mas todas as coisas, mesmo as mais estranhas, têm as suas razões. Aprendi que é fato comprovado: as bruxas viajavam por terras maravilhosas e desconhecidas tendo uma vassoura no meio das pernas.

Aconteceu assim.

Ia eu numa das minhas caminhadas matutinas pela fazenda Santa Elisa quando me vi diante de uma árvore cheia das flores brancas vulgarmente chamadas trombetas, pendentes dos galhos como pequenos lustres. Essa flor, eu a conheço desde a minha infância. Elas são grandes, lindas e perigosas. Sua brancura esconde poderes alucinógenos incomparáveis. Podem ser letais. Sei de um pesquisador sóbrio que só de manipular essa flor no laboratório ficou doidão.

Comentei esse fato com o cientista que me acompanhava, e ele me informou que, segundo informações da internet, há uma curiosa relação entre essa flor, nome científico datura suaveolens, e a lenda das bruxas que voam montadas em vassouras. Quem quiser que entre no Google: +datura+witch.

As bruxas foram uma invenção da Inquisição. Para justificar a sua queima nas fogueiras pela glória de Deus, diziam que eram adoradoras do demônio. E mais, que até transavam com o dito. Na verdade, as mulheres que a Inquisição amaldiçoou com o nome de bruxas eram sacerdotisas de uma antiqüíssima religião matriarcal anterior ao cristianismo baseada na Terra, no ciclo dos astros, no tempo e nas plantas e animais. Faziam, com freqüência, uso de plantas psicoativas em busca de sabedoria e de experiências com o sagrado.

Uma das poções alucinógenas usadas por elas tinha o nome de "ungüento voador", feita com uma mistura de ervas, uma delas sendo a trombeta ou datura, que era também conhecida como "o suco da alegria". A datura, misturada com várias outras ervas, era fervida em óleo, provavelmente num caldeirão, e depois bebida num ritual. Aquelas que a tomavam tinham alucinações, delírios e amnésia. A experiência devia ser boa -caso contrário teria sido abandonada.

Aconteceu, entretanto, que em decorrência dos seus perigos, as sacerdotisas trataram de inventar uma versão mais suave e segura. Ao invés de beber a poção, imaginaram esfregá-la em mucosas sensíveis. Assim, fazia-se a poção mágica mexendo a beberragem com uma vassourinha de pelos macios. A vassourinha de pelos macios era então usada para umedecer as mucosas das regiões entre as pernas, genitais. Assim, vinham-lhes deliciosas alucinações, e elas voavam, montadas na vassourinha. ..

Está assim explicada a lenda das bruxas montadas nas vassouras. Mas bruxa velha, com nariz adunco e comprido, chapéu preto e pontudo, isso é invenção de padre. Acho que as sacerdotisas podiam até ser muito bonitas..


* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

Coração ferido: a irracionalidade da razão

* Por Leonardo Boff

Não estamos longe da verdade se entendermos a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por ela mesma. Já analisamos nestas páginas como se operou a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva (os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.

Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas. A centralidade agora é ocupada pelo poder do "eu", exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do "eu". Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que recalcou ou destruíu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.

O ideal que o "eu" irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pri fundador desta refundação do mundo. Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie. Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.

O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.

Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos nos salvar.Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com a razão instrumental. Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra. Em seguida, se impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza: garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas. Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários. Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.

Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Insensato hedonismo.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “A cidade dos sonhos”..

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Ai de mim”.

Coluna Portas Aberta – Elaine Tavares, artigo, “Santa Catarina, onde o negro ainda é invisível”.

Coluna Porta Aberta – Antônio Francisco, poema “A casa em que a fome mora”.

Coluna Porta Aberta – Hélio Bruma, poema “Mulher malvada”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Insensato hedonismo

O enorme fosso que separa os países ricos (pouco mais de duas dezenas) dos pobres (bem mais de uma centena) se acentuou nos últimos anos, ora com mais intensidade, ora com menos. Tal constatação não consta de nenhum panfleto esquerdista e nem é a retórica de nenhum político socialista, embora até pudesse ser. É a conclusão do organismo mais confiável que existe no mundo capitalista: o Fundo Monetário Internacional, em sucessivos relatórios que emite periodicamente.

O que faltou o FMI dizer até aqui foi que boa parte dessa concentração de riquezas em poucas mãos se deveu ao atual sistema econômico internacional, criado no pós-guerra que, ora sutilmente, ora ostensivamente, aumenta, a cada dia que passa, a dependência do chamado Terceiro Mundo e corta, pela raiz, suas esperanças de reverter um dia essa situação, a despeito da crise econômica que afeta os países industrializados, reitero.

É verdade que algumas sociedades nacionais, e bastante populosas, como China e Índia (detentoras do maior contingente humano do Planeta), o Brasil (que tem a quinta maior população), além da Rússia pós-União Soviética, se não chegam a ameaçar (ainda) diretamente essa hegemonia, vêm dando largos passos nessa direção. São os chamados “países emergentes”, que como a própria designação eufemística sugere, “emergem” do abismo da miséria para a luz de acelerado e contínuo desenvolvimento. Oxalá ele perdure e se acentue, mas com equitativa distribuição de renda.

Todavia, apesar disso, de uma forma ou de outra, dois terços da população mundial estão condenados a passar toda uma vida trabalhando para que o um terço restante esbanje. Trocando em miúdos, são praticamente cinco bilhões de pessoas que estão nessa situação. É muita gente, vocês não acham?! É óbvio que sim. Pior é que boa parte dos recursos econômicos totais gerados é investida, cada vez mais, em sofisticados e inúteis armamentos, que contêm, em seu âmago, apenas o princípio da destruição de tudo o que já foi feito, desde os tempos imemoriais das cavernas até estes dias confusos (e compreensivelmente violentos), em que todas as escalas de valores começam a ser paulatinamente subvertidas e substituídas por um hedonismo, vedado à maioria esmagadora da humanidade, e a um consumismo perdulário, que só tem redundado no acelerado desperdício dos já escassos recursos naturais terrestres.

Em outras palavras, o que a natureza levou milhões de anos para formar (petróleo, carvão e outros recursos energéticos e mat´rias-primas essenciais) e que, se usado com critério e racionalidade, poderia fazer do Planeta um paraíso, está sendo consumido, sem justiça e nem juízo, por uma minoria privilegiada, num espaço de tempo curtíssimo, de, praticamente, quatro gerações. O que poderia (e deveria) ser o patrimônio comum de toda a espécie inteligente da Terra, está indo parar nas mãos de meia dúzia de espertalhões, que detém o poder de fato, não por direito, mas por “esperteza” e pela força. Pelo sistema vigente, não há como escapar desse determinismo.

Esses povos privilegiados, que há apenas pouco mais de um século conviviam com fome, pestes, miséria, quando não com insensíveis e sanguinários tiranos, descobriram um meio fácil de enriquecer e de satisfazer fantasias hedonísticas (inclusive imorais, doentias e asquerosas, como a corrupção de meninas dos países pobres, prostituídas no repudiado, mas florescente “turismo sexual”). Ou seja, fazendo com que populações em estágios supostamente inferiores de civilização trabalhem para eles, satisfaçam suas fantasias e até as suas taras..

Primeiro, foi através dessa imoralidade, chamada pelos historiadores de “colonialismo”, iniciada quando das primeiras navegações e consolidada há pouco mais de 110 anos, com o indecente “Tratado de Berlim”. A pretexto de conduzir “povos pagãos às benesses do cristianismo”, as potências da época partilharam o continente africano, espezinhando nações inteiras, que já antes vinham pagando intolerável preço pelo seu modo de viver, tendo seus filhos escravizados e considerados como coisas, máquinas ou meros “animais de carga”. Agora, a tática é mais sutil, mas nem por isso menos indigna (e maligna).

Durante duas décadas, as potências ocidentais – notadamente os Estados Unidos – estimularam o surgimento de ditaduras títeres (inclusive em quase toda a América Latina, o Brasil no meio), a pretexto de livrar as sociedades tidas como atrasadas do comunismo (antes, era para que se vissem livres do paganismo). Manejando, habilmente, os cordões, as potências ocidentais levaram esses governos ilegítimos – que assumiram o poder à força, à revelia dos respectivos povos e praticaram inomináveis atrocidades (como torturas, prisões ilegais e genocídios) – a assumirem compromissos imensos, endividando seus miseráveis países até a alma. E as dívidas foram de tal monta, que qualquer leigo perceberia, por mais tolo e desinformado que fosse, com facilidade, que eram impossíveis de serem pagas. De quebra, esses espertos credores ficaram com a prerrogativa de determinar os juros que queriam receber, caracterizando cruel e vergonhosa usura, que em algumas partes perdura até hoje.

Não é de se estranhar, pois, que o Fundo Monetário Internacional faça a constatação do aumento da miséria no Terceiro Mundo. Ou seja, que detecte que os países ricos enriquecem cada vez mais, às custas desses povos miseráveis, apesar e a despeito da atual e de outras crises econômicas.. Surpreendente, aliás, seria se o resultado não fosse esse. Afinal, o FMI é o braço das potências em todo esse processo imoral.

A mais elementar das lógicas, porém, indica que situações, como essa, são impossíveis de se perpetuar. Perduram duas, três, cinco, dez gerações até, mas jamais para sempre. A força tem se mostrado impotente e inútil para debelar e controlar o desespero. Notadamente, quando este atinge o auge, o que parece estar prestes a ocorrer. Afinal, Spartacus, há dois milênios, provou que o fraco, quando não tem mais nada a perder, é páreo, sim, para qualquer potência, por imbatível que esta pareça. A história registra que esse ex-gladiador, à frente de dezenas de milhares de escravos, chegou a colocar a poderosíssima Roma, rainha dos povos, em xeque, de joelhos, por pelo menos dois anos, movidos, apenas, pela força do desespero!

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A cidade dos sonhos


* Por Talis Andrade
A cidade que procuro
a cidade que vivi
no pastoreio dos sonhos

A cidade que vivi
os carneirinhos pastavam
a erva dos sonhos

A cidade que procuro
a cidade que vivi
no pastoreio

a contar
os carneirinhos
na verde relva dos sonhos



* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).

Ai de mim


* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral

Roubastes de mim um beijo.
- Ai de mim! Ai de mim!
Agora sofro enquanto adormeces
pois teus carinhos dormem também.
- Ai de mim! Ai de mim!
Escondo as lágrimas que me escapam
pelo canto dos olhos.
Não mais respiro sem ti.
Percebes minha angústia e fustiga-me
com um beijo de fome, seca meu
rosto e se vai dizendo baixinho:
- Ai de mim! Ai de mim que morro
sem ti.



* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário
Santa Catarina, onde o negro ainda é invisível


* Por Elaine Tavares


As terras de Meiembipe, onde hoje cresce Florianópolis, eram originalmente ocupadas pelos Guarani. Quando por aqui chegaram os primeiros europeus, de origem espanhola, o que encontraram foi esse povo tranquilo e passeador. Como traziam enfeites de penas, os invasores os chamaram de Carijós e apesar de terem recebido os estranhos com delicadeza, a recíproca não foi verdadeira. Com o lugar se transformando em ponto de parada para os que iam mais ao sul, em direção à Buenos Aires, os indígenas trataram de mover-se e foram entrando para o interior. Ainda assim, quando em 1651 o bandeirante Francisco Dias Velho enviou seu filho para a região, este travou alguns combates com grupos que insistiam em permanecer nas redondezas, afinal, essa era sua terra. Em 1675 Velho também veio para o lugar e aí começa a história da ocupação definitiva da ilha de Santa Catarina, no povoado chamado de Nossa Senhora do Desterro. Esse povoado quase desapareceu depois que Dias Velho foi feito morto por piratas, mas ainda assim algumas famílias resistiram, sendo que em 1712 aqui viviam 142 famílias de brancos, muitas delas com seus escravos.

Os açorianos chegaram mais tarde, em 1748 e engrossaram a população. A ilha começou a ser ocupada em vários pontos, onde também havia fortes para proteção contra os espanhóis. O que se sabe é que tanto no primeiro período como na época da chegada dos imigrantes, já existiam negros no lugar, a maioria escravos de ganho (eram usados para ganhar dinheiro para seus senhores, trabalhando como sapateiros, artesãos e domésticos), já que as famílias não tinham grandes glebas de terra para cultivar.

Nesses primeiros tempos, conforme conta André Luiz Santos, no importante estudo que realizou sobre a pobreza em Florianópolis (http://labcs.ufsc.br/files/2011/12/Tese-03-PGCN0383-T.pdf), a cidade crescia na beira do mar, próximo à matriz, onde se aglomeravam as famílias brancas proprietárias, os comerciantes, assim como os pobres (marinheiros, degradados, foragidos, etc...). A vila era espaço de todos. Foi só com a chegada dos escravos a partir de 1700 que começou a aparecer a segregação. Como com o passar do tempo alguns desses escravos conseguiam a liberdade, era comum que eles montassem cortiços – ainda próximo ao centro – onde faziam suas moradas, nas famosas casinhas de porta e janela.

Ainda segundo o trabalho de André Luiz Santos, em 1810, na ilha, de cada três habitantes, um era de origem africana. Aqueles que fugiam dos seus “donos” também formavam quilombos e faziam suas casas nos morros que circundavam a vila. Escondidos pelo mato eles formavam família e ainda desciam para trabalhar no porto ou fazer biscates. Com o fim da escravidão, os negros libertos, sem condição de ficar morando nas casas do centro foram ocupando a periferia e o primeiro grande bairro dos negros foi a Toca, atrás do Hospital de Caridade.Com o crescimento do comércio e os brancos proprietários melhorando de vida, não só os negros, mas todos os pobres foram definitivamente expulsos da região central, os cortiços que ali existiam foram demolidos e os sobrados da elite econômica começaram a ser erguidos. O governo instituiu pesados impostos aos que moravam no centro e aos pobres não houve alternativa a não ser ocupar a periferia. Em 1920, outra lei obrigou todos os habitantes a ter instalações sanitárias nas casas. Sem condições de fazer as obras, os pobres e os negros recém-libertos subiram os morros que contornavam a cidade.

Apesar de segregado nas encostas, o povo negro se fortaleceu como comunidade unificada. Já era assim antes quando criaram, no início da escravidão, a Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos, em 1728. Esse sempre foi o jeito que os negros – escravos e depois libertos – encontraram para se proteger: a união. Mais tarde eles foram os primeiros a organizar times de futebol e as famosas sociedades bailantes, onde se encontravam e conspiravam. Eram concorridos os bailes no Clube 25 de dezembro, por exemplo, no alto da Agronômica, o qual podiam frequentar os brancos, e como ele, outros clubes se formavam e congregavam as comunidades. A vida social e política dos negros sempre foram intensas, e tanto que nos anos 30 a primeira mulher a se eleger para a Assembleia Legislativa foi uma negra de Florianópolis: a professora Antonieta de Barros.

Ao longo de todo esse tempo, desde a ocupação a partir do litoral, os negros também foram adentrando pelo estado afora, levados como escravos rurais nas fazendas de gado e de cana-de-açúcar. Depois, libertos, seguiram construindo suas vidas como comunidade, aportando todos os aspectos de sua rica cultura, originária dos diversos países do continente africano, de onde foram sequestrados. Há núcleos negros importantes em cidades como Joinville, Chapecó, Jaguaruna, Lages, Itajaí, São Bento, Campo Alegre, Blumenau, São Francisco do Sul, Três Barras, Criciúma, enfim, em todos os cantos do estado.

Hoje, os negros somam mais de 800 mil almas em Santa Catarina, perfazendo 13% da população e, segundo Osvaldo Vargas, da Coordenadoria da Igualdade Racial do governo estadual, geram perto de 150 milhões de reais por ano em ICMS. “Mas, na realidade, o que a gente vê é que esse dinheiro não chega aos negros. Não temos acesso ao conhecimento sobre onde são investidos esses recursos e porque não existem políticas voltadas à população negra”.

E é por conta da importância que esse segmento da sociedade tem que existe agora essa coordenadoria. Ela surge na esteira de uma lei federal, criada no governo Lula, que obriga os estados a formularem uma política de igualdade racial. No caso de Santa Catarina, o trabalho ainda está muito incipiente. Conforme Osvaldo, que ocupa o cargo de coordenador, ainda é possível notar uma grande resistência entre os membros do governo. “Creio que são dificuldades culturais ou falta de conhecimento. Mas, a gente ainda nota certo desdém por parte de algumas pessoas. Só que isso não impede que a gente avance. Estamos na fase de montagem de comitês dentro das secretarias para depois exigir do governador um projeto de lei que crie o Plano Estadual da Igualdade Racial, que defina claramente as políticas públicas voltadas para os negros. Tudo vai devagar”.

Para Osvaldo Vargas, essa lentidão também é fruto da estrutura bastante incipiente da coordenadoria. Pouca gente e muita demanda. Tanto que, até agora, o trabalho tem sido feito basicamente por ele e só no âmbito do tema “negro”. Existem questões relacionadas aos ciganos e aos indígenas que nem chegaram a aflorar. O caminho é longo. “Nós, negros, vivemos um momento muito bom na conjuntura, temos um marco histórico com um novo deputado negro, Sandro Silva (PPS), assumindo uma cadeira na Assembleia. O primeiro, depois da professora Antonieta de Barros, em 1934. E ele está disposto a travar essa luta pelo Plano de Igualdade Racial, daí que vamos começar com isso e ir avançando”.

Sandro Silva é natural de Joinville e vem de uma sólida militância na cidade onde também já foi vereador e presidente da Câmara. Vindo de uma família humilde, ele encontrou na educação a força para vencer os obstáculos da vida. Nunca foi militante da causa negra, construiu sua carreira política desde a universidade onde atuava como professor de física. Mas, desde que entrou na vida pública percebeu que esta é uma necessidade reprimida e vem atuando em consequência. Hoje, ocupa a cadeira do deputado Altair Guidi que está de licença. Possivelmente o deputado exerça o cargo por apenas 60 dias (assumiu em 12 de junho), mas nesse curto período que estiver representando sua comunidade quer trabalhar para ver respeitadas as demandas do povo negro. Esse pode ser o empurrão que estava faltando para que essa importante comunidade saia da invisibilidade. “Vamos garantir espaço para os movimentos, vamos conversar com o governador e fazer sair do papel esse Plano da Igualdade Racial, incluindo também os índios. Esse será um compromisso para nós”.

78 anos depois que a primeira mulher negra ocupou uma cadeira no legislativo catarinense, Sandro pretende mostrar que a comunidade negra não pode mais permanecer invisível.

• Jornalista de Florianópolis/SC

A casa em que a fome mora


* Por Antônio Francisco


Engoli três vezes nada
E perguntei o seu nome
Respondeu-me: sou a fome
Que assola a humanidade,
Ataco vila e cidade,
Deixo o campo moribundo.
Eu não descanso um segundo
Atrofiando e matando
Me escondendo e zombando
Dos governantes do mundo.

Me alimento das obras
Que são superfaturadas,
Das verbas que são guiadas
Pros bolsos dos marajás
E me escondo por trás
Da fumaça do canhão,
Dos supérfluos da mansão
Da soma dos desperdícios,
Da queima dos artifícios
Que cega a população.

Tenho pavor da justiça
E medo da igualdade,
Me banho na vaidade
Da modelo desnutrida,
Da renda mal dividida
Na mão do cheque sem fundo,
Sou pesadelo profundo
Do sonho do bóia fria
E almoço todo dia
Nos cinco estrelas do mundo.

Se vocês continuarem
Me caçando nas favelas,
Nos lamaçais das vielas,
Nunca vão me encontrar,
Eu vou continuar
Usando um terno xadrez,
Metendo a bola da vez,
Atrofiando e matando,
Me escondendo e zombando
Da burrice de vocês


• Poeta potiguar
Mulher malvada


* Por Hélio Bruma
Levou o meu B. B. King,
um vaso de porcelana,
meu livro de Sagarana,
outro disco do Sting;

matou minha samambaia,
botou sabão no aquário,
quebrou a porta do armário,
no vaso, entupiu a saia;

e como se não bastasse
deixou na delegacia
uma queixa, patifaria,
como se eu a maltratasse.

Ah, que mulher desgramada
por quem eu me apaixonei,
o que vi nela não sei
mas gosto da desgramada.



• Poeta

domingo, 29 de julho de 2012

Leia nesta edição:

Editorial – Driblando circunstâncias.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Reencontro diário”.

Coluna Direto do Arquivo – Daniel Santos, conto “Contra a corrente”.

Coluna Clássicos – Mark Twain, ensaio, “A prece da guerra”.

Coluna Porta Aberta – Olga Matos, poema “Receita do tempo (amargura”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, artigo “Uma cidade sem biblioteca”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Driblando circunstâncias

A vida de Edgar Allan Poe foi dramática e sofrida, muito em decorrência de circunstâncias que fugiram ao seu controle, mas, em grande parte, também, por causa de suas ações no mínimo desajuizadas. Seus erros, vícios e defeitos pessoais, porém, não tiram o mérito da sua obra. Muito pelo contrário. Esse fascinante homem de letras tinha tudo para fracassar (e em termos pessoais, de fato, fracassou), mas seu talento era tão grande, que não houve como não deixar seu nome registrado, e para sempre, na história da literatura norte-americana e mundial.

Suas desventuras começaram cedo, muito cedo, quando recém havia completado um ano de idade. Edgar Allan Poe nasceu na cidade de Boston, Estado de Massachusetts, em 19 de janeiro de 1809. Era filho do ator Daniel Poe Junior – sujeito de quem o mínimo que se pode dizer é que era irresponsável – e da atriz Elizabeth Arnold Hopkins Poe. Quando mal havia completado o primeiro aniversário, o pai abandonou a família, deixando a esposa grávida de Rosalie, a irmã do escritor. Para complicar ainda mais sua situação, a mãe morreu durante o parto, deixando-o órfão, quando mal sabia sequer falar. A providência, porém, veio em seu socorro.

Edgar foi adotado por Francis Allan (daí haver incorporado esse prenome ao seu nome, anos depois) e o seu marido John Allan, próspero mercador de tabaco de Richmond, Estado da Virgínia, que, no entanto, embora o tenha criado como filho, nunca o adotou formalmente, de papel passado. Do pai biológico... nunca mais se soube notícia. Simplesmente, sumiu no mundo.

Há quem atribua a rebeldia do jovem Edgar à revolta contra seu insensível genitor. Faz sentido. Contudo, o rapaz não passou jamais por qualquer espécie de privação, quer na infância, quer na juventude. Teve todo o amparo do seu tutor, que nunca deixou lhe faltar absolutamrnte nada. Pelo que depreendi das biografias do escritor que li, na mocidade, ele não foi nem mesmo tão diferente dos adolescentes de hoje. Tinha temperamento difícil, é verdade, mas não era um sujeito maldoso. E, a seu favor, tinha inegável talento para as letras, que revelou precocemente.

Talvez tenha faltado ao jovem Edgar (o que é muito provável) o pulso firme de um pai disciplinador. Seus pais adotivos satisfaziam todos seus caprichos e vontades sem lhe impor nenhuma espécie de limite e faziam vistas grossas aos seus “pecadilhos”, o que, convenhamos, nunca é bom para a formação de um homem responsável. Em contrapartida, o rapaz foi educado em bons colégios, inclusive da Inglaterra, tendo estudado na Escócia, onde a educação era mais rígida do que nos Estados Unidos, quando o casal Allan resolveu passar uma temporada na Europa. O rapaz, porém, encontrava imensa dificuldade em se adaptar aos rígidos padrões disciplinares britânicos.

Foram inúmeras as ocasiões em que Edgar foi punido por violar as normas da escola. Não eram infrações, digamos, “sérias”, longe disso. Eram coisas de rapaz, nada diferentes do que os moços de sua idade fazem hoje em dia. Ocorre que a disciplina das escolas britânicas era conhecida por sua extrema rigidez (que descambava para o exagero), por ser dura e implacável. As mínimas violações das normas intermas eram severamente punidas, não raro com castigos físicos. E isso, em vez de corrigir o jovem, tornava-o ainda mais rebelde e mais infeliz.

Pequeno, franzino e frágil, desde muito cedo Edgar revelou forte propensão para surtos depressivos, o que era agravado pela severidade dos seus mestres. O rapaz era, sobretudo, talvez até por temperamento, emérito contestador de todo o tipo de autoridade, fato que iria lhe trazer, claro, inúmeras complicações, e não somente na juventude, mas por toda a sua vida, que aliás não foi muito longa. O escritor morreu relativamente jovem, aos 40 anos de idade, em Baltimore, Estado de Maryland – onde passou os piores momentos de sua curta existência – em 7 de outubro de 1849.

Sua morte foi tão misteriosa (e o mistério foi a matéria-prima preferencial de sua magnífica obra literária), que merece capítulo a parte nestas minhas descompromissadas considerações. Até hoje, desconhecem-se as verdadeiras causas dela e ainda há, passados tantos anos, acesos debates acadêmicos a esse propósito. Mas, voltando a tratar da juventude do escritor, é necessário ressaltar que ele foi tantas vezes advertido pela direção da escola escocesa em que estudava, que esteve na iminência de ser expulso. Só não foi porque seus tutores resolveram regressar aos Estados Unidos.

De volta ao seu país, Edgar foi matriculado na Universidade de Virgínia. Ali, óbvio, a disciplina não era tão rígida. Todavia o rapaz não mostrava o mínimo interesse pelos estudos, embora se revelasse inteligente, perspicaz e talentoso. Não aspirava colar nenhuma espécie de grau e sequer lhe passava, mesmo que remotamente, em se tornar cidadão comum, convencional, “homem bem sucedido” em alguma profissão, qualquer que fosse, conforme o padrão da época.

Às maçantes e cansativas horas de aulas diárias, preferia a alegria artificial das esfumaçadas tavernas. Às lições de Matemática ou Geografia, achava mais fascinantes e atrativas as figuras de um baralho, nas intermináveis noitadas de carteado, com malandros e rufiões, das quais voltava, invariavelmente, carregado pelos amigos, por estar tão bêbado a ponto de não conseguir parar de pé. O jovem Edgar era incorrigível boêmio, um problema (e dos maiores) para a família que tão generosamente o acolheu e que jurou fazer dele um “homem de bem”.

Ao ler (e transcrever) estas anotações, fico me perguntando: como um sujeito tão irresponsável e indisciplinado pôde se transformar num escritor, atividade que exige rigorosa e constante autodisciplina? E não somente isso. Como esse sujeito se tornou pioneiro das letras, criador de dois gêneros literários e um dos grandes poetas da sua geração?

Só consigo concluir que seu talento era tão grande, tão singular e tão excepcional, que sobrepujou todos seus hediondos fantasmas e legiões de seus demônios interiores que, até o fim da vida, tentou afogar (em vão) em tonéis e mais tonéis de álcool, o levando a driblar circunstâncias adversas e a simplesmente ignorar os obstáculos. . Oportunamente, trarei à baila como tudo começou. Mas... só depois de abordar outros tantos tropeços, erros, maluquices e contradições desse gênio atormentado e nem um pouco exemplar.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Reencontro diário

* Por Pedro J. Bondaczuk

A auto-aceitação é um dos fatores fundamentais para que nos sintamos felizes (embora, claro, não seja o único). Devemos nos aceitar como somos e, para que isso se torne possível, temos que levar uma vida simples e ordenada, sem excessivas ambições e nem culpas, conhecendo os nossos limites e somente nutrindo sonhos e desejos que sejam factíveis e estejam ao nosso alcance. Difícil? Sem dúvida.

Temos duas tendências antagônicas, ambas fontes de profunda insatisfação pessoal. Uma é a da supervalorização das nossas supostas virtudes e talentos. Achamos que somos mais, muito mais do que aparentamos ou do que os outros achem e que não somos devidamente valorizados pelas pessoas do nosso convívio. Convivemos, por isso, com permanente sensação de sermos injustiçados (quando, na maioria das vezes, não somos).

A segunda tendência – no meu entender ainda pior do que a primeira – é a da subvalorização. É o que os psicólogos chamam de “complexo de inferioridade”. Julgamo-nos inferiores a todos e sofremos muito por isso. Tornamo-nos tímidos, retraídos, arredios, vacilantes e profundamente antissociais.

Damos excessiva importância às opiniões alheias ao nosso respeito e não nos aceitamos como somos, o que, claro, é um grande erro. Por fim, acabamos por adquirir o vício da infelicidade e sequer atinamos com a mais remota possibilidade de mudança de comportamento para melhor.

Outro fator, diretamente ligado à auto-aceitação, é a convivência com culpas (reais ou imaginárias, não importa). Quem age dessa forma, vive em perpétuo sobressalto, temendo punições e/ou retaliações. O melhor exemplo, deste tipo de pessoa, é o estudante Rodion Romanovitch Raskolnikov, personagem criado pelo escritor russo Fedor Dostoievsky, em seu clássico “Crime e Castigo”.

O referido indivíduo, apesar de ser professor de línguas, vivia em estado de profunda miséria. Achava-se, claro, injustiçado, ainda mais quando observava uma velha agiota, cuja obsessão era a de juntar valores (dinheiro, jóias etc.), sem usufruir dos benefícios de sua riqueza. Ponderou e concluiu que esta era uma pessoa inútil e até nociva à sociedade e que ninguém se importaria se a matasse e subtraísse seus bens.

Da cogitação, à efetiva ação, foi um passo. Em determinado dia, Raskolnikov assassina a velha agiota a machadas. Contudo, as circunstâncias forçaram-no a não se limitar a esse crime. Teve, também, que matar Lisavieta, irmã da anciã, que havia visto o cadáver no chão e, certamente, o denunciaria.

A partir de então, o estudante vive no inferno. Sequer aproveita o resultado do roubo que praticara, no caso algumas jóias de relativo valor. Arrependido do que havia feito, mesmo sabendo que não poderia voltar atrás no crime, enterra, sob uma pedra, o que havia roubado. Mas a consciência de Raskolnikov não lhe dá tréguas. Com todas as pessoas que cruzava, não importa se estranhas ou conhecidas, tinha a sensação de que elas sabiam o que havia feito. E o olhar – por mais inocente e casual que fosse – que estas lhe dirigissem, era, em sua mente atormentada, enfáticos libelo de acusação.

Mesmo depois que a polícia prendeu um suposto culpado, que inexplicavelmente havia confessado o crime que não tinha cometido, o remorso e a sensação de que todos sabiam que era o verdadeiro assassino persistia na mente do estudante. A consciência não lhe dava tréguas. Até que um dia, estimulado por Sônia, a mulher que amava, confessou às autoridades seu delito.

São muitas as vezes em que convivemos com essa mesma sensação de culpa, devendo ou não. E sofremos inutilmente, quando a atitude mais sábia seria a de nos livrarmos desse inútil peso na consciência. Como? Muito simples. Se realmente prejudicamos alguém, o caminho mais sábio, sem dúvida, é o da reparação da falta. Caso não seja possível repará-la, o melhor que se faz é ter a humildade de pedir perdão ao ofendido.

O irônico é que os verdadeiros culpados, aqueles que de fato se esmeram em fazer o que não devem, nunca se julgam maus. Têm a consciência embotada. Quando eu era estudante de Direito, fui, um dia, com meu professor, visitar uma cadeia pública da minha cidade, para conversar com os presos. Nas entrevistas (foram umas dez), nenhum, absolutamente nenhum deles admitiu o delito de que era acusado. Eram todos uns “anjinhos”, totalmente inocentes, injustiçados pela família e pela sociedade.

Um deles era acusado de haver chacinado, de forma bárbara e brutal, toda uma família, apenas para roubar alguns míseros trocados, crime que causara profunda revolta popular na época. Mas, a despeito das provas contundentes contra ele, teimava em se declarar (e jurava por todas as juras) inocente. Insistia em afirmar que fora preso por engano. Não fora, é claro. Um sujeito assim jamais terá dor de consciência. Não mais a possui.

O escritor francês, Paul Valéry, constatou, em um de seus textos, a propósito da relação que há entre auto-aceitação e felicidade: “O homem feliz é aquele que ao despertar se reencontra com prazer e se reconhece como aquele que gosta de ser”. Como se vê, é uma receita simples, simplérrima, ao alcance de todos, que não implica em nenhuma complexidade e independe da ação alheia. Que tal experimentarmos agir assim?



* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk