domingo, 22 de abril de 2012







Ambiguidades

* Por Lêda Selma

A língua portuguesa (especialmente, a “brasileira”) é rica em apelidos. Tanto para nomes próprios quanto para comuns. E o pior: a maioria nenhuma relação possui com o original. Na Bahia, então... Laurinda vira Lousinha; Maria, Lica; Olga, Pequena; Emília, Bida; Justina, Sussu; Esmerilda, Catita; Escolástica, Tatá; Tomasina, Totote; Zenóbio, Sinhô; Almerinda, Nana... Para moça desdonzelada por vontade das quenturas íntimas, um acervo e tanto de significados: deu um mau passo, perdida, desonrada, sem lacre, bulida... E as que se firmaram no ofício da ‘perdição’: quenga, mulher corrida, mulher de rebuço, decaída, ervoeira, ambulatriz...

Outras preciosidades dão um certo charme à famosa cachaça, muito conhecida como pinga e, também, como aguardente ou branquinha: ventania, fôlego-quente, matusquela, tiririca, aço, água-dura, água-bruta, água-de-briga, baronesa, tiúba, sinhazinha, arromba-peito, quebra-goela, gafanhoto, brutamontes, donzela, tasca-aqui, lambisgoia, reco-reco, abstinência, quero-colo, xixi-de-cobra, samba-enredo, lusco-fusco...

Apelidos, codinomes, alcunhas, pseudônimos, cognomes, criptônimos... não importa. O certo é que, às vezes, causam tremendas confusões e ambiguidades, como no caso de determinadas bancárias, muitas delas “letradas”, algumas, incautas, outras, místicas e, em comum, adeptas ou fanáticas por cartomancia, quiromancia, numerologia, tarologia e tantas outras enganologias (os demais adeptos perdoem-me o ceticismo).

Pois não é que as tais codificaram umas fugidas suspeitas, em pleno horário de serviço, e acabaram arranjando a maior confusão? E, justo, com o austero gerente do banco, homem de aparência mal-ajambrada, rosto sem riso. voz áspera e inquisidora:
– Cadê a Inocência?
– Foi ao cardiologista.
– Então, chame a Vivalda.
– Saiu um pouquinho mais cedo para ir ao cardiologista.
– Peça à Credulina para vir à minha sala.
– Impossível! Ela marcou horário com o cardiologista.

Preocupado com tamanha incidência de visitas ao tal especialista, o jeito, decidiu o gerente, investigar o problema responsável pela evasão das bancárias durante o expediente. Para tanto, convocou, com a urgência aparentemente requerida, o cardiologista do banco para um checape nas funcionárias, já aventando algumas hipotéticas causas: excesso de trabalho, preocupações familiares, problemas financeiros, estresse, baixo salário, pressão do chefe, arrelias conjugais...

Estetoscópio, pra que te quero...?! O médico começou a examinar as pacientes, auscultando-as. Uma, duas, três... e nem o menor indício de problema. Surpresa geral: em nenhuma das checapeadas detectou-se qualquer anomalia cardíaca. Nem um soprinho básico, nada. Nada...?! E a taquicardia? Taquicardia até intrigante. O coração De Inocência, de Vivalda e Credulina, acelerado que nem velocista em dia de competição, ou vento em rota de fuga, ribombava. Lívidas e trêmulas, as examinadas aguardavam o veredito médico.

Desentendidos, o gerente e o doutor quiseram saber o que estava acontecendo, interpelando-as. Quiseram. E ficaram querendo, roídos pela curiosidade, pois as ‘taquicárdicas’ não ousaram destravar a explicação, nem desatar o pacto silencioso que lhes impunha cumplicidade. O coração, entalado na garganta, ou na boca, em contínuo saio não saio, por certo, o maior impedimento para o segredo escapulir.

Mas, na surdina, e sob discrição, uma olheira contumaz rompeu o silêncio quase sepulcral, e decifrou o impasse.

Bem, como não assumi compromisso de guardar segredo, sinto-me livre para espalhar o acontecido: as crédulas irrecuperáveis deram aos tais ‘bem dotados de espírito’, também conhecidos como videntes, cartomantes, tarólogos (às vezes, charlatões) o apelido-disfarce de ‘cardiologista’. Por precaução e, mais ainda, por esperteza, claro! Principalmente, porque as saídas para as “consultas” davam-se à hora do trabalho. Portanto, algumas das taquicardias detectadas, durante o exame, estavam mais do que esclarecidas. E o medo de serem descobertas e apanhadas com as calças, ou melhor, com as cartas na mão?

Momento poético:
O medo me induz ao caos,
o sonho, à ousadia.
No medo, guardo silêncios;
no sonho, pecados.
No fosso, minhas sobras.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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