sábado, 28 de abril de 2012

Cantem e bebam à minha morte

* Por Eduardo Murta



Era com um poema curto, rimado, que Suélio saudava os que aportavam por ali. Pedia licença como estivesse sob a lona de um circo, e emendava: 'Que o amor lhe visite na terra que acolheu Dona Beja /E estenda flores feito um pássaro forra um ninho/porque quando partir, eu tenho certeza/seguirá com Araxá no coração, nunca mais sozinho'. Colhia o chapéu à esquerda do peito e se curvava para ouvir as palmas. Logo apresentava a si e à oferta de serviços.



Prometia contar dos amores secretos do lugar, do poder de cura das termas históricas – sem se esquecer de sua inspiração afrodisíaca. Revelava que horas àquelas águas eram capazes de resultar em noites de amores, em gêmeos, trigêmeos, até quadrigêmeos. Ia enumerando as atrações com cuidado de sobrepor a mão à altura da boca, a que não percebessem a maré de álcool. Não fazia conta de quantas doses já envergara naquela manhã. Bebia como se bebia café: o pé posto no chão, e lá estava ele, degustando.



Daí, deixava que toda e qualquer inspiração lhe visitasse. Fazia censura a nada. Reunia os turistas, como para contar um segredo sussurrado, e apontava para os canários da praça. Admirassem, porque haviam sido pintados, um a um, por ele. Sabia nomes (Piupiu, Alpiste...), preferências (o coreto, os varais de Juliana...), e prazo de renovação da tinta. Prestassem atenção também aos cavalos, já que era ele o adestrador oficial, com procuração e carteira exclusiva da prefeitura. E sobre a igreja mais antiga, não fora ele, nem o pai ou o avô, mas um tataravô quem ajudara a assentar tijolo por tijolo.



E, precisando de um intérprete, não se acanhassem. Era mestre em inglês, espanhol, francês e italiano. Arriscava no alemão, árabe e ainda japonês. No Português, modéstia, ninguém menos que Guimarães Rosa já lhe ouvira como humilde aluno. Suélio se alongava e cortava a fala com olhares flamejantes, a se assegurar de que punham crença naquilo tudo. Sendo sim, prometia, para mais tarde, a leitura das cartas romanceadas que Dom Pedro remetera a Dona Beja. Havia, descrevia ele, desejo até no contorno das letras.



Assegurava que a tataravó de uma tia se enamorara a um açougueiro, primo de uma cantora lírica cuja mãe era vizinha de um artesão – ufa!!! – ligado ao filho de um carteiro. Essas conexões simples, relatava, fizeram com que alguns envelopes não chegassem ao destino final, mas a ele. Suélio afiançava e, gesto secreto, se benzia pela mentira inocente. Fosse pela coleção de pecados, teria chances ralas de salvação, desde menino.



O saco de maldades passava pelos tiros de sal na passarinhada, o sumiço das dentaduras de Sá Inácia, as incertas no galinheiro do Sargento Canedo, a nudez espiada das meninas de escola. E, louvado fosse, o dinheiro surrupiado à cestinha do dízimo. Era para a cachacinha. Também a soma de vezes incontáveis em que comungava com a alma afogando em impurezas. Tonto, retornava à fila como dízima periódica, até que um bom cristão lhe acomodasse de volta ao banco.



Mas renunciava ao rótulo de beberrão. Admitia o namoro discreto e, sublinhava, respeitoso, com os balcões de bar. Dizia que servia mesmo era ao reencontro com os velhos amigos da velha guarda. Uma, duas, onze, quinze doses, o mundo começava a tomar outras formas. Implorava que testemunhassem, porque o chão estava ficando louco, sem norte. E as pernas o traíam, num balé de conspirações.



Noite assim, abortava o rumo de casa. Passava pela praça, o cinema em teias de aranha, pegava a rua da cadeia e ia dar com o cemitério. Armava, ele mesmo, dois ganchos que davam amparo à rede. Se embalava por lá. A máxima era simples: se lhe cuspiam à cara, todo santo dia, que a bebida iria lhe matar, não queria dar trabalho a ninguém. Sequer tirava os sapatos. E elegera, previamente, a ala dos indigentes. Com sombra, claro, porque não haveria de ser despertado pelos sinais ainda meninos do sol.



Dia seguinte, baixava pela cidade dizendo que se cansara de tudo. E de todo mundo. Buscava o cartório, exigindo que marcassem a data do enterro. Era solenemente ignorado. Procurava pelo delegado, mas ouvia a história de sempre, que, havia 45 anos, não se dava notícia de morte matada por ali. Sugeriam que falasse com padre Bernardino. Bateu à porta da paróquia, olhos baixos. Queria se render. Estendeu as mãos, adentrou. Propôs um pacto. Disse que estava disposto a partir, desde que falasse a um deus que estivesse além de justo. Que fosse misericordioso. Assim, e só assim, haveria como se salvar. Havia uma premissa mais – a de que os passarinhos lhe fizessem morada, ninhos e cantoria junto aos arcos do túmulo. Era, resumia ao padre, para serenar um mundo que se pusera louco, sem norte, traído por um balé de conspirações irremediável. Que lhe estendessem, agora, uma taça de embriaguez espiritual.



* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja.

Um comentário:

  1. Um bêbado encantador, bom para ler, mas ruim de conviver. Na tela é bem melhor.

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