quarta-feira, 23 de maio de 2012

Girimunho


* Por Marco Albertim


Girimunho é um filme que está nos limites entre o documentário e a ficção. Como documentário, não tem o impacto de uma revelação, mas entranha-se de tal modo na rotina prosaica da pequena São Romão – sertão de Minas Gerais -, que desnuda-lhe a alma. A vila é banhada pelo rio São Francisco. Ao invés de cobri-la com o sopro úmido de mistura com o lume da lua fogosa, o rio acolhe a memória de moradores antigos. O rio tem a confiança da velha Bastu – Maria Sebastiana, 83 anos. Ela deixa flutuar na superfície, chapéu e roupas do falecido marido – Feliciano, ferreiro. A correnteza, sem pressa, desliza feito o juízo de Bastu. Não vira o marido soltar o derradeiro suspiro, dera fé da morte na tez fria das pálpebras fechadas. Dormindo em quartos separados, não por divórcio de corpos incompatíveis, mas prenhes da madura noção de conveniências. Feliciano morrera com o fígado embebido de pinga; não se mostra no enquadramento da câmara para confirmar o minguamento. Sua silhueta é urdida na prosa miúda de Bastu com os netos Miltinho, Batatinha, Preta e Branca. É na memória da velha, nos colóquios de seus olhos serenos com a calma do rio, que o roteiro cede à ficção. O roteiro é de Felipe Bragança; mais do que o esforço literário, exigiu apuro nos olhos e sentimento tátil na espreita dos costumes.

O filme tem começo num folguedo de ritmo próprio, musical; anuncia-se como documentário flagrando a densidade do negrume noturno. Adquire pulsação sem tropelia, inda que mostrando pés de homens e mulheres numa coreografia de alegria módica. Se a câmara teve o cuidado de não intimidar a espontaneidade dos gestos, enriqueceu a sequência com o recurso de ângulos inferiores, poupando olhos, evitando o ricto de cada canto. Os diretores – Clarissa Campolina e Helvécio Clarins Jr. - não tiveram o trabalho de antecipar o gestual de cada personagem. As personagens não interpretam, vivem a si mesmas. O cenário não é virtual, bem como Bastu e sua amiga Maria do Boi, de 85 anos, não se maquiam para dizer o que dizem à frente ou não de uma câmara de cinema.

Batatinha, a neta, apronta a mala para viajar; quer estudar em Pirapora. Para não sumir de vez, diz que enviará fotos pelo Orkut. A promessa instila certo mal-estar, posto que um traço de sofisticada comunicação ameaça a empatia natural de suas falas curtas, robustas de sentimentos. As falas são como legendas no rico cenário tão bem aproveitado pela fotografia. Há legendas em português, sem dar a impressão de excessos, posto que dão luzes à verve da mesma matriz das narrativas de Guimarães Rosa.

A verve está em conluio com a fotografia. O diretor de luz, Ivo Lopes Araújo, dá uma aula de fotografia. A acanhada São João expõe-se em minúcias na beira do rio; na pobre arquitetura das casas, na escassez de seus móveis. Não há cena ou sequência sem informação, todas têm composição. Inda que não tivessem, os diálogos acentuar-lhes-iam o fulgor.

Bastu, tarde da noite, expõe-se ao sereno nos fundos da casa. A neta adverte-a do perigo da friagem.

- Não estou gostando disso – assusta a avó.

- Tô com terência no tempo – responde Bastu, sem susto.

A resposta é tão curta quanto telúrica.

Girimunho não é filme de grandes plateias. Na terceira noite de exibição no Cinema da Fundaj, dez pessoas ocuparam o auditório de 197 poltronas.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Prefiro falar bobagem do que não falar nada. Peço licença para escrever que não vi o filme, mas gostei mais da descrição.

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