sexta-feira, 23 de março de 2012



Limiar da catástrofe

Estamos recém ingressando na segunda década do século XXI do terceiro milênio da Era Cristã, que pode, inclusive, ser a última da aventura humana no Planeta. A civilização, da forma como a conhecemos, é historicamente muito nova. Começou quando o homem tomou consciência de si e do ambiente que o cercava e aprendeu a elaborar seus primeiros instrumentos, de pedra lascada, para a defesa e para a caça. Esse despertar da racionalidade caracterizou-se, na essência, pela formulação, posto que intuitiva, de três questões básicas, até hoje não respondidas com exatidão, a despeito de milhões de teorias a respeito: "O que sou? De onde venho? Para onde vou?"


A partir de quando o indivíduo primitivo passou a utilizar a capacidade de entendimento, a chamada "inteligência", que o distinguia dos demais seres viventes, surgiram as artes, a agricultura, a linguagem falada, a escrita, as cidades, a estrutura dos Estados; mas também as guerras, as tiranias, as atrocidades. E tudo isso em apenas 11 mil anos! Um quase nada na história. Para alguns historiadores, este período, curtíssimo, em termos geológicos, para um planeta com alguns bilhões de anos, é de 13 mil anos. Não importa. O fato é que este é um momento oportuno para rever o passado e atuar com inteligência no presente para garantir que exista um futuro, já que tudo indica que estamos no limiar de uma imensa catástrofe.


O homem contemporâneo, confiante nas conquistas tecnológicas, necessárias e fundamentais, sem dúvida – posto que incapazes de proporcionar a paz e dividir, com justiça, o progresso com todos os povos, se desacompanhada de valores como a solidariedade, a lealdade, a compaixão, o altruísmo e o amor ao próximo – é bastante arrogante em relação aos seus conhecimentos. No entanto, ainda está engatinhando na busca da verdadeira sabedoria.


Nesta virada para a segunda década do novo século, a humanidade está às voltas com uma enorme quantidade de problemas, que para alguns são insolúveis e assustadores, e para outros têm solução, posto que condicionada a inúmeros fatores subjetivos e além de tudo são estimuladores, na medida em que exigem imediata ação. O líder budista doutor Daisaku Ikeda, no ensaio "Pobreza e Riqueza", publicado no livro "Crianças de Vidro e Outros Ensaios", pondera: "Se o homem tem capacidade mental para solucionar problemas da viagem espacial, certamente deve ser capaz de fazer face ao bem mais urgente e imediato problema de como harmonizar os interesses dos indivíduos e da sociedade".


Humildemente, coloco-me, igualmente, nessa classe dos que confiam no triunfo da racionalidade sobre as baixezas de alguns instintos. Apesar de ciente dos riscos a que o homem e o frágil planeta que habita estão expostos, creio em um futuro sem preconceitos e sem egoísmos, em que a solidariedade e a compreensão sejam os caminhos da harmonia e passaportes para uma contínua, ininterrupta e infinita evolução humana.


Os perigos que pairam sobre a Terra e seus habitantes são reais, incontáveis e assustadores. O cientista e escritor Isaac Asimov catalogou-os em um alentado livro, de mais de 600 páginas, intitulado "Escolha a Catástrofe", publicado no Brasil pelo Círculo do Livro. Destacou desde os riscos externos para essa nossa frágil e instável espaçonave, (como choques com meteoritos ou cometas, cataclismos já ocorridos no passado, conforme vestígios existentes desses impactos), aos internos (vulcões, terremotos, tsunamis, furacões, avalanches, etc.) e os determinados diretamente pela ação humana, tanto contra o meio ambiente, quanto contra os semelhantes.


Mas, com talento e bom-humor e, sobretudo, com sólida argumentação, o cientista em questão conclui sua meticulosa análise com a esperança de que a vida prepondere sobre o caos e que o homem sobreviva, como vem fazendo, a todas catástrofes, potenciais ou reais, e siga evoluindo rumo à perfeição ditada pela sabedoria.


É possível identificar, no mundo atual, quatro pontos de atrito, perfeitamente definidos, em substituição à Guerra Fria, que manteve a humanidade com o coração nas mãos do fim da Segunda Guerra Mundial – de 1945, portanto, até 1989, após a queda do Muro de Berlim e do declínio do comunismo – que são ameaças iminentes a todos nós. Em lugar do confronto ideológico capitalismo versus comunismo, temos hoje a chamada "globalização", que pelo menos até aqui vem se constituindo mais em um problema do que em solução.



As crises financeiras que abalam os Estados Unidos e, sobretudo, a Europa têm sido causas de tensões e de desespero. A esse respeito, o sociólogo francês, Alain Tourraine, no ensaio "Os enigmas de uma superpotência", publicado no caderno "Mais!", da Folha de S. Paulo, em 28 de abril de 1996, acentua: "O que chamamos de globalização não é o sucesso da Internet nem a difusão de filmes americanos em todo o mundo, mas sobretudo a criação de uma economia financeira a um só tempo globalizada e controlada pelos grandes bancos dos Estados Unidos, do Japão e, em menor grau da União Européia, já que esta é simultaneamente um gigante econômico e um anão político".


E o pensador adverte: "A ordem, ou melhor, a desordem mundial da atualidade está em vias de preparar uma nova geração de regimes totalitários que podem muito bem dominar o Planeta, assim como outras forças autoritárias assumiram controle sobre a Europa na primeira metade do século XX".


Mas os maiores perigos que ameaçam a humanidade podem ser resumidos nas seguintes vertentes: crime organizado (em especial os cartéis de narcotraficantes), fundamentalismo religioso, nacionalismo exacerbado e miséria. E, como instrumento de ação, perigosíssimo, posto que covarde, está o terrorismo, em suas variadas formas, mas todas com um único objetivo: causar pânico entre as pessoas para desestabilizar determinados regimes. Cada um desses perigos merece breve comentário.


As organizações criminosas que agem no mundo, caso estivessem sob um único comando, constituiriam uma superpotência mundial. Na conferência promovida pelas Nações Unidas, em 1994, em Nápoles, na Itália, sobre criminalidade, relatórios apresentados mostraram que apenas o narcotráfico movimentava anualmente cifras exorbitantes, da ordem de US$ 520 bilhões. Ou seja, o sexto Produto Nacional Bruto do Planeta na ocasião, maior do que a totalidade da riqueza que um país como o Brasil dispunha, mesmo sendo então a oitava maior economia do mundo.


Se forem acrescentadas as rendas da exploração da prostituição, da venda de proteção, do contrabando de armas, das extorsões, etc. essa cifra, já astronômica, ascenderá a muito mais. O combate a essas organizações demanda a aplicação de preciosos recursos, que poderiam e deveriam ser investidos em educação, saúde, habitação e bem-estar social. Mas não são.


Os pólos exportadores de drogas, os mais importantes, são basicamente três: a América do Sul, em especial a Colômbia; o México e o chamado Triângulo Dourado, envolvendo Birmânia, Afeganistão e parte da China. O Brasil é mera rota de trânsito, embora aos poucos vá se tornando, desgraçadamente, grande consumidor. Os mercados que os cartéis objetivam atingir são os Estados Unidos e a Europa Ocidental, apesar do Leste europeu estar se tornando grande usuário, o mesmo ocorrendo com o Japão.


Para defender as fortunas que circulam nesse maldito comércio, em que vidas são desperdiçadas em decorrência de um vício que traz como contrapeso indefectível a morte – ou por overdose, ou por Aids ou nas mãos de traficantes – verdadeiros exércitos são montados. Na Birmânia, por exemplo, a organização criminosa responsável pelo fornecimento da maior parte do ópio e da heroína consumidos no mundo, tem mais de cem mil homens em armas. Conta, até mesmo, com artilharia pesada, como tanques e canhões, além de sofisticados mísseis. Esse contingente recebe treinamento militar bastante rigoroso. É mais eficiente do que o Exército nacional da Birmânia. Aliás, drogas e violência sempre estiveram associados. A palavra "assassino" deriva de "haxixin", ou seja, consumidor de haxixe.


Na Colômbia, o Cartel de Medellin chegou a travar guerra com o governo colombiano, antes que o seu cabeça, seu número um, Pablo Escobar Gavíria, fosse morto. Aliás, este barão da cocaína chegou a ser congressista, eleito pelo voto. Os narcotraficantes, no auge de sua campanha terrorista, mataram três candidatos à presidência e um ministro da Justiça, Rodrigo Lara Bonilha. O número de juízes, policiais, jornalistas e promotores mortos foi tão alto, que chegou às centenas. Uma batalha foi vencida, com a eliminação de Escobar, mas a guerra não acabou.


O maior produtor do mundo de folhas de coca, ao contrário do que se supõe, é o Peru, seguido de perto pela Bolívia. Todavia, em termos de produção e refino de cocaína e de crack, os colombianos são insuperáveis. De uns anos para cá, surgiram poderosos cartéis no México, que têm a facilidade da vizinhança com os Estados Unidos.

O Brasil, inicialmente mera rota de trânsito de drogas rumo à Nigéria, de onde vai para a Europa, ou diretamente para o Velho Mundo e os Estados Unidos, aos poucos vai se tornando grande consumidor. Bandos de traficantes virtualmente ocuparam os morros cariocas e a periferia de São Paulo, entre outras grandes cidades brasileiras onde esse comércio é muito ativo e infelizmente crescente.


O narcotráfico é hoje um problema tão sério de política internacional, que o tema foi a base do discurso do então presidente norte-americano, Bill Clinton, na Assembléia Geral das Nações Unidas, feito em setembro de 1995, por ocasião das festividades de cinqüentenário da ONU. Mas está longe de ser o único foco de tensões na atualidade.


O fundamentalismo religioso, quer cristão, quer islâmico, tem feito correr muito sangue pelo mundo afora. Poderia ser denominado, mais facilmente, que não seria incorreto, simplesmente de fanatismo. O Afeganistão, por exemplo, em permanente guerra civil desde a invasão soviética de 24 de dezembro de 1979, caiu não faz muito nas mãos de um desses grupos, os talibanis, estudantes islâmicos. Seu objetivo era unir igreja e Estado. Fazer do Corão a Constituição nacional, como já ocorre em alguns países, como o Irã, por exemplo.


Diante de tantas crises e de tanto rancor, não posso deixar de dar razão ao escritor alemão Bruno Frank, quando conclui, no conto "O besouro dourado": "O melhor passatempo neste mundo é o ódio. Quem não sabe esta verdade?! Desde tempos remotos, pessoas de todas as nações preenchem o tempo vazio e estéril semeando ódio e calúnia entre os povos".


Mas não é somente o fundamentalismo islâmico que traz riscos à paz. Grupos radicais judeus, por exemplo, ameaçam o processo de pacificação no Oriente Médio, que a despeito de tudo, continua avançando, posto que a passo de tartgaruga. Sua ação mais sangrenta foi o ataque à mesquita da Tumba do Patriarca, em fevereiro de 1994.


Naquela oportunidade, o fanático Baruch Goldstein, armado de metralhadora, invadiu o templo e trucidou 29 fiéis muçulmanos que oravam, não lhes dando a mínima chance de defesa. Cristãos e outras tantas religiões têm os seus radicais, os que se deixam cegar por dogmas e por um ódio insensato contra os que não pensam como eles, não tendo dúvidas em recorrer à violência para impor seus pontos de vista.


A terceira vertente de conflitos e tensões não é menos perigosa do que as outras duas. Ao contrário. Trata-se no nacionalismo extremado, mais especificamente, do racismo. Mesmo depois da catástrofe do Holocausto judeu, com a eliminação sumária de seis milhões de pessoas nas câmaras de gás, durante a Segunda Guerra Mundial, os homens não aprenderam coisa alguma a esse respeito.


É certo que tivemos um magnífico avanço, com o fim do apartheid na África do Sul. Mas lutas étnicas pipocam a todo o instante, na África, Ásia, Europa e Américas. É relativamente recente ainda a tragédia de Ruanda, quando inicialmente os hutus massacraram 500 mil tutsis e posteriormente, quando estes assumiram o poder através das armas, revidaram e provocaram um dos mais espetaculares êxodos em 50 anos, com milhares de pessoas fugindo espavoridas para o antigo Zaire (atual República do Congo), sendo acometidas pelo cólera e pela febre hemorrágica, com um número de vítimas fatais que ainda está para ser contabilizado.


Nelson Mandela, exemplo de persistência e de perdão, que mesmo depois de passar quase 28 anos encarcerado pelo regime racista sul-africano, ao chegar à presidência do seu país, buscou a conciliação e o entendimento, em vez da revanche e da vingança, acentuou, em discurso que fez no Parlamento da Grã-Bretanha, em 11 de julho de 1996: "O racismo é uma chaga que desfigura a consciência humana".


Estes, evidentemente, são apenas alguns exemplos. E o que falar do terrorismo? Dos seqüestros, dos carros-bombas, das cartas explosivas, etc, etc, etc. Até os Estados Unidos, que pareciam livres desse flagelo, estão às voltas, cada vez mais, com grupelhos covardes, que agem na sombra, atacando pessoas inocentes, para chantagear autoridades.


Dificilmente alguém conseguirá esquecer as cenas chocantes mostradas pela TV do atentado ao edifício Alfred P. Murrah, em Oklahoma City, ocorrido em 19 de abril de 1995, atribuído a um ex-fuzileiro brilhante, Timothy McVeigh, condenado à morte por um júri, que deixou 169 mortos, entre os quais 21 crianças de uma creche que funcionava no segundo andar da repartição federal. E o que dizer do 11 de setembro de 2001, com a destruição sumária das torres gêmeas do World Trade Center de Nova York?


Atentados ocorrem todos os dias, praticamente a toda hora, em todos os continentes e na maioria dos países. Os motivos usados como justificação diferem, mas a ação covarde e insensata é sempre a mesma. Além desses perigos, há muitos outros que ameaçam a humanidade do Terceiro Milênio. O século XX, que no seu albor se achava que seria o "século das luzes", se transformou no século da violência. Apenas nas duas grandes guerras mundiais, mais de 60 milhões de pessoas morreram, o triplo disso ficaram feridas e os prejuízos materiais, psicológicos e morais são impossíveis de se quantificar. Hoje, o homem detém o recurso de destruir uma centena de planetas como o nosso, com suas bombas de hidrogênio.


Os problemas contemporâneos, claro, não são apenas estes. A depredação do Planeta, por parte do homem, ameaça a própria vida. A água potável, de cuja preciosidade as pessoas ainda não se deram conta, escasseia cada vez mais, enquanto fontes e mananciais inteiros são poluídos e inutilizados para o consumo. A poluição atmosférica aumenta perigosamente a temperatura da Terra, derretendo as geleiras dos pólos, elevando o nível dos oceanos e ameaçando milhões de pessoas com inenarráveis catástrofes.


"Estaria, então, tudo perdido?", indagariam vocês. Teriam razão os catastrofistas, que prevêem uma pavorosa hecatombe, natural ou provocada pelo homem, antes que o século XXI se expire? Não, claro que não! Por paradoxal que pareça, a própria mortalidade do homem é que renova as esperanças dos idealistas da possibilidade de se erigir um mundo melhor.


Quem pode garantir que as gerações futuras serão tão insensatas, tão egoístas e tão violentas quanto as que viveram até aqui? É possível, e até provável, que os futuros habitantes do Planeta – vivam em que quadrante viverem, tenham que aspecto tiverem, falem que língua falarem, professem que religião professarem – venham a ser conscientes e solidários. Que aprendam a tratar consigo próprios, se livrando de vícios e taras, com o próximo e com o ambiente em que vivem. Mas que estamos no limiar de uma imensa catástrofe não é inteligente mudar, para que ela seja evitada (se ainda for possível) e a humanidade sobreviva e prospere, mas sob novos paradigmas, de solidariedade e justiça social.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Análise real e assustadora, além de lúcida. A crueldade passou a ser passatempo, sim.

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