quarta-feira, 18 de abril de 2012







População flutuante: presente!


* Por Mara Narciso

A Santa Casa de Montes Claros, como o maior hospital do norte de Minas e sul da Bahia, centraliza demandas de saúde de toda a região. Dessa forma, a cidade de Montes Claros com seus quase 400 mil habitantes se vê dia após dia com uma população flutuante visível em suas ruas, no entorno da Santa Casa. Dezenas de ônibus das secretarias de saúde das cidades próximas, até das não tão próximas atravancam as ruas estreitas. Toda a área fica congestionada, como um mercado, com trânsito engarrafado, e pessoas na porta do hospital, notadamente nos arredores da hemodiálise, ao lado do pronto-socorro.

O hospital tem todas as especialidades médicas e áreas de atuação, um amplo laboratório, serviço de ponta em oncologia, sendo sua maternidade a mais tradicional da cidade. É natural que os consultórios médicos tenham se proliferado nas imediações. Há prestação de serviço desde exames até tratamentos estéticos, e assim levas de gente chegam e se vão todos os dias, em busca de atendimento.

Em sua maioria, são pessoas de parcos recursos, que vêm de ônibus da prefeitura, ou de carona no transporte de pacientes da hemodiálise, ou fretam um táxi alternativo, ou vêm de ônibus comum de carreira. Uma parte delas é da zona rural, e para chegar a tempo para consultas de manhã, saem de casa por volta de duas ou três horas da madrugada. São deixadas na porta dos prédios, sem conhecer nada, cheias de medo e algumas vezes com extrema timidez por já terem passado por dificuldades e até humilhações para conseguirem a consulta, por vezes custeada pelo município de origem. Depois de passarem por esse calvário, é inaceitável que sejam tratadas com pouco caso.

Vergadas pela doença, inseguras e com pavor de estarem com uma moléstia incapacitante, apresentam-se cabisbaixas, humildes, e espantam-se quando são recebidas pelo médico de pé, e de mão estendida para um cumprimento. Nessa hora, atrapalhadas, chegam a entregar os exames que já trazem da sua cidade.

Algumas portam telefone celular, e raro é aquele que não toca durante a consulta, sendo atendidos, pois a pessoa teme perder a condução de volta, já que geralmente é o motorista quem liga.


Algumas vezes estão nervosas pelos aborrecimentos passados, e chegam brigando, mas ao serem bem recebidas, se acalmam. Quase todas são submetidas à consulta, exame ou tratamento, na parte da manhã ou começo da tarde e voltam no mesmo dia. Após o atendimento, vão para a rua e aí começa outra penitência, pois não têm, muitas vezes, como se alimentar direito, ou um ponto de apoio, embora algumas cidades tenham aqui sua casa de passagem. Nos exames sob anestesia saem assim mesmo, cambaleantes e trôpegas, levadas pela mão por um assustado acompanhante. Algumas chegam a se deitar no passeio público. Há, portanto, um desconfortável hiato entre o serviço e a ida para casa.

Nesse tempo ficam como que largadas pela cidade, especialmente na Praça Honorato Alves, em frente à Santa Casa, onde esperam pelo horário da partida. Como a praça tem boas sombras e está cuidada, atrai essas pessoas e vira um estranho acampamento por entre seus bancos e canteiros. Quem já veio antes, chega prevenida, trazendo alimentos e bebidas, e se não, compram nas imediações, dividindo entre si, num nítido compartilhamento. Tomam refeições na rua e em restaurantes simples no entorno do hospital. O calor sufoca em boa parte do ano, se não em quase todo ele, e para se refrescar, se deitam no gramado. A pouca chuva não chega a incomodar essa população grande, que se acotovela todos os dias no centro da cidade. Quantos serão?

Angustiadas pela má acomodação, sentadas no chão, sem banheiros nas proximidades, esperam por horas, improvisando como podem, entrando nos prédios vizinhos, para tornar a espera menos insuportável. Pelo que passam, são até resignadas.

Após a última ser atendida, elas retornam ao transporte, à longa estrada, chegando em casa, algumas vezes, após um percurso a cavalo ou a pé. Logo estarão de volta para novos exames, consultas ou tratamentos. A vida delas é assim.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

2 comentários:

  1. Um retrato sem retoques desta nossa moribunda e tão injusta realidade. É o lado jornalista da Dra. Mara. Felizes os seus pacientes, que têm em você uma médica com tão sensível percepção do cotidiano. Abraços.

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  2. No prédio do meu consultório tem no térreo um serviço de endoscopia digestiva e colonoscopia. Impossível ficar indiferente às pessoas sentadas na porta da rua, sonolentas, medrosas e ainda incomodando e sendo incomodadas. O que fazer? Procuro sempre ter uma atitude cristã, mesmo sendo agnóstica. Agradeço a Pedro por ter conseguido uma foto da porta do Pronto-Socorro da Santa Casa de Montes Claros. Obrigada, Marcelo, pelos elogios.

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