segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012




Letras pungentes


Os campos de concentração nazistas são temas de milhares e milhares de livros, mundo afora, quer de relatos de experiências feitos por sobreviventes, quer de ficção (posto que baseados, também, nas narrativas dos que conseguiram sair vivos desses infernos, a rigor uma raridade). Filmes, então, há uma infinidade deles, sem, evidentemente, reproduzir fielmente o que esses centros de detenção e, sobretudo de morte, realmente foram. E nem poderiam.

Quanto aos livros, são leituras incômodas, desagradáveis, que não raro causam repugnância e revolta ao leitor, não, óbvio, em decorrência de eventuais deficiências de estilo dos autores ou de exageros no que escrevem, mas pelo mero conteúdo dessas narrativas. Há quem os leia até com certa indiferença, como a um romance qualquer, à espera do clássico “happy end”. E este existe. Caso não existisse. os relatos sequer seriam feitos. Por que? Óbvio! Por que os mortos não falam e muito menos escrevem. Se alguém relatou suas experiências pessoais nesses campos de sangue, fogo e cinzas é porque sobreviveu. Confesso que não gosto desse tipo de leitura, embora haja lido uma dezena de livros do tipo.

O primeiro que li tinha o sugestivo título de “Quero ser humano outra vez”. Foi escrito por um tal de Sam Davis, provavelmente um pseudônimo. Não consegui colher nenhuma informação, que não as contidas em sua narrativa, do autor. Na ocasião da leitura eu tinha apenas doze anos de idade. Portanto, lá se vão 57 anos. E, por melhor que seja a minha memória (e ela não é das piores), muita coisa (quase tudo) da narrativa se perdeu nas brumas do esquecimento. A lembrança mais marcante que tenho, a propósito, nem é do dramático relato desse sobrevivente, mas do mal estar que senti com o teor dessa obra.

Emprestei esse livro, há uns quarenta anos, para um amigo, com o objetivo de colher sua opinião a propósito e confrontar com a minha. Foi outra bobagem que fiz. Antes não emprestasse. Não só o amigo não opinou a respeito, como nunca me devolveu o livro. Paciência. Pesquisando no Google, descobri que “Quero ser humano outra vez” está à venda em diversos sebos. Pretendo adquiri-lo e relê-lo, agora sob o olhar não mais de um pré-adolescente, mas de um relativamente experiente homem maduro (para dizer o de menos). Suponho que o mal estar do quase ancião venha a ser muito maior do que o do menino de então. Sinto-me sumamente mais sensível com o sofrimento humano do que fui naqueles “anos fagueiros”.

Outro dos livros que li (e este tenho comigo, em minha biblioteca) é “Shoah”, do francês Claude Lanzmann. Trata-se na verdade do roteiro do documentário que ele fez, com o mesmo título, de nove horas de duração, que contém relatos de dezenas de sobreviventes de vários desses campos de concentração. Está recheadíssimo de imagens, colhidas nos arquivos da Alemanha nazista, depois da queda desse regime. Não recomendo a ninguém, principalmente aos mais sensíveis e impressionáveis, a vista dessas fotos. As menos pungentes (e horríveis) mostram dezenas de pessoas esquálidas, praticamente só pele e ossos, amontoadas em um recinto, arremedo de dormitório.

Há fotografias de montanhas de cadáveres, com milhares de corpos, à espera de cremação ou de sepultamento em gigantescas valas coletivas. Não visse essas imagens, nunca acreditaria que seres humanos hajam sido tratados de forma tão vil e cruel por seus semelhantes. Não assisti o documentário de Lanzmann e, a julgar por minha reação face à leitura do roteiro, transformado em livro, com a profusão de imagens pavorosas que traz, creio que não suportaria ver nem mesmo os primeiros minutos das nove horas de duração.

Tenho comigo, adquiridos recentemente, mais quatro livros sobre campos de concentração nazistas que ainda não li, mas cuja leitura está, há algum tempo, agendada. Subconscientemente, porém, venho adiando essa tarefa, de receio da reação que o conteúdo possa me provocar. Reitero que esse não é, nunca foi (e certamente jamais será) o tipo de leitura que me atrai e me fascina. Como jornalista que sou, todavia, e, sobretudo, como escritor, não posso me dar o luxo de ter esses pruridos, pois estou consciente da necessidade de conhecer tudo o que estiver ao meu alcance, de bom, de ruim e até (ou principalmente) de horripilante. O que não posso (e na minha profissão isso é inconcebível) é me alienar. Ninguém pode.

Sei que é estranho comentar obras que não foram lidas. Claro que não farei isso. Limitar-me-ei a fazer mero registro delas e nada além disso. Um desses livros, na fila de leitura, é “Bordel do campo de concentração”, de Robert Sommer. Pelo título, até adivinho o conteúdo. Entre os tantos e tantos e tantos crimes cometidos pelos soldados nazistas, encarregados da guarda e administração desses locais de confinamento (e de extermínio), está o da covarde e sistemática exploração sexual de mulheres sob sua responsabilidade, tratadas de forma muito pior do que animais, como objetos, desses que se usam e que são jogados fora quando não têm mais serventia ou quando simplesmente der na veneta do doentio tarado que aja dessa maneira. Chega a dar engulhos só em pensar no conteúdo dessa narrativa.

Outro livro, que está em minha fila de leitura, certamente tenta explicar o que para mim sempre foi e sempre será inexplicável. Seu título é “Um psicólogo no campo de concentração”, de Viktor Frankl, renomado profissional de psicologia, que passou por essa terrível experiência, preso que foi pelos nazistas, cujas razões só seus captores conhecem (se é que conhecem). Não sei se sua análise psicológica é a dos prisioneiros, como ele foi, ou dos seus cruéis verdugos. Certamente, o que se passava na cabeça de uns e de outros não tinha (e nem poderia ter) a mais remota semelhança.

O terceiro dos livros na fila é “Recursos inumanos”. Foi escrito pelo historiador Fabrice D’Almeida que, apesar do sobrenome, é francês. Pela leitura da “orelha” deduzo que a obra trata da “exploração econômica” dos campos de concentração, não apenas com a expropriação dos bens dos prisioneiros, mas com a fartíssima utilização de mão de obra escrava, sem nenhuma restrição ou custo, explorando forças alheias ao último grau, até seu derradeiro limite, para obter lucros fabulosos. Foram várias as indústrias alemãs que fizeram isso no período da guerra. A maioria desses empresários boçais (igualmente criminosos), infelizmente, escapou impune.

Finalmente, o quarto livro, na fila de leitura, tem o título de “Eu sou o último judeu”. Seu autor é Chil Rajchman. Não tenho a mínima idéia do que trata, a não ser que é um testemunho, certamente chocante como tantos outros, do que esse sobrevivente de um campo de concentração viu, ouviu e, principalmente sofreu na carne nessas sucursais do inferno, em que dez milhões de seres humanos perderam a vida, tendo, antes, suprimidos seus sonhos, esperanças, família, bens materiais e, acima de tudo, dignidade.

São relatos cruéis, crudelíssimos, que podem ser enquadrados numa categoria especial de literatura que poderia se chamar “letras pungentes”. E põe pungência nisso. Todavia, não é a literatura que está revestida de crueldade. Ela limita-se a dar voz aos que fazem esses relatos. É, somente, um espelho da natureza humana. Reflete-a tanto em sua grandeza, quanto, e principalmente, em sua miséria. É o suposto homo sapiens que, em determinadas circunstâncias, se transforma no perigoso, terrível e não raro crudelíssimo homo demens.

Boa leitura.

O Editor.



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