domingo, 17 de junho de 2012

Xícaras de porcelana

* Por Risomar Fasanaro

Eu ainda era muito criança, quando morava na Vila Militar do 14 RI, em Socorro, Pernambuco, município de Jaboatão. E me lembro com muito carinho de algumas amigas de minha mãe.

Cada uma deixou em mim uma lembrança especial. Dona Dina, hoje próxima dos cem anos, era a que fazia os suspiros mais incríveis que já comi, e devia haver algum segredo especial, porque jamais consegui fazer igual. Dona Luci era a única que tinha revistas em casa. Eu ía pra casa dela pela manhã, e se minha mãe não mandasse me chamar para almoçar, eu ficaria ali o dia inteiro lendo O Cruzeiro, sentadinha em um canto da sala daquele casal sem filhos e que, talvez por isso, me tratasse com tanto carinho.

Ali foi um dos lugares onde mais li e, já naquela época escolhi o nome do filho que sabia, teria um dia: Eduardo. Por quê? Porque pra mim nenhum outro nome poderia ter um significado mais forte do que o de Eduardo VIII, aquele homem que havia colocado o amor acima de tudo. Abandonando tudo por amor. Lia tudo sobre aquele rei. Mas não lia só isso, lia as revistas de ponta a ponta: Davi Násser, Pif Paf, Millor, As Garotas do Alceu... Algumas vezes dona Luci me deixava recortar as fotos de alguma atriz de cinema de maiô, e com muito cuidado eu colava em cartolina e fazia vestidos de papel, para vesti-las, já que nunca tive bonecas.

Outra amiga muito especial era dona Helena, a mulher mais linda que morava naquele lugar. Suas roupas eram diferentes das das outras mulheres, e todas de muito bom-gosto. Havia muitos mistérios que a cercavam e quando li Miguilim, de Guimarães Rosa, era dona Helena que eu via.

Havia também dona Laís, a mais expansiva, a mais engraçada. Para criticar a programação do cinema do quartel que nós crianças freqüentávamos de segunda a segunda, ela comentava: “eles pegam vários pedaços de filmes que não têm nada a ver um com o outro, emendam e passam pros bestas verem.” E todas riam, concordando. Opinião que eu discordava inteiramente. Adorava ver os filmes de Doroty Lamour, atriz que eu imitava com toalhas de banho e flores nos cabelos, e os filmes de Tarzã, para depois imitar Jane nos galhos do abacateiro.

Era em nossa casa que elas se reuniam todas as tardes. Ali faziam lanche onde não faltavam cuscus de milho com leite de coco, manuê, tapioca, bolo de massa de mandioca, hoje chamado de Souza Leão, e os famosos suspiros de dona Dina.

Outra amiga de minha mãe que eu adorava era dona Alaíde, mas nem sempre ela podia participar daquelas rodas, porque era mãe de sete filhos, e vivia sempre muito ocupada com eles. Ela era a mãe de minha maior amiga, Nonon e a casa aonde eu mais ia, para conversar com a avó de minha amiga, dona Madalena, uma índia legítima, que diziam ter sido retirada da tribo para se casar com o avô de minha amiga.

Mas aqui quero falar de Maria. Maria que todos chamavam de Maria de Zacarias. Em alguns lances que escapavam das conversas das mulheres, consegui captar naquela época, que eles viviam juntos sem serem casados, e moravam ao lado da Vila. Ela começou a freqüentar nossa casa como manicure, e logo se tornou amiga de minha mãe. Eu a adorava e algumas vezes a acompanhava quando ia à Vila dos oficiais, do outro lado do rio, fazer as unhas das mulheres daqueles militares. Foi em uma daquelas casas que tomei sorvete pela primeira vez.

Sempre que minha mãe se distraía, eu ficava por ali, tentando escutar a conversa daquelas mulheres. Acho que ali já começava a brotar “a escritora”. Elas bordavam lindas toalhas em ponto-de-cruz, crivo, rechilieu; outras faziam os acabamentos dos vestidos que minha mãe costurava. E falavam, falavam, falavam todo tempo. E eu, por ali, sempre escutava trechos de algum segredo, retalhos de algumas mágoas, pedaços de alguns sonhos.

Quando minha mãe me via na sala, me mandava ir imediatamente brincar no quintal para não ouvir a conversa dos adultos que, segundo ela, não era coisa de criança. E pelo que fiquei sabendo alguns anos depois, realmente não eram conversas que crianças devessem ouvir.

Mas alguma coisa ficou do que ouvi. De Maria, especialmente, jamais me esqueci. Não foi em nossa casa. Foi na casa dela, aonde fui com outras duas meninas. Maria tratava as crianças com o mesmo carinho que dedicava aos adultos. Recebeu-nos, mandou-nos entrar e depois de algum tempo de conversa, forrou a mesa com uma toalha bordada com lindos cravos vermelhos, tirou quatro xícaras de porcelana da cristaleira e nos serviu bolo com café.

Preocupada, porque jamais minha mãe nos servira café em xícaras de porcelana, reservadas sempre para as visitas “de muita cerimônia” – pessoas que raramente a visitavam – expressei minha preocupação à Maria:

- Você vai nos deixar tomar café nestas xícaras de porcelana? Não precisa, Maria, nós não somos visitas...

E, ali, naquela vila onde não havia nem asfalto, nem bancas de jornais, muito menos livrarias, ouvi daquela mulher semi-alfabetizada uma das maiores lições que alguém poderá ter-me dado, em toda minha vida: dessas lições que fazem parte da natureza, da sensibilidade que nasce com a gente. Ensinamentos que normalmente não se aprendem em nenhuma escola, em nenhuma faculdade, mas aquelas que nos brotam da alma. Feito olho d’água que nasce no meio da floresta e ninguém vê, ninguém fez nascer, brotou sozinha, e beneficia uma multidão de flores, folhagens, bichos, pessoas:

- Xícaras de porcelana, Risomar, não são para as visitas, são para as pessoas que a gente ama. Nem sempre as visitas que a gente recebe são pessoas queridas. A elas posso servir café em canecas de alumínio, de barro, não têm pra mim, a importância que vocês têm. Vocês são pessoas que eu amo, elas não, apenas as conheço.

Aquelas palavras ficaram em mim para sempre. Xícara de porcelana pra mim é uma metáfora que passou a fazer parte da minha vida. E quando às vezes, aborrecida, sirvo alguma coisa em “xícaras de barro” às pessoas que amo, fico mal, pior do que a pessoa que bebeu o que servi. E imediatamente me vem à lembrança a lição que um dia recebi daquela mulher extraordinária.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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