domingo, 22 de abril de 2012



Almas divididas

O colonialismo deixou profundas feridas nos povos colonizados, muitas das quais não cicatrizaram ainda – e talvez jamais se cicatrizem – até hoje, quando a maioria das ex-colônias ostenta independência, algumas apenas “nominal”. Mas a que custo esta autonomia foi obtida e ainda se sustenta, e fragilmente? Altíssimo, certamente, notadamente ao preço de sangue (muito sangue), dor, violência, destruição e outros tantos e tantos dramas decorrentes da formação, da manutenção e da consolidação de uma consciência nacional. Isso demanda tempo e não se faz da noite para o dia. O processo exige, para se concluir, não raro, várias gerações. E é tão penoso, ou mais, do que a conquista da independência. Essa dura realidade marcou várias partes do Planeta, em especial três continentes: África (principalmente), Ásia e as Américas.

Os que mais sofreram com ambos processos (o de colonização e o da posterior descolonização) foram (ou ainda são) os povos africanos. Muitos deles, no continente negro, ainda buscam seu caminho, em meio ao atraso, à ausência de lideranças lúcidas e esclarecidas, às inimizades entre tribos inconciliáveis obrigadas a conviver por séculos num mesmo território, sob mesma bandeira, e, principalmente, à miséria, fome, corrupção etc.etc.etc. A mim interessa, todavia, não o aspecto político da questão, ou o militar, ou o econômico e/ou o social, embora sejam importantíssimos. É o lado humano o principal foco do meu interesse. É o das pessoas envolvidas, com seus sonhos (não raro arruinados), projetos (destruídos) e sentimentos (feridos).

Há que se considerar, neste caso, três partes distintas envolvidas, com realidades muito diversas entre umas e outras: a do colono – que vem da metrópole, com a cabeça cheia de sonhos, geralmente na tentativa de reconstruir a vida e se possível prosperar e fazer fortuna –; a dos colonizados – ou seja, dos que nasceram e cresceram nessas colônias, cujos ancestrais sejam autóctones e sequer conheçam outros lugares do mundo – e a dos filhos dos colonizadores – com um pé em cada lugar, sem se ligar, sentimentalmente, em definitivo, a nenhum deles. Isso ocorre, também, com bastante freqüência, em relação a descendentes de imigrantes.

A escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso, autora do romance “O retorno” – eleito por jornalistas e críticos literários de Portugal e do Brasil como o melhor livro de 2011 – enquadra-se em outra, uma quarta, categoria. Na dos que nasceram na metrópole e a deixaram ainda bebês, sem nenhuma lembrança, por mínima que seja, da terra natal e todas elas da colônia para onde foram trazidas pelos pais. O pano de fundo do enredo da sua obra ficcional (pelo menos ela garante que se trata de ficção) é a explosiva e conflituosa independência de Angola, oficializada em 11 de novembro de 1975, sucedida por sangrenta guerra civil, que devastou esse país e que só acabou 27 anos depois, ceifando milhares, provavelmente milhões de vidas.

O tema do romance é, de uma forma ou de outra, o da saída dos portugueses do território angolano, que poderia e deveria ser pacífica, mas que foi atropelada, dramática e violenta. Estima-se que, na oportunidade, em decorrência do caos que se estabeleceu após a declaração de independência, por volta de 300 mil, dos 350 mil patrícios que então viviam em Angola, deixaram às pressas o conflagrado território, com destino à África do Sul, Brasil e Portugal. Neste último caso, estavam alguns personagens (os que conseguiram sair) de “O retorno”. E...a própria escritora.

Embora Dulce Maria Cardoso garanta que não se trata de livro autobiográfico, ele tem muito (talvez tudo) da sua experiência pessoal. Quando a independência de Angola ocorreu, três grupos guerrilheiros se digladiavam pelo poder. De um lado estava o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que em 1977 adotou o marxismo-leninismo como ideologia, que contava com apoio logístico da União Soviética e Pacto de Varsóvia e com a força militar de milhares de soldados cubanos (estimados em pelo menos 50 mil). Essa facção se apossou de Luanda, a capital e seus arredores. A principal base social do MPLA era a etnia ambundu, além de contar com a adesão da população mestiça e da intelectualidade branca do novo e dividido país.

Por outro lado, contudo, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), socialmente enraizada entre a etnia ovimbundu, apoiada pela China, controlava o território central da ex-colônia portuguesa, caracterizada pela cultura do café. Essa facção apenas depôs armas com a morte (em combate) do seu controvertido e polêmico líder, Jonas Savimbi, em 2002. Um terceiro grupo guerrilheiro, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), da etnia bakongo, com ostensivo apoio dos Estados Unidos, do regime racista da África do Sul e de Mobutu Sese Seko, do ex-Zaire, controlava o restante do solo angolano.

A sangrenta, perversa e interminável guerra civil atrasou muito o país, apesar dele ter imensas riquezas nacionais (é o segundo maior produtor de petróleo da África e dotado de riquíssimas minas de diamante). Angola conta, hoje, com imensa população de mutilados (talvcez a maior do mundo) em consequência ou de ferimentos em combates ou decorrentes de explosões de milhares (quiçá milhões) de minas terrestres. Há, ainda, muitas delas enterradas (não é possível sequer estimar quantas) em várias partes do país, que vitimam, volta e meia, número bastante elevado de pessoas.

Mas, voltando a tratar de Dulce Maria Cardoso e de seu romance “O retorno”, convém destacar que, desde 1975, a escritora reside em Lisboa, tendo deixado Angola na ponte-aérea que o governo português estabeleceu na ocasião para repatriar seus cidadãos da ex-colônia africana. Todas suas lembranças da infância e da juventude são desse território da África, para o qual nunca mais pôde retornou. Formada em Direito, acumula, aos 58 anos de idade, vários sucessos editoriais, depois de haver passado pela experiência de roteirista de cinema. Seu romance de estréia foi “Campo de sangue”, publicado em 2002. Vieram em seguida os livros “Os meus sentimentos”, “Até nós” (coletânea de contos), “O chão dos pardais” e, finalmente, o épico, dramático e marcante “O retorno”.

Dulce Maria Cardoso conquistou vários prêmios, como o “Acontece de Romance” e o da União Européia para a Literatura (este em 2009). Seus romances foram lançados com sucesso na França, Brasil, Argentina, Espanha, Holanda e Itália. Sua obra literária é de tamanha qualidade, que é objeto de estudo em várias e renomadas universidades da Europa e das Américas (inclusive brasileiras). Querem saber mais a seu respeito? Muito bem, confiram... mas lendo os seus livros.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. Empolgante. Quem foi para Angola criança, fez-se despatriada com a guerra, tendo de ir para Portugal. Mas, será que ainda hoje não poderia retornar? Há muitos brasileiros lá. Em 1976, cursando o terceiro ano de medicina, recebemos na turma uma angolana, de nome Ana Cristina Casqueiro. Era branca e descendente de portugueses. Portadora de diabetes tipo 1, juntamente com outro irmão, o pai era dono de uma fábrica de açúcar a 100km de Montes Claros. Ana falava seis idiomas, e era inteligentíssima. Não sei se ainda é viva, pois tinha graves complicações da doença. Formou-se conosco e foi morar em Belo Horizonte. Nunca fui amiga a ponto de poder perguntar-lhe como era a saudade de lá. Mas a julgar pelos horrores dessa guerra sangrenta, livrar-se dela com vida, já seria a glória.

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