quarta-feira, 24 de agosto de 2011







Frei Felipo


* Por Marco Albertim

O frade Felipo não se mostrara numa das janelas do convento, para ver o corpo de Cirino ser levado pelos amigos; descerrara quase nada um lado da janela de sua cela, para ajuizar como se dera a morte do camponês. Quando todos passaram, despiu-se do traje conventual, e se pôs em roupas comuns, com as alpercatas do costume; pôs o chapéu de palha com a aba dobrada para cima; os traços marrons, pretos e brancos nas estrias do chapéu, confundindo-o com a roupa quase da mesma cor. Assim, creu-se uniforme, do jeito de um camponês fundindo-se nos mangalhos da feira de Goiana.
Cuidou para que frei Alberto, que simulara um pasmo morto no rosto, inda que com a janela da cela às escâncaras, não o visse. Com um vaso quadrado no bolso, tirou-o em frente à pia de batismo e encheu-o de água benta. Da sacristia, recuou para um dos quatro terraços do convento, no pavimento de baixo; o mesmo que dava acesso ao refeitório, e dali para os fundos. Entre o galinheiro e a vacaria, seguiu no rumo de coqueiros e mangueiras nas margens do caminho; sempre do lado esquerdo dos fundos do convento. Logo se viu nos fundos do quintal do sindicato; subiu um trecho em ladeira, pisando seixos no barro seco.
Entrou pela única porta da cozinha. Ninguém o estranhou, porquanto fora visto algumas vezes em conversa com o Cabeleira; a mesma porta dera acesso às gentes vindas dos charcos abaixo, à vista do casario contíguo. Pensou em perguntar pelo Cabeleira, a modo de identificar-se; mas soubera-o já com o lombo socado no catre da Cadeia Pública.
Teve sede, viu o pote d’água no canto da parede; destampou-o, tirou o coco do prego na parede, encheu-o e bebeu. Deu para ver a embira de jundiás e traíras atrás, já se confundindo com a escura umidade do chão.
Bia, o carcereiro à cata de cúmplices nos conluios da camboa, viu-o; viu-o assim que a velha Josefa dera um jeito de interromper a conversa com ele. Não conseguiu esconder o espanto; não o espanto de ajuizá-lo sem a batina marrom, mas de sentir nas entranhas o embebimento da água sorvida no coco de uso comum.
Frei Felipo acompanhou o séquito sem se dar conta dos olhos do carcereiro nos seus recém-descobertos costumes. Antes de cruzar a larga porta da frente, pressionou sobre a camisa solta, o bolso de trás. Apreciou com um juízo preciso a madeira descoberta do caixão, e sentiu algum alívio por ter trazido o breviário de bolso. Quis se pôr na frente do cortejo, para abrir caminho às verdades pregadas por Cirino. As sandálias de couro nos pés, assoviando nas pedras do calçamento, detiveram-no; desbastavam-se no mesmo ritmo das dos homens segurando as alças do caixão.
A velha Josefa, segurando a neta entre os braços e o peito coberto pela chita puída, pusera-se de seu lado.
Viu o Cabeleira? – quis saber o frade.
Vi. Me deixaram entrar pra todo mundo saber o que pode acontecer com os outros.
Bia os seguia atrás, ao lado, julgando ouvir as palavras na pouca animação dos lábios.
Ao final da rua, teve começo outra, comprida, em linha reta para o cemitério. A velha pôs a neta no chão, andando de seu lado. Frei Felipo fez menção de segurá-la, e logo recuou com a lembrança de que ninguém ali, sequer a menina, se detivera na mira do sofrimento.
Josefa, sem custo nos lábios, avisou-o da espreita de Bia.
No cemitério, o porteiro, assim que avistara a comitiva, puxara o cordão do sino. O coveiro se pôs a cavar uma cova rasa.
Antes de a terra cobrir o caixão, o frade tirou do bolso o frasco de água benta. Cirino foi borrifado pela derradeira vez sob uma algarobeira seca, sem frutos.
Dai-lhes o repouso eterno.
Amém. Josefa foi a única a responder.
Toda a comitiva voltou para o sindicato. Frei Felipo, ao lado da velha, voltou a beber água. Josefa abaixou-se para pegar a enfiada de peixes.
Vou levar pra casa. Ele despescou a camboa mode eu comer no resto da semana.



*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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