sábado, 19 de maio de 2012

Esse homem me ama como quem saboreia cada lombada dos morros que nos cercam

* Por Laís de Castro

Na segunda-feira ele me amou com o cuidado de quem transplanta um canteiro de alface. Cada muda tem que ser apartada da outra, cada uma merece seu afago, seu lugar na terra, seu momento de ganhar mais espaço para desabrochar e crescer. Assim, ele cultivou cada milímetro do meu corpo, que se entregava ao afago de suas mãos ásperas, em contraponto com a delicadeza com que preparava o novo canteiro. A gentileza com que me amava exorcizava de seu corpo o acabamento primitivo, os dedos grossos, as feições menos finas quase escondendo os olhos verdes pequenos e profundos naquele rosto másculo e a barba por fazer.

Em nenhum momento tentei ou quis mudar aquele homem que aceitei por inteiro e intensamente, com uma admiração não planejada, nem prevista, nem original. Ele era aquilo.

Na terça-feira me amou com a elegância de quem tira folhas secas de cercas vivas, uma a uma, num ritmo cadenciado e intenso, como se tocasse meu corpo em música. Sua pele rosada de imigrante italiano me agradava, a sensação de que ele estava completo ali me emocionava. Era um homem e sua terra, sua mulher, nossos filhos.

Nunca se abalou com o meu sucesso. Apenas se recolhia. Mas quando as luzes se apagavam, conversava com os jornalistas ao natural. Nenhum ciúme ou inveja, não havia supérfluos naquele homem. Eu sempre cantei e queria continuar cantando. Ele sabia disso e sorria, generoso, mas não altruísta.

Na quarta-feira, me amou como quem visita o cafezal, pesquisando cada árvore, adivinhando seus males, sua sede, suas necessidades, montado em seu cavalo negro, rival diurno de minhas atenções. Visitou meu corpo com a doçura de quem procura alguma necessidade, satisfazendo-a imediata e plenamente. Acalmou minhas dores, disseminou os maus pensamentos, afastou as fraquezas, adjurou meus medos. Seu amor nunca deixava dúvidas e nem questões por resolver. Ao fim de sua inspeção, meu corpo jazia feliz, acalentado como cada um de seus poucos pés de café, protegido pelo prazer vindo daquele ser silencioso e vigoroso. Efetivo. Apaixonado por cada cafeeiro do sítio como por meus pêlos ou meus cabelos.

Na quinta-feira ele percorreu meu corpo devagar, parando em cada curva sinuosa como quem saboreia cada lombada de seus morros, olhando o vale ao longe. Desceu aos meus lagos e revisitou minhas entranhas como aos lagos e entranhas da terra em que vivemos. Esse homem seguro, simples e completo.

Com a dignidade de um ser telúrico, me acompanha aos palcos em que me realizo ao cantar. Com um sorriso afável no canto da boca, demonstra o prazer que tem em me ouvir. Com um abraço firme avisa que fui, mais uma vez, bem.

Sabe dividir comigo o prazer da degustação dos aplausos, sem se deixar envolver pelo vazio dos frívolos. Com um toque sutil na minha mão, depois de algumas horas, avisa que sua pilha fraqueja. É tempo de recarregá-la em nossa terra. Eu agradeço baixinho, em seu ouvido, sua paciência com os fúteis.

Naquela noite, ele me ama como se voltasse à casa materna, à energia de suas origens. Ele sabe que eu sei. Na noite anterior, no hotel, não pôde me amar. Mas hoje me envolve e preserva, me ampara como uma cria bem-vinda, um bezerro novo que nunca antes tinha visto a luz de seus olhos. Este homem íntegro e encantador me ama com o carinho que usa para podar nossas parreiras no dia de São João. Eliminando sobras e rebarbas, com suas mãos enormes que transbordam cortesia e paixão.

E eu, todo o tempo, me pranteio em lágrimas de felicidade. Amo esse homem porque ele me perpetua em paz e gozo.

* Jornalista, trabalhou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.

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