quinta-feira, 29 de setembro de 2011







Quando me sentires ausente

* Por Marleuza Machado

Não é um epitáfio. Se depender de mim, pretendo que a estrada seja ainda longa. Mas às vezes as moléstias me assustam e percebo o quanto sou vulnerável. Aliás, somos todos. Por outro lado, partir é tão normal quanto chegar. Morrer faz parte da vida, tanto quanto nascer. Lia Luft, colunista da revista Veja, dedicou-se também a este assunto semana passada. Talvez por eu ter estado "perrengue" no decorrer da mesma semana, faltando energia para viver a vida com a alegria que me é peculiar, tenha feito com que eu que aceitasse essas verdades com relativa normalidade. Todo dia morrem células. Algumas se renovam; outras não mais. Alguns dos meus neurônios, se não morreram, tiraram férias ou quem sabe, até mesmo licença-prêmio, pois tentei acioná-los para o exercício da escrita e não me atenderam. Por isso, neste humilde texto poderá haver erros simplórios, que peço, caro amigo leitor, seja condescendente: Sinto-me incapaz de percebê-los.

Por lidar diariamente com a morte (diariamente não é bem o termo; dia sim, dois não), estou criando certa casca de indiferença em relação ao assunto; não dá para assimilar o sofrimento alheio, mas em casos mais dramáticos ainda levo sustos. Tenho me surpreendido, ultimamente, em constatar como a violência impera na periferia e região metropolitana da Capital. Quando prestava serviço num cemitério que é patrimônio histórico da cidade, os cortejos fúnebres tinham até certa pompa. Hoje trabalho no limite do município, área de extrema pobreza, onde, além de bens materiais, o que mais falta à população, com certeza é amor. Como o povo carece de amor! Como as vidas perecem por falta de amor! E como muita gente ainda mata em nome do amor! Não é irônico? Homens, principalmente, usam do sentimento maior, como agente motivador da prática da violência contra suas parceiras, mães de seus filhos.

Dias desses, fazia uma bela tarde, eu observava as fileiras de covas rasas sob um pé de Sucupira com suas flores cor-de-rosa, a balançarem por suave brisa. Tentei buscar palavras doces para uma narrativa que disfarçasse a realidade dura que anotamos diariamente no livro de obituário. Não consegui. A cada dia que passa, a palavra "homicídio" se agiganta no fatídico livro. Hoje, trago na lembrança, a fisionomia de um garotinho, com cerca de dois anos, que na semana passada corria alegremente pelo pátio e entre as fileiras de covas, alheio ao drama vivido pelos familiares, tendo sua mãe, de apenas dezessete anos, estendida numa urna mortuária na sala de velórios, vítima do "amor" ensandecido do pai, sendo que este ainda se encontrava numa gaveta fria de necrotério, após ter dado cabo da própria vida.

Quando me faltam palavras, geralmente é porque estou pobre de sentimentos... ou talvez não esteja conseguindo lidar com as emoções. Por isso me ausento. Há momentos que pedem reflexão e eu, por sentir que tenho certa intimidade com o Criador, tenho me dirigido muito a Ele, tentando obter respostas a respeito das misérias humanas. Quando falta amor, morre um pouco a poesia, a vida perde a cor, a flor perde o perfume, o escritor perde o vocabulário, fica afônico o cantor.

• Poetisa e jornalista

2 comentários:

  1. Diante da sua falta de inspiração, e o pedido de desculpas iniciais, afirmo que deu um belo recado, e levou a emoção às últimas consequências. Chegou como quem não quer nada e muito fez: uma bela chamada a reflexão, colocando em oposição a beleza da inocência e a frieza da morte provocada.

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