segunda-feira, 19 de setembro de 2011







Quando as árvores caem



* Por Rubem Costa

Quase imperceptíveis aos olhos do leitor, duas pequenas notícias no jornal denunciam anseios e conflitos que afligem a alma do ser. Parecem insignificantes e corriqueiras demandas de gente sem amparo. Mas na sua simplicidade, na singeleza do pedido, refletem a insegurança do homem angustiado perdido na paisagem de um mundo inquieto.

Na primeira das notas, seção de cartas do leitor, irrompe enxuta a instância da morte. Preocupado com a existência do perigo, um apelo dramático roga a destruição de árvores — espécie leucena (que ignoro o que seja) — que, “por serem uma praga que nem serve para alimentar pássaros”, estariam a ameaçar as sadias congêneres nativas.

Mais adiante, na coluna Cidade Reclama, recolho o estrilo que vem de Barão Geraldo. Implora à Prefeitura a extirpação de uma “árvore podre” que promete desabar com perigo para comunidade. Em ambas, na variedade do pedido, o mesmo sentimento, a mesma comoção universal que acompanha o ser desde o nascimento: o temor da morte e o apelo à vida. Retraço da marcha da humanidade desde as infinitas eras da criação — matar para não morrer. Foi assim que o pequeno David matou Golias, o gigante. E construiu um reino.
Quando eu era menino, no grupo escolar os mestres enalteciam as bem-aventuranças da árvore. Uma delas, talvez a mais sutil, seria a de nos dar sombra e abrigo na edificação das casas. Uma parábola inversa à de São Francisco: — das árvores, tudo se toma, nada se lhe dá. Milenar conceito. É destruindo que se constrói.

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As árvores estão caindo. Outras — duas também — eu as vi tremer. Arrasadas pela idade, desabaram doridas, deixando um recanto de saudade no espaço vazio. Belas, pareciam tão firmes, tão soberanas com as copas abertas recebendo ao sol da manhã os ventos de Campinas. Guardavam, às tardes, no fim do dia, o ciciar das brisas amorosas. Ruíram de repente aos olhos atônitos da gente que passava sem pressentir a tragédia de uma existência marcada para anunciar a primavera de todos os dias. Prostraram-se inermes no chão que as viu airosas desafiar as intempéries. Venceram as tempestades, mas se perderam no vácuo, humilhadas pelo tempo, cruel e indiferente que destroçou suas tenazes, raízes que as fizeram crescer para oxigenar a cidade e dar ao homem a visão poética da vida. Assim foi também com o intrépido “seo rosa”, jequitibá gigante, que ereto, no perpassar dos séculos, vencendo as décadas, em frente ao paço municipal, em luas seguidas, até a morte se manteve em pé como o soldado de Pompéia que as lavas do dilúvio não derrearam, para anunciar aos pósteros a grandeza de um mundo que já não era.

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Guardiãs de anseios eternos, as velhas árvores trazem consigo a imagem inextinguível do ser que para crescer precisa estar preso. Amarrada nas suas raízes, desenvolve-se nelas a força que as sustenta para anônimos embates e porvindouras aventuras do existir.

Assim também é a tradição, raiz estratificada onde repousa a memória emocional de um povo. Partícipe da cultura e instrumento ativo da perpetuação de valores que incidem na edificação da sociedade, é o traço histórico de uma nação, a força de coesão que se distende pelos séculos como sustentáculo de gerações e orgulho pátrio de uma gente. Promove respeito e define o gesto do homem diante do solo a que pertence. Da cidade da qual, num instante mágico de transubstanciação, ele, o homem, pode também dizer extasiado: — vivo nela tanto quanto ela vive em mim.

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O tempo é o impassível gerente de todas as eras. Indiferente à dor, está na origem do mundo e na presença última da vida. Edificou montanhas com minúsculos grãos de areia e elevou à dignidade humana a obscura célula perdida nos caos antes da gênese. Por ele passa a grandeza do ser e a miséria do homem. É contraditório. Assiste sereno à construção de civilizações e à destruição de impérios. Infinito. Não caminha, apenas vê a caravana passar e as árvores que crescem fogosas caírem humilhadas quando as raízes se estressam. Por ele transitou Nero queimando inocentes cristãos na fogueira iníqua da Roma antiga. Por ele passaram cristãos queimando “hereges” inocentes na fogueira trágica da Inquisição. Ergue as pinguelas da existência. E nas pontes do mundo, guardadas no tempo, se estendem as árvores por onde passa a iniqüidade do homem.

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As ideias geram crenças que vão presidir a criação do mito. Do mito que, num círculo vicioso, passa a sustentar a crença, já agora, entanto, vazia de ideias.

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Metáforas do ciclo inevitável da existência, as árvores estão aí para testemunhar. Quando o jequitibá tomba, no seu ribombar ouve-se o grito de um mundo que se desfaz.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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