sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012



Omissão como fonte de abusos

A omissão tem se constituído, ao longo da história, em raiz de toda a sorte de abusos e violações aos direitos humanos por parte de tiranos e de tiranias. Pode-se afirmar que chegam a se constituir em suas fontes. Se a sociedade civil se manifestasse, sempre que a Constituição do seu país fosse ameaçada (e principalmente violada) e exigisse a imediata punição do infrator, ou infratores, muitos males seriam prevenidos e provavelmente evitados. Não é, todavia, o que costumeiramente ocorre.

Salvo uma ou outra exceção, a imensa maioria dos ditadores, tão logo assume o poder, através da violência, mediante os tais “golpes de Estado”, busca, de imediato, dar ares de “legalidade” àquilo que é ostensivamente ilegal. Produz toda uma legislação ilegítima, mas tolerada ou ignorada por boa parte dos cidadãos (quando não recebida com entusiasmo por ela), suspendendo ou eliminando direitos tidos e havidos como inalienáveis em qualquer sociedade civilizada que se preze. Foi o que ocorreu, por exemplo, em relação à criação dos campos de concentração por parte do governo da Alemanha sob o regime do nacional-socialismo.

Frise-se que esses locais de confinamento de opositores de regimes vigentes, controlados por militares – e, portanto, fora dos sistemas penitenciários normais, em que apenas são (ou deveriam ser) detidas pessoas que infringiram a legislação penal do país, após condenação em processos em que têm amplo direito de defesa – não foram prerrogativas do governo nazista alemão. Existiram (e desgraçadamente existem) em vários outros países, geralmente em períodos de guerra, mas muitos, também, em épocas ditas “de paz”.

A própria Alemanha, em uma ocasião em que sequer se cogitava que um dia surgiria o nazismo, havia criado um campo de concentração na África. Isso ocorreu logo no início do século XX, em 1904. Foi estabelecido em sua então colônia no continente negro, o Sudoeste Africano Alemão, atual Namíbia. Sua criação deu-se como tentativa para conter uma revolta das tribos namaquas e hererds. Ali, os rebeldes que se opunham aos desmandos e abusos dos colonizadores europeus e seus apaniguados eram confinados sem que houvesse sequer um arremedo de julgamento e sem a devida acusação formal. Não pensem os leitores que esse local de confinamento foi diferente, ou melhor, ou mais humano quem sabe do que os tristemente célebres campos de concentração nazistas. Não foi.

Constituiu-se, como estes, num lugar de tortura, de exploração de trabalho escravo e, notadamente, de extermínio sumário dos adversários e foi tão terrível como os criados posteriormente, três décadas depois, na Europa. E foram tantos os mortos ali, que esse “massacre”, ocorrido em território da atual Namíbia, pode ser considerado, sem nenhum exagero, como o primeiro genocídio do século XX, tão farto, infelizmente, deles. O curioso é que essa matança desatada é raramente tratada (nem mesmo chega a ser citada) pelos historiadores. Lamentável.

A imensa maioria das pessoas que conheço, cultas e bem informadas, desconhece, por completo, estes fatos, como se jamais houvessem ocorrido. Desgraçadamente, ocorreram. E sem que as vítimas dessas atrocidades pudessem ser socorridas por quem quer que fosse. E, principalmente, sem que os cruéis assassinos fossem punidos por seus crimes. Na verdade, nem mesmo se cogitou, em momento algum, dessa punição. Essa omissão da opinião pública internacional, portanto, “legitimou”, na prática, essa hedionda arbitrariedade.

A criação dos campos de concentração nazistas ocorreu antes, bem antes (na verdade mais de seis anos antes) do início da Segunda Guerra Mundial. Deu-se pouco depois do partido de Adolf Hitler haver ascendido ao poder, mediante escusas manobras políticas (ou politiqueiras?), que podem ser perfeitamente caracterizadas como “golpe de Estado branco”, ou seja, sem o uso de força militar. Foram instituídos por uma “portaria de emergência”, com o pretexto mais comum e corriqueiro dos golpistas de qualquer tempo ou lugar: salvaguarda da segurança nacional. Belo eufemismo!

Através desse instrumento de exceção, baixado em 28 de fevereiro de 1933, os nazistas conseguiram o que tanto queriam para não serem incomodados pela oposição. Ou seja, um expediente, aparentemente “legal”, para se livrarem de incômodos adversários. Vocês pensam que a população civil foi, em massa, às ruas, para protestar contra essa perigosa suspensão dos principais direitos civis? Se pensam, estão enganados. A portaria foi recebida com imenso entusiasmo pelos crescentes adeptos do nazismo. E os que se opunham à medida (poucos), ficaram caladinhos, como se nada de anormal estivesse ocorrendo, “legitimando”, portanto, com sua omissão, a intolerável violação à constituição vigente.

A portaria, entre outras coisas, abriu o precedente de permitir a prisão “preventiva” de pessoas suspeitas de atentar contra a segurança do Estado, sem a necessidade sequer de acusação formal. Para complicar, determinou que essa detenção se desse não no aparato penitenciário normal, em cadeias e presídios e com assistência de advogados, mas em centros de confinamento controlados por militares e com todas as restrições imagináveis ao legítimo direito de defesa que, na prática, foi suprimido. Ainda assim, poucos “gatos pingados” ousaram protestar contra essa indecente ilegalidade. Os que o fizeram, acabaram confinados aos campos de concentração e nunca mais se ouviu falar deles. Dá para imaginar (ou para concluir) o que aconteceu a eles.

Portanto, é lícito afirmar que a omissão é uma das principais raízes (se não a principal), a “fonte” de onde brotam tiranias e tiranos, que desgraçam a vida de multidões, de povos inteiros, antes que também desapareçam, já que, como todos nós, são (felizmente) mortais. Mas... antes de morrerem, praticam toda a sorte de arbitrariedades e crimes, que poderiam (e deveriam) ser estancados no nascedouro. Maldita omissão!!!

Boa leitura.

O Editor.




Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Um comentário:

  1. Confesso minha ignorância quanto aos fatos da Namíbia. Eu os desconhecia. Senti engulhos ao saber, pois deu para imaginar como devem ter se dado essas torturas e mortes. O termo "matança desatada" foi uma escolha adequada que mostrou qual deve ser a nossa repugnância diante desses fatos. No Brasil, os que eram contra a ditadura, ainda hoje são vistos como ex-terroristas. O brasileiro médio também foi omisso. E como!

    ResponderExcluir