terça-feira, 31 de janeiro de 2012







Os pacientes do doutor Fróide


* Por José Calvino de Andrade Lima

Nietzsche disse: “Zaratustra é a prova de que se pode falar com a maior clareza e não ser entendido”.

Quase sempre à tardinha, José Azambujanra (personagem principal dos livros “Trem Fantasma” e “”Os pacientes do doutor Fróide”) conversa comigo e o assunto sempre gira em torno de literatura, cinema e teatro. Desta vez ele me trouxe dois poemas e comentou o trecho do texto Os pacientes do doutor Fróide pp. 12-19, edição 2007. Percebi Azambujanra deprimido. Talvez os leitores não possam entendê-lo, por ser ele considerado um herege ou mesmo um ateu! Então, resolvi transcrever as duas poesias e o trecho do texto do referido livro:

“Herege graças a Deus”

- Achas que sou herege?
O padre na igreja me disse:
O seu nome é de herege;
O nome não tem nada a ver!

No outro dia,
Logo bem cedo,
A calma somente;
E pediu: Deus me livre!

Eu tinha só dez anos,
Não disse nada a papai,
Só disse a mamãe:
Por que o padre não gosta de mim?

Hoje tenho sessenta e seis anos,
Já vi gente com nomes diversos,
Gente da pior espécie:
Mentirosos, ladrões e assassinos.

Qual a sua religião?
- Sou herege graças a Deus!

Recife, 02/08/2008
Do livro: “Fiteiro Cultural”, ed. 2011- pp.277-8.

Para os leitores entenderem,
Uma vez resolvi perguntar a um pastor:
Por favor, quem criou os filhos?
- Os pais.
E os pais,
Quem criou?
- Os avós.
E os avós?
- Os bisavós.
E os bisavós?
- Os tataravós.
E os tataravós?
- Os pais deles.
E os pais deles?
- Os primeiros humanos.
E os primeiros humanos?
Até hoje ninguém sabe explicar!!!

Rio de Janeiro, 29/08/1980

“(...) - Com o avanço tecnológico da informação, atualmente alguns dos meus clientes são internautas. Estou tratando-os separadamente. Antigamente quando alguns radiotelegrafistas ficavam com problemas psíquicos, misturavam-se com os dependentes químicos. O tratamento era à base de internamentos nos hospitais psiquiátricos. Agora nós temos outros meios: são as fazendas doadas por entidades filantrópicas, que se dedicam ao tratamento e recuperação de drogados.
- Eu lembro. Na Casa de Saúde, mesmo, tinha um colega internado que era radiotelegrafista. Com o uso obrigatório dos fones nos ouvidos, recebendo descargas sonoras, ele ficou com problemas neurológicos. Na época denunciei o Sistema... – entrecortou doutor Fróide:
– Se você for omisso em aceitar calado tudo isso, como o nosso Brasil irá reverter esse quadro? Bom, mudando de assunto, como vai o inquérito policial?
- Anda muito confuso, fica difícil. Quanto ao trintoitão da Carmem, já me comuniquei com os detetives Getúlio e Medeirinho.
- Foram eles que desvendaram o assassinato das estudantes Maria Clara e Thaís Evangelista. – disse doutor Fróide.
- Getúlio e Medeirinho estão checando todas as mensagens do grupo...

Eram quinze horas, no consultório do Dr. Fróide, quando entra o segundo paciente:

- ‘Vês? Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera, / Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável! // Acostuma-te à lama que te espera! / O homem, que nesta terra miserável, / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera. // Toma um fósforo. Acende o teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja. // Se alguém causa inda pena a tua chaga / Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!’

- De Augusto dos Anjos. – disse o psiquiatra.
- Eu. – disse o psicopata.
- É, Eu de Augusto dos Anjos.
- Eu, me chamam. Qual é o problema? – O psiquiatra ficou receitando sem olhar para o paciente. – O Beco. O senhor conhece o poema do Beco?
- Não é de Manuel Bandeira?
-Não é. Realmente, é meu o Beco.

‘Que importa
A paisagem,
A glória, a baía,
A linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.’

- Boa. Meus parabéns. Tome esse remédio agora e o outro à noite. – despachou o paciente, chamando o terceiro paciente que estava na sala de espera falando alto e exaltado. Quando chamado já entrou falando, prosseguindo com o assunto que vinha lhe perturbando:

- São essas as criaturas de Deus! Não fica difícil de entender esse povo. Querem provar a existência de Deus com perseguições, desunião, inveja, et cétera, et cétera... José Azambujanra está mais do que certo. Ele está sendo vítima do sistema religioso... – com a voz pastosa , cansado, continuou – São elementos relacionados entre si, formando um todo, e o grande comandante é Deus. Esse pessoal tem costume de se benzer quando sai de casa, quando se acorda, quando vai dormir, quando passa em frente às igrejas católicas... – entrecortou dr. Fróide – José Azambujanra, você o conhece?
- É um homem branco. Se fosse negro, que nem eu... Esse pessoal ia dizer o quê? – e respondeu à própria pergunta: “É negro por derradeiro”. – Não é verdade?

O quarto paciente entrou recitando “Declaração de amor em vermelho e branco”, de Renato Coração de Poeta:

‘Nasceu nas águas do Capibaribe / Não há outro mais recifense que você / ”Clube Náutico Capibaribe” / Razão maior do meu viver // Há cem anos que você me apareceu / Aconteceu num dia sete de abril / Meu coração bateu forte, enlouqueceu /E de Vermelho e Branco se vestiu...’

- E você é branco pra torcer pelo Náutico? – disse um paciente torcedor do Sport.
- Nego besta – disse outro paciente torcedor do Santa Cruz.
Enquanto isso, na sala de espera um dos pacientes começou a representar “Manicômio”, de Waldir Martins (in memoriam):

‘(...) ‘Grande povo brasileiro, / Homens-grandes dessa terra, / Eu sou D. Pedro I, / Presidente da Inglaterra; / Venho aqui por derradeiro / Aliar-me a essa guerra.’ / Ta todo mundo doido! // Os doidos tão no poder!... / Menino, que confusão; / Todos eles de gravata, / Os bolsos cheios de prata / E uma bomba em cada mão... / Sai da frente que lá vem mais! // Sereno de amor... / Sereno de amar... / É por causa da morena / Que eu quero me matar. // Outro dia fiz morada / Num terreno abandonado / Bem na beira da estrada. // Deixei barraco montado, / Taquei o pau na enxada; / Ao redor plantei um gado, / Um pé de coruja magra, / Uma cobra, uma cabra... // Criei mamão, banana, / Um casal de cajarana, / Uma garrafa de cana... // Tava tudo bem certinho / Quando chegou um sinhosinho / Com a bunda cheia de bosta, / Cheio de nó pelas costas, / Dizendo preu sair, / Que aquela terra era sua, / Que eu me pusesse na rua / Antes do sol cair. // Me deu vontade rir. / Aí eu perguntei: / Me diga por favor, / A quem o senhor comprou? / Ele respondeu: / Ao seu Dirceu. // E o seu Dirceu / Comprou a quem? / Ele respondeu: / A Matusalém. // E Matusalém?... / - Ao seu Nestor... / E o seu Nestor?... / - Ao seu Bartô../
E o seu Bartô?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao primeiro dono!!!... / E o primeiro dono / Comprou a quem?! / Ele não soube responder. // Ta vendo que não convém!! / A terra não é de ninguém, / É de quem dela cuidar // Tava aqui desprezada, / Suja, descabelada, / Sem home, sem nada, /
Querendo se casar, / Topei a parada...”


*Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 12 títulos publicados, todas edições esgotadas. Blog:"Fiteiro Cultural" - http://josecalvino.blogspot.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário