sábado, 25 de junho de 2011







Viajando antes do check-in

* Por Cecília Giannetti

O corpo aqui; a cabeça, na mala, como se recortada cirurgicamente à la boneca de papel. Em seu lugar o sinal de interrogação se apóia no pescoço pra rir de lado quando desconfiar: o homem que me cumprimenta é conhecido de outros carnavais; a mulher que toca meu braço no supermercado já tomou café na minha casa; a voz do outro lado do telefone tem meu sobrenome e conhece o lugar de onde eu vim.

A cabeça só torna a se colar ao corpo quando estamos longe do lugar onde ela se descolou. Aí reajustamos a vista, olhamos de fora os desacontecimentos todos em sua tediosa uniformidade, as loucuras que pareciam intraduzíveis em nossa própria língua. Visto de outro ponto qualquer do mundo, o lugar onde nascemos fica claro como um mapa.

Correspondente exemplar

Num tempo em que qualquer viagenzinha poderia significar dores lombares excruciantes durante uma eternidade sobre uma carroça puxada a cavalos sobre chão irregular - e/ou dias e dias enjoando num navio – James Holman tinha mais motivos que qualquer um para se gabar de ter dado a volta ao mundo.

Não só por ser cego, mas por ter completado trajetos que outros deixaram pelo meio, e escrito sobre tudo com senso de humor, lirismo e detalhes impressionantes. Para se ter uma idéia, testemunhou a ebulição do Vesúvio, em 1821 – sem acompanhamento de guias –, entre outras maluquices mundo afora.

Como? O lançamento da HarperCollins, A Sense of The World (http://www.jasonroberts.net/books.html), dá o caminho das pedras para compreender Holman. O resgate é bem-vindo: o inglês foi um dos maiores viajantes do século 19 – uma época em que andarilhos como ele eram nossos maiores repórteres. E morreu esquecido. Não tinha o hábito de fazer marketing em cima de sua condição para divulgar os livros que publicou dando conta da experiência. Deixou sua fama desaparecer por completo mesmo após ter se tornado “best-seller”.


Vale dar uma palhinha da história:

Logo no começo do trajeto, Holman vai em cana na Sibéria – o lugar, então, não passa de uma cadeia gigante aonde párias do mundo inteiro são isolados – e escapa da prisão em meio à burocracia diplomática. Faz questão de entrar em terras desconhecidas sem falar o idioma local – assim força sua interação com o povo e aprende o básico da língua no tranco. No continente africano cruza com um guerreiro indígena que tem o abdome coberto de tatuagens. E que, a julgar pelo nome – “Cut Throat” ("corta-garganta") – não tem lá muito respeito pela vida alheia. Mas Holman tem a manha e ganha a amizade do aborígene.

Vetar guias não quer dizer evitar figuras malucas pelo caminho. Como Colebrook, por exemplo, que, completamente surdo, forma com Holman alvo fácil de piadas em suas andanças – e os dois nunca se esquivam de participar da zoação, usando suas deficiências para pregar peças um no outro. Se Colebrook ajuda a enriquecer seus textos com alguma coisa, é com detalhes sobre vestuário – e principalmente sobre a beleza da mulherada. A ajudinha, neste caso, é bem recebida pelo Blind Traveler durante algumas semanas. Ambos gostam de companhia feminina e não raro Holman é bem-recebido por condessas e outras patricinhas high society da época.

Outro tipo interessante com que cruza é o Pedestrian Traveler, um sujeito com aparência de mendigo e o bolso cheio de cartas de recomendação assinadas por altas patentes, que viaja a pé a maior parte de seu trajeto do Velho Mundo ao Novo Mundo, aceitando às vezes uma caroninha de carroça ou de canoa nas travessias que não poderiam ser feitas de outra maneira.

E pensar que hoje em dia a turma reclama do jetlag...

O Viajante Cego

Holman ganhou fama no século 19 explorando regiões pouco conhecidas da África, Ásia, Américas e Europa. A cegueira – seqüela de uma enfermidade não identificada – o acompanhou desde sua primeira viagem como tenente, aos 25 anos. Por ter adoecido quando prestava serviço à Marinha, descolou uma nomeação para a Ordem de Windsor. Mas recusava guias e quaisquer outras vantagens que o título pudesse garantir a um viajante cego.

Holman amargou cerca de dois anos sendo tratado como um inválido, antes que pudesse se jogar na aventura. Sua saúde geral era debilitada, com fortes dores reumáticas. A medicina disponível não oferecia alternativas de cura que não passem por sessões de sangramentos, choques e sanguessugas – tudo inútil.

As dores reumáticas, por outro lado, foram seu passaporte: os médicos acabaram decidindo que o Mediterrâneo e certas partes da Europa tinham condições climáticas que poderiam amenizar o sofrimento físico. Com carta branca dos doutores, meteu o pé na estrada, começando pela França e engrenando viagem até ganhar fama como viajante e escritor, completando, em 1832, seu circuito mundial. Passou até pelo Rio de Janeiro, chegando a mencionar Cabo Frio e o Pão de Açúcar em suas notas.

Holman não caiu no mundo sem diploma: precisou vencer a resistência do meio acadêmico e dos oficiais de Windsor para ingressar na universidade. Atrasado mais de dez anos em relação aos colegas de turma na educação superior formal – por causa do tempo dedicado à Marinha – estudou Literatura na capital da Escócia. Para registrar suas observações, utilizava o noctógrafo – então uma novidade – cuja tecnologia consistia no uso de papel carbono para fazer as marcas e uma régua para guiá-lo através de linhas. O noctógrafo e a bengala com ponta de ferro eram suas ferramentas de independência – escreveu, em vez de ditar a alguém, a maior parte de seus textos.

LINKS etc.

=> "Primeiro saia da redação; depois saia do seu carro. E, de preferência, vá a algum lugar que você ainda não conhece. É bem possível que assim você arranje uma boa pauta". (http://www.newsthinking.com)

=> O Viajante Cego foi resgatado pelo norte-americano Jason Roberts, colaborador do Village Voice (www.villagevoice.com) e da Salon.com (www.salon.com). Apesar da distância de quase dois séculos entre biógrafo e biografado, os dois têm em comum o senso de humor. Roberts integra a patota de Dave Eggers (este publicado no Brasil pela Rocco, e criador das revistas McSweeney´s http://www.mcsweeneys.net e The Believer http://www.believermag.com).

=> Algumas notas de viagem de Holman estão disponíveis no arquivo do Projeto Gutemberg (http://www.gutenberg.org/etext/12528).

* Escritora e jornalista carioca, tem contos publicados em revistas e em antologias das editoras Record, Ediouro e Casa da Palavra. Seu primeiro romance será lançado em 2006 pela Agir. Edita a revista eletrônica Bala [www.revistabala.com.br] e faz stand-up comedy todos os dias no www.escrevescreve.blogger.com.br

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