quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012



Dois gritos do silêncio

O genocídio, ocorrido na década de 70, no Camboja, praticado pelo Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot – um dos, proporcionalmente, mais sangrentos, absurdos, abomináveis e injustificáveis (como toda matança, do tipo ou não, sempre é) – foi denunciado ao mundo, em toda sua miséria, horror e covardia, primeiramente pelo livro “Os Gritos do Silêncio”, de Christopher Hudson. Com base nessa obra pungente foi rodado um filme, do mesmo nome, que foi estrondoso sucesso de bilheteria e valeu vários Oscars aos que participaram dessa produção.

Ficou claro para mim, embora eu nunca tivesse dúvida a propósito, que o papel da Literatura em nossa vida é muito mais importante do que os desavisados pensam e propalam. Além de divertir, ensinar e informar, pode (e deve), entre outras coisas, servir como instrumento de denúncia e de revelação de atrocidades e intoleráveis violações dos mais sagrados (e que nunca deveriam ser violados) direitos humanos. Nem sempre a imprensa cumpre esse papel, e por diversas razões, entre as quais, não raro, está o temor de “incomodar” os poderosos, para não sofrer represálias.

Claro que estou convicto da importância e da grandeza do jornalismo. Caso não tivesse essa convicção, não seria jornalista. Mas sou e com muito orgulho. É a profissão que sempre encarei como muito mais do que mera atividade profissional, como forma de assegurar o meu sustento e o da minha família, mas como missão de vida. Há já quase meio século vivi (e ainda vivo), respirei, “comi” e me alimentei de jornalismo. Por isso mesmo, por vivê-lo tão intensamente, senti na carne as dificuldades para o seu exercício pleno, como deve ser de fato exercido. Tive que conviver com vetos a determinadas matérias, com imposições da chefia, com temas tabus que jamais deveriam existir e vai por aí afora. Já na literatura... Não encontrei tantas restrições.

O que abomino (e condeno, óbvio), não é, portanto, o jornalismo, mas certa forma distorcida, medrosa, omissa, quando não desonesta de exercê-lo, sem a necessária, rigorosa e indispensável isenção e sem que se restrinja, intransigentemente, à exatidão dos fatos, sem nada acrescentar, subtrair ou distorcer. Apesar de tudo isso, não posso negar que sem essa importante atividade, o mundo seria muito mais perigoso e insalubre do que já é. É aquela história, “ruim com o jornalismo parcial e mal exercido, pior sem nenhuma forma de jornalismo”.

O livro “Os gritos do silêncio”, de Christopher Hudson, tem, como principal personagem justamente um jornalista. É o norte-americano Sidney Schanberg, acompanhado de seu assistente cambojano, Dith Pran. Ambos arriscam as vidas para levar ao mundo notícias de uma guerra que os respectivos governos de seus países teimavam em negar, de forma cínica e deslavada, que estivesse em andamento. No início da narrativa, o Khmer Vermelho ainda não havia assumido o poder. Estava em andamento a intervenção norte-americana no Camboja, para tentar destruir a “Trilha Ho-Chi-Mihn”, utilizada pelo Vietnã do Norte para abastecer os guerrilheiros vietcongs no Vietnã do Sul.

O jornalista e seu assistente sequer tinham certeza se as informações que colhiam e transformavam em matérias seriam publicadas ou não. Afinal, em casos de guerra sempre entra em cena a censura, em nome de uma falácia chamada “segurança nacional”. As notícias são filtradas por censores que decidem, a seu alvitre, o que pode e o que não pode ser divulgado. Foi assim na Guerra do Vietnã. Repetiu-se nas duas campanhas no Iraque. E é dessa forma que se age no interminável conflito no Afeganistão, a despeito de tantas e tantas negativas a propósito.

Portanto, neste caso (e em tantos e tantos outros), o “vilão” da história não é o jornalista. Ele não tenta esconder o que está acontecendo, muito pelo contrário. Mas o repórter, o fotógrafo, o editor etc. não são donos de jornais. São empregados de uma empresa. Têm que cumprir ordens superiores. E estas nem sempre são de sorte a atender a um interesse maior, o dos cidadãos, que têm no veículo sua fonte de informação que esperam (e crêem) seja rigorosamente segura e confiável. Nem sempre lhes cabe, portanto, o poder de decisão sobre o que pode ou o que não pode ser publicado e, principalmente, sobre o que de fato é.

Claro que não irei revelar o conteúdo do livro (nunca revelo quando comento uma obra), para não dar desculpas a ninguém de não lê-lo. “Os gritos do silêncio” vale a pena ser lido. Quanto ao filme do mesmo nome, abordarei numa próxima oportunidade.

Acrescento, porém até para dar coerência a estas reflexões, que tão logo o Khmer Vermelho assumiu o poder, ajudado por tropas norte-vietnamitas, Sidney Schanberg conseguiu escapar ileso de Pnhom Pehn, a capital do Camboja. Todavia, seu assistente cambojano, Dith Pran, não teve a mesma sorte.

O livro de Hudson trata, justamente, da saga do jornalista na tentativa de encontrar e de resgatar vivo seu companheiro. E, claro, a luta deste para manter-se ileso, em meio a tantas perseguições, torturas, execuções sumárias e outras tantas atrocidades, cujos resultados podem ser comprovados em uma simples visita ao “Museu do Crime Tuol Spleng”, no centro da capital cambojana. Quem assistiu o filme, sabe se Pran conseguiu ou não escapar ileso daquele inferno. Quem não o viu... recomendo que leia o livro, que é sensacional!

Boa leitura.

O Editor.




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