sexta-feira, 26 de agosto de 2011







Pra que diabo serve a Literatura?

* Por Urariano Mota


Em um dia distante, as letras já foram chamadas de belas letras. E apesar de assim se chamarem, de belas, e para melhor belo belo terem como objeto a beleza, nem assim as belíssimas defenderam os seus cultivadores. O poeta Geraldino Brasil, que bem conhecia a educação do comum das gentes, assim viu como são recebidos os autores na boa sociedade:

“CLASSE MÉDIA

Um médico.
Ótimo na família.

Um executivo.
Ótimo.

Um engenheiro
Um arquiteto
Um magistrado.
Ótimo.

Um poeta.
Melhor na família dos outros.”

Mas falar nesse tom, irônico e apolíneo, infelizmente não nos serve. Bem que eu gostaria de continuar nesse diapasão, para, defendido pela paciência e método, construir um discurso sobre a serventia da literatura. E para melhor estilo, o que sempre impressiona, concluir pela sua absoluta inutilidade. Mas deixemos de lado esses maneirismos de elegância, de bocejo, tédio e falsa altura. Deixemos, porque, meus amigos e inimigos, este artigo é sobre a grande, absoluta e imprescindível utilidade da literatura.

Falarei apenas do que sei, falarei apenas do vivido. Nada do que adiante se escreve foi lido, ocorrido a outros, em outras vidas ou experiências. Falarei apenas da minha própria, miserável ou medíocre experiência, pouco importa.

Minha primeira impressão prática, material, das letras me veio na adolescência. Eu tenho um amigo, eu tenho um inimigo (e assim deveríamos nos referir sempre aos amigos, pois em circunstâncias históricas estão do nosso lado, ao nosso lado, e em outras mudam de sinal e amizade), eu tenho um amigo que um belo dia me pediu uma redação. Não lembro do tema, desconfio que era sobre a ciência e o nordeste brasileiro. Lembro do real motivo que me moveu: meu amigo, meu inimigo, se achava em dificuldade, porque a depender daquela redação ele seria aprovado ou reprovado em português no terceiro ano colegial. Movido pois de bom espírito, escrevi, na inexperiência dos meus 18 anos, e invoquei Prometeu e seu fígado para fortalecer as precárias linhas que unem, ou deveriam unir, a mais avançada ciência e o nordeste do Brasil. Só muitos anos depois eu soube, quando a minha própria necessidade material não era das mais nordestinas, que aquela redação servira para meu amigo ganhar um prêmio. A redação era para um concurso no colégio, e ele pôde andar pelas noites do bairro com uma lindíssima camisa, fruto do primeiro lugar alcançado com o fígado de Prometeu, do suor deste autor e da invocação aos deuses do Olimpo. E melhor lembro da argumentação amiga, para justificar o ato, com palavras dignas de outros gregos, os sofistas:

- O prêmio era somente uma camisa. Uma, uma só, e dois pobres estavam necessitados. Mas como é que eu ia dividir o prêmio? Eu podia cortar a camisa no meio com uma tesoura?

Era justo. A sorte e a esperteza não escolhem cara. Os que não são espertos somente possuem a seu favor a persistência, ainda que nem sempre mantenham um prudente afastamento dos caras que adoram e adotam um otário. Mas poucos anos depois, narrei uma aventura vivida com esse mesmo amigo num prostíbulo, na forma de um conto, sob o nome de Uma noite na Bahiana. O texto, publicado na revista Ficção, misturado a Millôr Fernandes e a Fernando Sabino como joio no trigo, rendeu um pagamento um pouco melhor que uma camisa, e até hoje rende uma certa alegria, e sorrisos, em quem o lê.

Até aqui, está visto, falei do que me aconteceu, mas não uni a própria e miserável experiência ao título deste artigo. Para que diabo é mesmo que serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela que diga somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne espírito? Existe nela algo que, sem descer dos seus objetos mais nobres, chame a atenção para outros em estado de necessidade, e por isso lhes traga um pouco mais de carinho e pão?

Suspensa aí em cima, isso não é uma pergunta, é uma espada de Dâmocles. Que não caia até a próxima oportunidade.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Exatamente! Serve a vaidade de quem escreve. É uma comichão. Precisa ser coçada, senão explode. Tem de nascer. Ou, como me contou um amigo sobre um alpinista que subiu no Himalaia. Perguntado sobre o motivo de ele subir os mais de 8 mil metros do pico, ele respondeu: Subo porque ele está lá!

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