segunda-feira, 31 de outubro de 2011



O senhor Sadigursky*

** Por Paulo Lisker


Gorducho, baixinho, fanhoso e sempre suado. Dezenas de anos vividos no Recife e não se acostumou com o clima quente e úmido da nossa cidade. Era solteirão e as noites depois das conversas com os patrícios na Praça Maciel Pinheiro, sentava-se no seu quartinho no "pé de escada" e quando a "musa baixava" compunha ou reescrevia músicas "kleizmer" que ouvira na sua aldeia onde pintores e músicos viviam sob influência do "violista no telhado" que ficou para a posteridade gravada no quadro do pintor judeu Marc Shagall.
Pra quem não conhece o estilo "kleizmer" do "violinista no telhado", produzido nas aldeias do leste europeu nos séculos passados, saiba que é uma melodia que parece que todos os instrumentos choram até quando a musica é alegre. Música que caracteriza um povo sofrido, obrigado ao exílio, migrando pelo mundo afora sem nunca se fixar em parte alguma. A eterna esperança que promete a religião judaica nas suas rezas: "Be shaná há bá be Ierushalaim, que significa: "No próximo ano em Jerusalém". Em "trocado" quer dizer que um dia voltariam à terra de seus ancestrais, Eretz Israel.
Este nome kleizmer provém da palavra hebraica "kli" que significa instrumento, neste caso, musical. Instrumentista ou tocador de um instrumento musical. Hoje em dia ela ressuscitou e é muito procurada e admirada pela geração atual dos judeus e não judeus pelo mundo afora. Uma espécie de saudade de um tempo que se foi.
Senhor Sadigursky às vezes também era maestro quando convidado para os festejos judaicos na Sociedade Israelita na Rua da Glória. Durante uma hora ou duas tomava a batuta com suas músicas "kleizmerianas" conduzindo a "Banda Acadêmica" ou a da Policia Militar do quartel do Derby, quando estas eram convidadas para animar as festas e as danças na sede da Sociedade Israelita.
Capiba era "persona grata" na comunidade judaica do Recife (um tempo morou na Pensão Internacional, casarão encostado ao nosso, na Rua Gervásio Pires). Quase sempre os dois estavam presentes nestas festividades e se dividiam dirigindo a orquestra ou a banda.
Capiba tinha uma grande estima pelo "Maestro Sadigursky" e lhe dava o maior respeito. Ele era um "músico por natureza", que nunca estudou música.Uma vez Capiba lhe perguntou onde aprendera música. O senhor Sadigursky meio sem jeito respondeu: “Com meu Rabi (rabino), na minha aldeia na Europa. Ele me ensinou a ler as escrituras sagradas e quando você acredita no que lê, a forma das letras hebraicas, a entonação dada à leitura das frases no documento, a melodia quando cantamos os Salmos, tudo isso nos introduz e ensina a divina música da vida. Foi assim que aprendi maestro Capiba!”
Capiba abraçou-o e passou para ele a batuta da banda acadêmica que tocava suas últimas composições.Este mascate senhor Sadigursky, era um "pau pra toda obra" como dizemos nós, os nordestinos. Os anciãos da época diziam que durante a Segunda Guerra Mundial uma parte de sua família sucumbiu de fome e tifo no gueto e o que sobrou foi exterminado pelos alemães nazistas nos campos de concentração espalhados pela Europa.
Ele contava aos conterrâneos, na Praça Maciel Pinheiro, que deixou na Europa, antes de vir para o Brasil, uma família de pelo menos cem parentes e parece que nenhum deles desta numerosa família sobreviveu ao Holocausto. (guetos e campos de concentração nos países conquistados pelo exército alemão nazista).
Como último recurso pediu ajuda à "Sochnut Haiehudit" (Agência Judaica) que operava em todo o mundo em busca de informações sobre sobreviventes e refugiados, espalhados e vagando pela "Europa sem fronteiras". Esta Agência contatou com dezenas de outras organizações filiadas à Cruz Vermelha e outras ONGs internacionais e nenhuma informação sobre a família Sadigursky foi conseguida.
Milhares de refugiados vagavam daqui pra lá e acolá pelo continente europeu que tornava a missão muito difícil, quase que impossível. Com o decorrer do tempo, já totalmente desiludido por não receber noticia alguma de nenhum familiar vivo, não teve outro caminho a não ser se conformar e tocar a vida para adiante. Triste e abatido estava agora pronto a "sentar Shivá". (Um costume religioso de sentar no chão durante 7 dias). Lastimando o acontecido e a enorme tristeza física e espiritual pelos familiares mortos. Neste seu caso particular, vitimas das atrocidades dos nazistas alemães e seus colaboradores.
Mas sempre vem a aurora toda manhã e com ela começa um novo espertar da humanidade e novas esperanças. Com a ajuda dos exércitos aliados que libertaram os campos de concentração e cidades ocupadas pelos nazistas começaram a aparecer listas com nomes de sobreviventes de todas as nacionalidades inclusive de judeus.
Dos Sadigursky nada! Como se a terra os tivesse engolido. As organizações civis voluntárias judaicas muito ajudaram com dinheiro, mantimentos, alimentos, porém todos seus esforços eram dedicados no sentido de retirar esta gente do continente que se transformara num verdadeiro inferno, para lugares onde seria possível reabilitá-los.
A pressão mundial foi forte, lembravam o destino do navio abarrotado de judeus que chegou a Cuba e lá também se negaram deixá-los desembarcar. Hoje eu digo aos "meus botões": “Idiotas, estes cubanos. Quantos Prêmios Nobel perderam mandando os fugitivos judeus de volta para o matadouro nazista alemão na Europa”. Quem sabe, se não foi um castigo divino que Cuba está do jeito que está no século XXI. O fim da estória foi que o navio voltou para a Europa e lá mais cedo ou mais tarde foram todos assassinados pelos nazistas e seus comparsas nos países por eles conquistados.
No Brasil a coisa não foi muito diferente. Antes e durante a guerra também o Brasil se opôs a receber fugitivos judeus da Europa. Ao terminar a guerra mudou sua política emigratória, porem com algumas cláusulas draconianas.
O pobre imigrante judeu deveria possuir uma profissão que fosse prioritária para a economia brasileira. Maneira elegante de dizer "vocês não são o nosso xodó".
Agora imaginem judeus que saíram dos campos de concentração nazistas e escaparam às câmaras de gás, aos fornos de incineração, famintos e esqueléticos: só o que lhe faltava era trazer debaixo do braço um titulo de estudos que provasse terem uma profissão prioritária para as terras brasileiras.
Interessante que a profissão prioritária mais proeminente nas cláusulas do serviço de emigração, era de agricultor. Imaginem quantos judeus europeus entrariam no Brasil. Tá vendo né! Para tudo se dá um jeito quando se está com as "costas na parede". Arrumaram os "documentos" necessários para os judeus.
Assim desembarcaram no Brasil e claro também no Recife. Ninguém podia imaginar que depois de terminar a guerra apareceria num belo dia sol, (no Recife quase sempre faz sol) como por encanto, o irmão gêmeo do senhor Sadigursky, proveniente do "inferno europeu".
A surpresa foi enorme, muito choro misturado com alegria! A Praça Maciel Pinheiro se enchia de judeus para tocar neste milagre que desembarcou agorinha no porto do Recife. Não só o senhor Sadigursky tinha mil perguntas pra fazer ao irmão gêmeo, porém a colônia israelita em peso queria saber de parentes e famílias que deles não tinham noticias desde que rebentou a Segunda Guerra Mundial na Europa. Aos poucos o pessoal entendeu que este pobre coitado só podia contar pouca coisa ao seu irmão sobre o que se passou com a sua família e olhe lá.
Não sabia nada mais, nem datas, nem lugares nem o que aconteceu mesmo com seus visinhos judeus que de noite ou de madrugada foram levados pelas tropas sadistas nazistas e seus colaboradores nos países conquistados e desapareciam para sempre, ninguém sabia para aonde. Sabia contar que se ouvia muito tiro, muita gritaria dos soldados nazistas e o latir dos seus cães.
Ele mesmo e o resto da família foram parar num campo de concentração manejado pelos ucranianos colaboradores dos malditos nazistas alemães. Daí pra frente lembrava-se só do inferno que era o campo de concentração. Os sofrimentos, os castigos, o trabalho forçado, a fome e a luta no dia a dia com uma fatia de pão e uma sopa rala com as cascas de batata que sobravam da cozinha que alimentava os soldados nazistas neste campo. Sobreviveu a este inferno que os nazistas prepararam antecipadamente com o propósito de exterminar o povo judeu. Projeto denominado a "Solução Final".

* SADIGORA: uma pequena cidade no leste europeu (Ucrânia) que gerou durante gerações Rabinos ultra ortodoxos.

• Escritor

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