domingo, 24 de julho de 2011




Descoberta e criação


A descoberta e a criação são conceitos nitidamente distintos, mas não se sabe fundamentada no quê, muita gente confunde as coisas e entende que ambos sejam sinônimos, ou seja, que têm, rigorosamente, o mesmo significado. Obviamente, não têm. Descobrir é encontrar o que já existia (que provavelmente sempre existiu), cuja existência, porém, todos desconheciam, embora pudessem intuir. Criar, por seu turno, é trazer à existência o que antes não existia. A ciência, pois, é basicamente processo de descobertas. As artes, por seu turno, entre as quais, claro, a literatura, é sempre ato de criação.

A vida, cá para nós, consiste em contínua descoberta. Desde o nascimento até a morte, descobrimos, descobrimos e descobrimos o tempo todo, o que existia antes de nascermos, mas que desconhecíamos. A partir do útero materno, quando nosso sistema nervoso e, por conseqüência, o cérebro, estão formados, já temos consciência, embora sem possibilidades de externar esse conhecimento, de que existimos e nos encontramos em um ambiente muito bem protegido e acolhedor. Pelo menos é o que dizem os especialistas. Aliás, isto é comprovável, mediante o processo da regressão. Trata-se da primeira descoberta de uma sucessão que cada indivíduo terá no correr de sua existência, de acordo com a sua realidade e sua personalidade. Ao morrer, descobriremos, finalmente, o quanto foram tolos os dogmas e valores aos quais nos aferramos. Mas então já será tarde... Esta, todavia, é outra história que não cabe nestas reflexões.

Uma descoberta, que é complicada quando a fazemos, por ferir nosso amor próprio, é a das nossas limitações. Mas ela é importante. Se quisermos empreender conquistas, é indispensável sabermos onde estamos, o que somos e o que queremos, para que possamos escolher a estratégia e os melhores meios para a nossa evolução. Não é necessário alardear nossas deficiências, claro. Não ganharemos nada com esse alarde.

Mas é indispensável que identifiquemos nossas fraquezas e vulnerabilidades e que nos disponhamos a corrigir o que estiver incorreto. O dramaturgo Auguste Strindberg sintetiza essa postura: "Para mim, a alegria de viver está na dura e cruel luta pela vida. O aprender algo é para mim uma alegria". Aprender é, sempre, um processo de descoberta. Aprendemos o que já existe e neste ato de aprendizado não estamos criando nada. Mas é possível sermos criativos com a admissão pública das nossas vulnerabilidades. Como? Através da arte, notadamente da Literatura, estas, sim, ações criativas.

Tomemos como exemplo, para efeito de raciocínio e argumentação o conhecimento sobre o átomo e suas respectivas subdivisões. Trata-se de um processo de descoberta ou de criação? Claro que cabe, no caso, o primeiro conceito. O ser humano não “criou” o átomo, mas descobriu que ele existia e formava a estrutura de tudo o que nos cerca (embora não tenha feito sempre o melhor uso desse conhecimento). Descobriu, também, e mapeou, os códigos genéticos, responsáveis pelas características de todos os seres. Não os criou, certamente. Claro que tanto no caso dos átomos quanto neste, houve, também, processo de criação? Qual? O da codificação desses processos. A nomeação de cada componente do âmago da matéria, de cada elemento químico que sua combinação forma, de cada fórmula das suas reações quando um está em face do outro, tudo isso é ato de criação. Nenhuma dessas nomenclaturas e fórmulas existia, até que alguém as criasse.

Os verdadeiros “descobridores” das coisas que realmente importam são,k por ironia, todos anônimos. Já fiz essa observação em outras reflexões, mas reiterá-la é sempre oportuno. Nenhum dos autores das descobertas essenciais, das que mudaram os rumos da espécie humana e lançaram os fundamentos da civilização, “patenteou” suas descobertas, para explorá-las comercialmente. Contudo, há inúmeros indivíduos alardeando, aos quatro ventos, terem “descoberto a pólvora”, ou seja, inventado o que acham que antes não existia, sem que de fato o tenham feito.

O que lhes falta é conhecimento. É consciência. É humildade. É discernimento. É informação. E tudo isso faz parte do terreno das descobertas, posto que primárias, elementares. Às vezes esse anonimato ocorre, também, com os criadores, os que inventaram e inventam o que não existia. Quem inventou a roda? Ninguém sabe! Quanto aos descobridores, quem foi o primeiro a descobrir como obter o fogo mediante o atrito de duas pedras, ou por outro meio qualquer?

Entre os criadores, algumas omissões são até, digamos, mais contundentes. A escrita, por exemplo, revolucionou o conhecimento humano, possibilitando seu “estocamento” e sua transmissão de uma geração a outra, com os devidos acréscimos. Contudo, pergunto: quem teve, pela primeira vez, a idéia de criar as letras do mais primitivo dos primitivos alfabetos? E dos demais, já que cada uma das cerca de vinte mil línguas e dialetos tem sua própria simbologia, ou seja, sua letra e sinais gráficos característicos? E quem inventou os números? Não vale responder citando o nome de um povo. A pergunta refere-se à “pessoa” específica, autora dessa criação. Você sabe quem foi? Eu não sei!!!

E quem teve a genialidade de criar o símbolo que representa o nada, a ausência, o “zero”, que deu tamanho impulso à matemática e a todas as demais ciências que têm nela instrumento essencial? Estão vendo? Ninguém sabe! E o questionamento poderia seguir, linha após linha, preenchendo páginas e mais páginas e sabe-se lá onde poderia parar.

Já o processo de criação literária e, principalmente, o teor do que é criado, dependem muito de cada escritor. Pegue dois poetas e peça-lhes para comporem um poema sobre o mesmíssimo tema. As diferenças de abordagem serão gritantes, profundas, abissais. Seus respectivos textos poéticos podem até serem rigorosamente idênticos no conteúdo (o que já seria uma façanha), mas jamais na forma, nas metáforas utilizadas, no arranjo das palavras. Podem ser semelhantes, portanto, mas nunca iguais. Por isso, a literatura é “exclusivamente” processo de criação e não de descoberta, embora possa conter (e via de regra contém) elementos desta.

As diferenças formais, de um escritor para outro, têm tudo a ver com os respectivos estilos, com a cultura, a vivência, a autodisciplina, o talento e com os ambientes que cada um freqüentou. E também com as pessoas que os dois conheceram, com o grau de observação deles, além do óbvio: com sua técnica, domínio do idioma e visão de vida. Por outro lado, cada gênero (poesia, crônica, ensaio, conto, novela e romance) tem seus próprios macetes, suas peculiaridades e características. E embora todos os escritores sigam, em linhas gerais, as mesmas regras, suas obras serão, rigorosamente, originais, e “sempre”, mesmo que se mostrem parecidas.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. A ciência, colocada no rol das descobertas, precisa antes de tudo ser dissecada, entendida, explicada. Nesse processo vejo muito de criação também.

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