sábado, 24 de março de 2012







“Come fly with me”

* Por Sergio Vilas Boas


A rotina da estação 23th Street é quebrada por uma interrupção que me tira o sono. Um trem da linha R do metrô atravessa a 23th pelo trilho uterino a uma velocidade esvoaçante. Na plataforma apenas ela (e eu, invisivelmente, como sempre).
- El “R” no está aqui. (Digo em meu portunhol caseiro.)
Ela retira os óculos quadradinhos de aros leves, olha de um lado para o outro em movimento telescópico e depois para mim.
- Caramba! (Ah, ela fala uma língua comum de dois!)
Com um giro soberbo, lança de volta às costas seus cabelos esvoaçados e improvisa um rabo-de-cavalo. Está com um uniforme impecável: saia azul-marinho, blusa branca brocada com pequenos aviõezinhos vermelhos e um lenço de seda azul-celeste. Nos lábios, uma massa de batom encobria um vermelho teso. Seus ouvidos estavam ligados à bolsa de couro preta por dois fios finíssimos que transportavam uma canção inaudível.

Come fly with me, let’s fly let’s fly away
If you can use, some exotic booze
There’s a bar in far Bombay
Come fly with me, let’s fly, let’s fly away

Curiosamente, só eu posso orientá-la a sair deste labirinto agora silencioso e confusamente interditado pela New York Transit para algum reparo de urgência. Ao me aproximar, ela me olhará no fundo dos olhos, gostará de mim e, dias depois, quem sabe, me dará seu telefone. Há muito meus sonhos não pisam terra firme. Quero, quero muito, sim, voar, nem que seja com a imperfeição premeditada de um albatroz.

Come fly with me, let’s float down to Peru
In lama land, there’s a one man band
And he’ll toot his flute for you
Come fly with me, let’s take off in the blue

Nunca saberei como reagir aos encantos de uma mulher. Ah, essa minha incontrolável volúpia de vida, esse jet lag de vozes, cores, aromas. Hum... Que perfume! Gostaria de saber nomes de perfumes franceses pra conversar com ela a respeito.
Outro R passa veloz como os trens expressos nonstop.
Mas que tipo de idiota insignificante ela vai pensar que sou. No fundo, ninguém nos olha porque estamos sós, pairando sob o chão. Algo me diz: sugira a ela sair deste inferno; convide-a pra um café; abra-lhe a porta de um táxi amarelo como bom cavalheiro; diga que adora aviões, que seu sonho era ser piloto de jatos...

Once I get you up there, where the air is rarefied
We’ll just glide, starry eyed

Nunca compareci a um aeroporto pra viagem própria. Hoje, oprimido por panelas e pratos sujos 17 horas por dia, meu mapa-múndi é um imaginário. Estou impossibilitado de escapar pelos ares, pelos trilhos ou por um cais. Virei prisioneiro de escadarias, subterrâneos e privações. A curto prazo, as distâncias me parecem invencíveis.
Aeroperu (está escrito em seu broche). Enrubesço de antemão: será ela emigrante como eu?

Once I get you up there, I’ll be holding you so near
You may here
Angels cheer - because were together

Quando garoto eu sentava no banco da estação ferroviária da minha cidade no Espírito Santo pra observar os trens de carga que iam e vinham duas vezes por dia. Ali me conectava ao cordão umbilical do mundo. Cheguei a sonhar, vejam só, que trens cruzavam gigantescas pontes sobre os oceanos.
O que digo a esta morena-índia linda?
Certamente me responderá que trabalha em terra ou a bordo e entenderei que, em qualquer dos dois casos, ela não é pro meu bico. Sou magro, alto, calvo, tenho mãos ossudas, longilíneas e sou... como dizer... Sou... “indocumentado”. Clandestino ermo. Tanto penso antes de me expor que emudeço. Os perigos do ridículo me arrepiam.

Weather wise it’s such a lovely day
You just say those words, and we’ll beat the birds
Down to Acapulco Bay

No Café da rua 23, em companhia dela, eu pediria uma xícara grande de chá importado e uma pastilha de chocolate relleno com licor. E um Parliament, slims, please. Tragaria fundo com o pensamento fixo no telefone. Pra ligar. Só pra ligar. Pra ela. Conversar. Só conversar. Afinal, somos iguais, não?
- La salida mejor... por lá. (Foi tudo o que consegui dizer após uma fração de segundo.)
- Muchas gracias.
Observo-a partir. O tique-taque de seu sapato de saltinho desaparece no silêncio repentinamente quebrado por outro R voando sobre os trilhos internos, alterando as moléculas do ar irrespirável de uma escaldante segunda-feira de verão.

It’s so perfect, for a flying honeymoon - they say
Come fly with me, let’s fly, let’s fly away

As luzes se apagam. A estação da 23th volta a ser somente minha. Nela passarei mais uma noite suarenta, de umas poucas horas de sono, escondido como um gato acuado, pelo menos até a hora de as portas reabrirem, às 5 da manhã, em ponto. Faria tudo pra não descobrirem que durmo aqui, clandestinamente.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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