segunda-feira, 26 de setembro de 2011







De virose em virose...

* Por Lêda Selma


Houve um tempo em que a moda era “problema psicológico”. De dor de cabelo até dor na unha. “Ah! isso é psicológico!”, dizia o doutor. Depois, o diagnóstico da vez, toxoplasmose. Não raro, percebia-se claramente que aquele nome estranho, perigoso e incomum, à época, nada mais era que um “quebra galho” para o diagnosticador. Tanto que a rotina, logo, logo, se consolidou: todo mal não imediatamente identificado recebia a tal alcunha. E, de tão comum, a doença ganhou popularidade e perdeu o status.
Hoje, a moda é virose. Fulano está com virose. Beltrano foi ao médico e o diagnóstico é virose. Massificação igual só no tempo do psicológico e da toxoplasmose.
– Não tô bem, seu dotô. Meu incômodo é a mardita escandescência!
– (Ai, ai, ai, ai, ai, que diabo é isso, meu Deus?) – pensou o médico. E, para safar-se da situação, engrossou a voz e tascou no paciente: – Virose. O senhor tem uma virose.
– Deve de sê memo, pruquê passei a noite todinha no banheiro descarregando o desarranjo, desocupando os intestinos, adjutorado por essa aí que o sinhô disse, a tar vi... vi..., mais conhecida como corredeira, carreirinha, ligeira, o senhor entende!
– Ah! sim, o senhor quer dizer diarreia!
– Quero, mas num se avexe não, pruquê gostei muito dessa boniteza aí, a vi... vi... cumo é memo, dotô?
É claro que, muitas vezes, o paciente deixa atabalhoado o médico, em especial o recém-formado, aquele de raízes e vivência metropolitanas, diante de queixas como:
– Vim, doutor, porque não aguento mais tanta dor na passarinha!
A saída? Arranjar uma virose para o doente.
– O senhor me ajude, doutor: durmo e acordo com minha pá dolorida.
Que jeito... Virose nele!
– Além da febre interna, do coração batecum, sofro de espinhela caída, doutor.
O jovem médico não titubeou. Tanto mal amontoado, só pode ser virose!
– Vim aqui, por causa da constipação. Comecei a padecer dessa moléstia depois que resolvi aquecer minha espinha. Maldita resolvição! Mal-avisada, saí do banho quente e um vento frio, de tocaia atrás da janela, me pegou bem no jeito... O resultado? Fiquei troncha, torcida, doutor, assim, de través, veja! Num periga ser um início de derrame, ou reumatismo no sangue, hem?!
Melhor, virose, coringa dos bons!
Nesse clima virótico, uma mulher gorda e sisuda chegou à clínica e encontrou a sala de espera lotada também de queixas, doenças, bocas vermelhas, falantes e palpiteiras. Amuada, acomodou-se numa cadeira, lá no canto e, em rodízio, contorcia as mãos e roía as unhas. Solidária, uma senhora aproximou-se e, logo, desentaipou as palavras:
– A senhora tá com jeito de aflita... Que mal lhe pergunte, qual o seu mal?
– Raiva!
– Vixe, Maria! Mordida de cão raivoso?
– Não, dona, de doutor rançoso. Tá vendo isso aqui, tá? Uma pedra do tamanho de um grão de milho, né não? Pois ela quase me matou de dor durante dois dias. Ainda bem que a desgramenta desistiu de apedrejar meu rim esquerdo, e resolveu procurar a saída. De tanto insistir, achou, e, aí, escapou ontem à noite, ufa! E sabe o que o maldito me disse que era? Virose!
– Virose?! Ah! isso me lembra um outro tropeção médico – e que tropeção! –, feio mesmo, daqueles inesquecíveis, de vermelhejar até cara de pau. A tropeçada, minha comadre, Maria da Luz. A pobre fez a consulta, porque sentia fortes dores nas cadeiras, um mal-estar danado, fartura de apetite e de tontura. Nenhum exame lhe foi pedido. Pressão avaliada, batidas do coração conferidas, apertões na barriga, e o diagnóstico: “Virose!”.
– Virgem Santa!
– Nem virgem nem santa! Tanto que, seis meses depois, com 51cm e mais de três quilos, nasceu uma saudável menina. E pra não desfeitear o médico, sabe que nome a comadre deu à filha? Virose!

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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