quarta-feira, 19 de outubro de 2011







Deserção

* Por Marco Albertim

Unhas dos pés e das mãos, grandes, sujas; cabelos eriçados; os óculos grossos no rosto magro, pálido; camisa e calça escuras, com o grude entranhado. Um vodum sem poderes. Não o chamemos pelo nome, para não assomar-lhe o vulto. Tratemo-lo por Absalão, por seu gestual de clérigo, para designar-lhe o contorno. Sentado à beira de uma calçada, assim foi visto, na crua clandestinidade.
Não mudara o nome nos documentos; não carecia, visto ser ele próprio um vegetal arrependido da aparência humana. Não demorou quinze dias, e foi morar com outro clandestino. Também um seu conhecido, mas com trabalho e documentos redefinidos. Juntos no mesmo quarto, dormindo em redes paralelas, penduradas em caibros do teto, junto às telhas.
Abraços. No primeiro domingo, cervejas, pingas encardidas nas pipas cearenses. Às tantas da beberagem, Absalão foi à latrina de uso comum na vila de quartos; demorou. Jerônimo – o nome é irreal mas assenta-lhe no torso – chama-o. Não há resposta. Resolve empurrar a porta, vez que não fora fechada por dentro. Absalão, com a calça arriada, sentado na latrina, a cabeça abaixada nos joelhos, chora... Chora em convulsão, chora sem dizer uma palavra. Absalão ainda era um seco vegetal. Jerônimo não o interroga.
A relação se azeda quando, dez da noite, depois do trabalho na fábrica, Jerônimo chega com fome. Em vez de encontrar o feijão já cozido na panela com tisna no fundo, vê Absalão, ainda catando os grãos para a água; com a ponta de uma chave de fenda...
- Não foi isso que nós combinamos! Você está se entregando à rotina. – E saiu para tomar uma sopa com retraços de ossos, num boteco de uma esquina da Avenida Mister Hull.
Absalão animou-se quando recebeu, entregue por um portador do Partido, um pacote com duas camisas de algodão, duas calças jeans e um par de sapatos Vulcabrás; de sobra, uma caixa de Farroz, para papa, e uma bíblia do Segundo Testamento.
- Há exemplos de lutas de classes – disse, indicando a lombada.
A mãe, evangélica, lhe enviara.
Com a aparência requentada, consegue trabalho como vendedor de livros, coleções etc...
Não demora e está namorando; casa-se com Branquinha, tão magra quanto ele e o mesmo amarelidão no rosto sardento. Casam-se de verdade, com direito a escrivão de cartório. Mudam-se para uma vila de outros quartos, com sanitário e banheiro próprios. Na comemoração com Jerônimo, uma Coca-Cola em litro.
Estoura a guerrilha. Jerônimo pede demissão da fábrica. Absalão, tão cabrito quanto Branquinha, volta para Recife, pouco se importando com as chances de ser preso. Branquinha está prenha.
É reintegrado à universidade; camaleônico, sorve ligeiro o viço do convívio com a pequena-burguesia. O filho crescido, articulando palavras de pouco uso, absorvidas no linguajar do pai. O pai enjoa da mulher. Convence-a de que o melhor modo de ser feliz, é voltar a Fortaleza, onde nascera e se criara. Ela volta, presumindo o reencontro dos dois no local onde se conheceram; tanto que o filho fica.
Com outra namorada, manda o filho para junto da mãe. Azar o de Absalão, Jerônimo não ter ido para a guerrilha. De volta ao Recife, reencontra-o. O namoro de Absalão está por um fio. Jerônimo e a namorada do outro atam-se. Só, Absalão viaja à Bahia para passar o carnaval, tomar banho de cheiro, renovar-se.
Na volta, anuncia que está fora do Partido. Envia correspondência à sessão de Cartas à Redação do Jornal do Commercio. O título é:
Por que apoio a candidatura de Gustavo Krause.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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