sábado, 28 de maio de 2011







Na casa do seu Solón Campos e
na casa onde dormiu o Bispo

* Por Urda Alice Klueger


(Dedico este texto à minha mãe e meu pai, Minervina e Roland Klueger)


Acho que Canelinha ainda não era município, quando tirávamos o tempo de lá ir passear, meu pai, minha mãe, nós crianças, semana inteira de passeio, coisas que ficaram indelevelmente gravadas nas memórias da minha vida. Antes de sair de casa a gente dizia que ia “para Tijucas”, e para Tijucas seguíamos num sacolejante ônibus do qual tenho as piores lembranças, pois sempre enjoei muito dentro de qualquer coisa que se mova e que eu não esteja dirigindo, se bem que hoje, em idade adulta, conheça remédios que existem para afastar o terrível fantasma desses enjôos.
Minha mãe havia nascido e se criado na Nova Descoberta, pequeno lugar intermediário entre Tijucas e Canelinha, onde havia a Igreja de Santo Antônio, muitos parentes e incontáveis histórias sobre os tempos em que ela lá viveu, histórias que andam a me alimentar até os dias de hoje, não importa quantos lugares do mundo conheça por aí afora! Pergunto-me neste momento se quando houve a partição dos municípios Nova Descoberta ficou pertencendo a Canelinha ou a Tijucas, se as crianças que hoje nascem ali são crianças de lá ou de cá – qualquer dia destes irei me informar. Naqueles estertores da década de 50 do século passado, no entanto, que é quando eu me lembro, minha mãe era de Nova Descoberta, de Tijucas, de Canelinha, e de um outro lugar muito mágico, que só conheci depois de adulta: Nova Trento. Tudo isto, hoje, é muito perto, poucos minutos de carro por estrada asfaltada, e fica quase incompreensível para a minha imaginação de gente grande pensar que tudo era tão longe e difícil quando eu era criança!
Hoje passo muitas vezes pela BR-101, em direção a Florianópolis, e sempre que há alguém comigo no carro, não deixo de informar, quando estou próxima das pontes gêmeas de Tijucas:
- “Vês aqueles morros azuis lá longe? Foi de lá de dentre eles que veio a minha mãe!” – pois aqueles antigos passeios às terras onde ela se criou estão fortemente acordados dentro de mim, e nunca será possível esquecer.
Eu era pequena demais para lembrar agora a ordem em que as coisas se davam, pois íamos cá e lá, e então vou contar conforme elas estão vindo ao meu coração: em algum momento, um ônibus sacolejante nos deixava numa pequenina cidade chamada Canelinha, onde tínhamos porto seguro, que era a casa do seu Solón e da Dona Patrícia Campos.
Penso que chegava muito mal, depois de tanto enjôo, e não me lembro muito bem como era chegar – mas estar lá era uma coisa fascinante! Um dia o seu Solón Campos tivera uma venda, e então sua casa era muito grande, com partes vazias onde antes funcionara o seu comércio, e havia uma série de quartos e muitas roupas de cama, e dormíamos em amplas camas de colchão de palha de milho, extremamente reconfortantes depois daquele tanto sacolejar do ônibus detestável!
Lembro outras coisas da casa, como ela tinha as altas paredes sem nenhuma pintura, prática comum naquela região naquela época – pelo menos, nas minhas lembranças, quase nenhuma casa agrícola que conheci àquela altura tinha nas paredes nuas mais que as marcas de antigos e novos líquenes! E também não havia eletricidade, pelo menos naquela casa – se bem que pode ser que a mesma faltasse muito, pois na minha cidade também, então, sempre tínhamos cortes de eletricidade – o que me lembro, no entanto, era dos candeeiros a querosene à luz do qual a Dona Patrícia Campos preparava a galinha que matara às pressas para as visitas que tinham chegado, e de como ela usava tamancos de madeira e um chapéu de palha de abas largas, mesmo de noite, para que insetos voadores não pousassem na sua cabeça! Seu Solón sentava-se e conversava e conversava, e ele e meus pais faziam projetos para os dias de passeio, mas a coisa mais impressionante de todas, com certeza, na casa do seu Solón Campos, era uma grande fotografia colorida de Getúlio Vargas, pendurada na sala, que ele, respeitosamente, explicava ser o “Pai dos Pobres”. Foi lá na casa do seu Solón Campos que eu travei meu primeiro contato com Getúlio Vargas e alguns conceitos da política brasileira, com certeza.
Seu Solón e dona Patrícia tinham um filho chamado Taurino, mas como eles já fossem velhos e Taurino já fosse adulto e andasse a tocar a sua vida, eu nunca cheguei a conhecê-lo. O que lembro bastante lá da casa do seu Solón é de um quintal cheio de cheiros verdes, chás para mezinhas, tomates e outras coisas plantadas – e da sua gloriosa carroça puxada por dois cavalos castanhos!
Era em tal carroça que saíamos a passear, naquela animada semana! Minha mãe tinha saudades da cidade de Tijucas, e então, passo a passo, os calmos cavalos puxavam a carroça até lá, e adultos e crianças íamos dentro dela, e na minha lembrança passavam-se muitas, muitas horas até que chegássemos. Tijucas tinha todo um ar diferente, já fora cidade importante, as casas eram pintadas! Não sei bem o que fazíamos na cidade de Tijucas além de matar as saudades da minha mãe – o que lembro com clareza era da imponente casa da Dona Chiquinha Galotti, e da foz do rio, que era nossa parada final. Queria saber se ainda, lá naquela foz, o rio deságua num mar de lama, e queria que alguém me explicasse aquilo! Decerto, quando olhava, era hora de maré enchente, pois ondas de lama entravam rio adentro e aquilo era muito feio e muito ruim de se olhar – depois de adulta, nunca mais fui lá para ver direito como era aquilo e por quê que um mar de lama podia se formar, assim, em algum lugar do mundo! Será que aquele mar ainda está lá do mesmo jeito? Pelo que lembro, aquele lamaçal em forma de ondas foi, provavelmente, a coisa mais feia que vi na minha mais tenra infância.
E era a partir da casa do seu Solón Campos, em Canelinha, que nos dias seguintes fazíamos mais visitas e passeios, e em algum momento nos mudávamos para Nova Descoberta (ou será que íamos lá antes?), e lá nosso abrigo era a casa do tio Adolfo e da tia Bernardinha, que eram tios da minha mãe. Dentre outros descendentes, eles eram pais da Linda e avós da Quinha, e depois de adulta estive lá diversas vezes, e elas ainda moravam na antiga casa do tio Adolfo, que fora construída toda em encaixes, sem pregos, vetusta casa do passado onde, um dia, dormira um bispo! É provável que o bispo tenha dormido lá há uns vinte ou quarenta anos antes, mas que charme ele ainda dava àquela casa! Enquanto ficávamos lá, que fascinante que era para mim dormir, com as minhas irmãs, na ampla cama onde um dia o bispo dormira! A onipresença daquele bispo que talvez até já tivesse morrido dava tal dignidade àquela casa antiga e sem pintura, como as outras casas rurais, que se tornou impossível esquecer tal fato!
E dali da casa do tio Adolfo partíamos para as outras visitas, ali pela redondeza: a comadre Carlota, mãe do Diogo, que ainda vive por lá, as visitas aos muitos Giacomossis, cuja matriarca tivera 17 filhos, e que é avó da Miriam Gilli e de tantos outros, à viúva Bissóli, mãe do Salvador e do Caetano, à Lia e à Tana, às paisagens que a minha mãe trazia escondidas dentro do peito, e que ia rever para não morrer de saudade – e lembro tantas coisas, tantas coisas de cada lugar destes, de cada casa destas, de cada cafezal, e dos pés de ingá, mais altos que os de café, e de como a Lia nos levava a um lugar que deveria ser um brejo, penso – mas que tinha ilhas flutuantes mas firmes, onde podíamos pisar sem afundar, e que ela chamava de “balsas”, e de como ela nos contava que por ali ainda havia jacarés – nunca mais, na minha vida, soube de outro lugar no Estado de Santa Catarina, onde existissem jacarés!
Então, às vezes voltávamos de tais visitas já noite fechada, escura, e era necessário ter muito cuidado para atravessar o pasto do tio Adolfo, para não esbarrar, sem querer, em alguma vaca que estivesse ali parada, a ruminar. Entre o pasto e a casa havia o jardim da Linda e da Quinha, onde, além de rosas-de-Santa-Rita e de tantas outras coisas, elas cultivavam o colorau para a galinha dos almoços de luxo. Nessa altura, o que mais lembro era de chegar, e me enrodilhar na cama onde um dia dormira o bispo, e deixar a imaginação correr à solta, pensando que um dia um bispo estivera mesmo ali...
Numa dessas idas lá, minha mãe trouxe de presente dois castiçais de faiança branca, coisa mais linda, lembrança de família, que já não lembro quem guardara para ela. Faz muitos anos que ela me deu um dos dois castiçais. Ele está em lugar de destaque, na minha casa do século XXI, a atestar que tudo aquilo existiu e aconteceu mesmo. Faz tanto tempo, e foi tão lindo, que se não fosse o castiçal, talvez eu pensasse que tivesse sido apenas um sonho...

(Crônica premiada no Prêmio Cidade de Canelinha, em 2007)

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Urda, as melhores recordações ficam esplêndidas nas suas lembranças. Gostaria de ter uma memória tão linda quanto a sua. Pensar como você pensa no passado é lembrar colorido e belo.

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