quarta-feira, 20 de abril de 2011







Um artista da fome

* Por Marco Albertim

De cima da ponte, Gersino viu o casario de um lado e de outro do rio. Não eram as mesmas casas de quando fora menino. As casas de massapê deram lugar a outras, de alvenaria; inda que mais resistentes, desiguais, não tinham em conta a calma da água escura do rio. Os tijolos à mostra, as telhas de beiras pontiagudas, as calçadas fora do alinhamento, tudo parecia agredir a indolência do rio. Gersino apreciou, curvou-se aos anos; apoiou-se no parapeito para se mirar na água que o banhara, então barrenta, do barro em mistura com o massapê que dera prumo ao canavial, aos bambus na beira do rio. A água, agora, morrinhenta da calda despejada pela usina de açúcar. Mirou-se, ele, com desassossego. A água não mostrou sua silhueta.
Podia fotografar dali, capturando a compridez do rio, as casas na margem. Resolveu que traria de volta o Baldo do Rio, com mulheres esfregando, lavando roupas na margem. Falou com o pintor:
- Pinte o quadro como se estivesse em cima da ponte. Traga de volta o embarcadouro com a escadaria de pedras na beira. Imagine uma embarcação parada, com as velas abertas, alguém em cima. Nos fundos, por trás, a praça com os bancos antigos. E na rua, os sobrados com os armazéns. Ponha coqueiros na praça, como antigamente. E figurantes: soldados de polícia, algumas raparigas no passeio. E os comerciantes, gordos, ricos, com chapéus na cabeça. A igreja deve aparecer, mas só a torre porque os sobrados não deixam vê-la nem do alto da ponte. Recupere a vila na beira do rio, canoas saindo e voltando. Se a tela sair bonita, mostraremos os estragos dos anos, o descaso dos prefeitos.
Domingos não era um pintor em fim de carreira, mas tinha tudo para isso. Fora funcionário da prefeitura, demitido por furto de remédios para vender. Não houve escândalo porque o demitiram com os direitos, mas vazou para a rua o caso. Aprendera a pintar ainda menino, nunca se profissionalizou porque se entreteve noutros ofícios; não firmou-se em nenhum, conservou a pouca fama de pintor. Encomendavam-lhe um quadro ou outro, pintando-os com zelo, o traço com pouco apuro. Poucos sabiam pintar em Goyaninha. Domingos tirou proveito da ignorância dos outros.
- Tire uma foto que eu levo para casa e pinto olhando para ela.
- Se eu quisesse uma fotografia não teria encomendado o quadro a você... Além do mais, você nasceu e viveu aqui, vive aqui. Tem a paisagem na cabeça. Não precisa de fotografia.
Pedira a foto, Domingos, para se socorrer da insegurança no uso do pincel. Gersino, que queria a todo custo as duas ruas alagadas na beira do rio, não se deu conta disso.
Cresceram juntos e tinham da infância boas lembranças; moraram em casas vizinhas. A irmã de Domingos namorara Gersino, primeira namorada. Nunca se incomodara, o irmão. Separaram-se porque os pais, cada um seguiu um ofício.
Vivia Domingos numa casa com dois quartos separados por um banheiro, uma cozinha com pia para lavar roupas, e a sala. Na entrada um terraço estreito, à frente de um maior, área comum dos vizinhos de cada lado. Ali estendiam as roupas nos fios de náilon; todas, as intimidades se misturando. Ele ocupava o quarto da frente, numa cama de casal, inda que sem mulher. No quarto de trás, fechado, deixara cadeiras quebradas, cavaletes, latas de tinta vazias, poeira e teias de aranha. Não queria desocupá-lo. Para ocupá-lo com o quê? No sofá da sala, deitava-se, sentava-se para pintar. Gersino hospedou-se no quarto da frente. - Quando vai começar o quadro?
- Tenho algumas encomendas. Quando terminar começo o seu.
Gersino olhou as paredes do quarto, as panelas sobre a pia suja, a geladeira roída pela ferrugem nos pés. Não tinha direitos, Gersino; não na moradia carente de Domingos. Deitou-se com a porta do quarto aberta. Domingos, deitado no sofá, a televisão ligada.
- Como você consegue se distrair nos enfeites que uma novela faz da vida?
- Não vejo isso de enfeites. As histórias são boas. E custa menos assistir televisão do que ir para a rua se distrair.
- Seria mais proveitoso conversar com os amigos, sentar-se numa praça.
- Os amigos já estão estabelecidos. Ainda tenho que ganhar a vida.
Perdera o emprego já passados os cinquenta anos. A mulher com quem se casara fora-lhe infiel com um amigo comum aos dois. Deixou-o depois que o viu sem o emprego.
- Tem visto os seus filhos? – quis saber Gersino.
- Eles não me procuram. Minha filha prefere ficar com o namorado.
- Ela está na idade.
- Podia pelo menos passar um fim de semana comigo.
- Os filhos são criados para o mundo, não para os pais.
- Minha mãe também me dizia isso. E eu rezei para que ela morresse. Tinha câncer.
Gersino queria o passado de volta. Nos traços do pincel de Domingos ver-se-ia outra vez andando na beira do rio, à toa, longe do desapego que a vida também lhe votara.
- Amanhã podemos andar na margem do rio. Talvez você recupere o ânimo e pinte um quadro com a força de um gênio.
- Se seguirmos o curso do rio, ficaremos tão tristes quanto as águas.
- Olhe para as águas do rio e tire proveito da tragédia.
Dia seguinte, fim da tarde, pararam no guindaste desativado; sentaram-se sobre os tijolos nus, encostados na ferrugem. O guindaste fora construído há duzentos anos, desembarcara louças, móveis de madeira de gente próspera, moradores recém-chegados. Sem as correntes, debruçado sobre o rio, não tinha a idade das águas, mas a mesma de uma memória esquecida.
- Já vi este guindaste tirando fardos de carne-seca dos barcos. Ia para o armazém de meu pai. O armazém não existe mais. O guindaste não funciona, não foi enterrado por preguiça do povo.
- Ponha isso nos seus quadros...
Seguiram o rio. Gersino falou para sentir o deleite de ter o dinheiro para comprar o quadro.
Os dois olharam para a extensão das águas.
- Pinte a miséria. Você será um artista reconhecido. Descubra a cidade no que ela tem de pior. Mostre a todo mundo. Virá gente de fora para comprar seus quadros.
- Não acredito.
- Não acredita na sua arte!?
- Não tenho outra coisa para fazer.
- Há quem não sabe pintar e não tem nada para fazer.
À noite, em casa, Domingos sentou-se na poltrona para pintar. Ligou o ventilador. Gersino sugeriu que ele fosse para o terraço, no meio das roupas penduradas. Domingos, curvado ao flagrante de nunca ter tido a ideia de pintar no terraço com varanda para a rua.
- Convém a todo pintor – acentuou Gersino.
Às onze da noite, Gersino se levantou da cama; sentira, vindo da janela do quarto, o cheiro do cigarro fumado por Domingos. Incomodara-se, foi conversar. Não disse nada, esperando que ele puxasse conversa. Domingos, mudo, o cigarro pendurado num canto da boca, retocando um quadro inspirado pela decoração de sua cozinha, própria para utensílios há muito usados. A pia de cerâmica com furos, estropiada. A ilusão de fartura era dada por um recipiente de vidro, grande, com tampa vermelha, entupido de pimentas vermelhas no vinagre. No meio, uma mesa onde ele fazia as refeições; uma pãozeira no centro, não raro ocupada por bananas em apodrecimento.
Domingos transpusera tudo, não escondendo nem as manchas de fungos sobre a pia, nas quinas da mesa. A lâmpada de luz rala, moribunda, o bastante para incidir no minguado cacho de bananas.
- Quanta sinceridade! – Gersino não evitou.
- Não sei pintar a abundância.
- Um artista da fome... Não tem outros quadros iguais a este no quarto fechado?
- Não. Fiz alguns mas já vendi.
- Conseguiu vender um quadro da miséria nesta cidade? Quem compraria?
- Só fiz dois quadros assim. Vendi a muito custo. Ninguém se interessou. Quem vai se interessar por um quadro que é uma paisagem morta na cozinha? Tão comum a todas as casas daqui?
- Você tem que sair dos limites desta cidade. Aqui você será somente um artista da fome.
Domingos acendeu outro cigarro. Cansaço, olhos vermelhos. Recolheu o cavalete com a tela, a cadeira onde se sentara. Gersino mirou-o como se estivesse numa oficina de artes; reparou na cadeira, da mesma cor verde do armário da cozinha; no encosto e no assento, pingos azuis, vermelhos, amarelos, verdes, incrustados na madeira. A bermuda que Domingos usava confundindo-se com a mutação da cadeira. À luz da sala acesa, inda que escassa, mostrou o artista com vincos nos olhos, estrias na testa, rugas sob os cabelos que ele, no esforço de conter os anos, pintara; pintara-os na cor escura, a tinta empalidecera; os fios marrons, brancos, misturando-se com a pele branca, engelhada. Sob a luz morta da sala, também se tornara uma paisagem morta.
Depois do banho, deitou-se na poltrona, ligou a televisão, acendeu outro cigarro. Deitado, com a porta do quarto aberta, Gersino viu as imagens entreter os sentidos de Domingos. Quis dormir, Gersino, mas intrigou-o o fato de uma cena repetida de novela não o deixar amuado. Uma mulher da mesma idade dele, vestida num tailleur, sentada numa poltrona de luxo, fumando numa piteira, soltando fumaças na sala de um apartamento de luxo. O marido, com a mesma pompa, bebendo seguidas doses de uísque, acompanhando-a com fastio. Diabo! Como pode alguém pintar com tamanha franqueza a própria miséria, e entreter-se com a ilusão do luxo!? Gersino demorou a dormir, mais do que Domingos.
Manhã seguinte, os dois debruçados na varanda do terraço, ainda em jejum.
- Por que você olha com tanta curiosidade a riqueza que a televisão mostra?
- Para esquecer a minha pobreza.
- Não deve esquecer a sua pobreza. Só sairá dela se olhá-la de frente, como fez com o seu quadro.
- Meu quadro me afunda mais ainda na pobreza. Poderia pintar a vida que levei quando meu pai era rico. Mas isso já se perdeu na memória. E depois diriam que eu sou um pintor metido a besta.
- Você sabe encarar a pobreza no pincel, mas não a aceita no seu modo de vida. Valorize-se enquanto é tempo. Vou comprar este seu quadro; por ele e para lhe dar confiança.
No dia seguinte Gersino viajou. Comprara o quadro e adiantara metade do dinheiro para a compra do outro com o rio visto da ponte. Voltou dali a um mês. Encontrou Domingos no terraço, entre as roupas no varal, pintando. Já se via a extensão do rio, a amurada, o casario em ruínas na margem do cais, as casas, misto de pobreza e recuperação. O cenário quase esboçado deixou Gersino tão extasiado quanto ficara com o outro quadro. Não havia sinais de figurantes, mas anteviu-os com a progressão da pintura. Experimentou, Gersino, uma emoção comum a adolescentes, revendo-se de calça curta, à toa na beira do rio. Conteve-se nos elogios, mas os olhos quase engolindo o que estavam vendo, não escaparam dos sentidos de Domingos.
- Mais uma semana e o quadro estará terminado.
- Não tenho pressa, não tenha pressa. Voltou à ponte para apreciar o rio mais uma vez?
- Voltei ao guindaste. Passei uma tarde inteira sentado ali. Quando me enchi de tristeza, vim para casa e comecei a pintar o quadro.
- Quando terminar o quadro você vai sorrir, sorrir de satisfação.
- Já estou acostumado com o cheiro do óleo da tinta. Não me dá mais satisfação.
- Eu o reconheço como um artista; isto não lhe dá prazer?
- É um reconhecimento amigo, de quem me conhece desde a infância. Não é um prazer novo em minha vida.
- Orgulhe-se do que faz. Você terá o reconhecimento dos outros.
- Já sou um póstero de mim mesmo... Não tem graça.
Na tarde seguinte, foram à beira do cais. Sentaram-se num banco de cimento roído, com os ferros à mostra. Apreciaram a ponte, o que restara dos ferros sob a construção, com os arcos enferrujados, seguros por grossas porcas nos parafusos.
- A ponte está no fim. Talvez não resista a dois invernos – cismou Domingos.
No fim da tarde, surgiu-lhes, meio submissa aos sentidos dos dois, uma mulher com um vestido longo, verde desbotado; cabelos lisos sobre as costas, com mechas brancas e pretas; rosto cansado, pouca visão nos olhos quase fechados.
- É Beleleta, a dama do cabaré – disse Domingos.
- Como ela está envelhecida. Era uma mulher que nos deixava tontos.
Domingos puxou a conversa.
- Olá, Bela – ela reconheceu-o pela voz. – Este é Gersino, lembra-se?
Ela olhou para ele, querendo esconder os olhos quase cegos, movendo a cabeça, cruzando os braços. Beleleta chamara a atenção no trottoir da beira do cais, dera prazer aos moços Domingos e Gersino.
- Gersino Pontes. Quem não se lembra?
Gersino quis saber de seu novo endereço. Prometeu que iria a sua casa, levando cervejas, comida. Para conversar, saber como fora o começo, a fama e a queda da prostituta.
Despediram-se. Não tinham mesmo o que conversar.
Gersino viajou, voltou quinze dias depois. Encontrou as grades do pequeno terraço fechadas, as grades e a porta da sala. A vizinha, ouvindo quando ele chamou pelo nome do pintor, acudiu-o com o quadro, entregando-o. Gersino desembrulhou a tela, viu o cais restaurado. Domingos pusera três figurantes: os dois sentados no banco e Beleleta em pé, com os braços cruzados, olhando-os. Pintara-se tão velho quanto Beleleta, quanto a ponte. Perguntou à vizinha por Domingos. Mas a mulher mal entregara a tela, voltou-se para sua casa sem dizer uma palavra.
Gersino foi ao cais mirar a ponte, compará-la com a do quadro. Tardezinha viu Beleleta se aproximar.
- Onde está Domingos?
- Ele jogou-se da ponte.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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