sábado, 16 de abril de 2011


Nossa coerente incoerência


A inconstância é o que há de mais constante nas ações humanas. A afirmação parece mero jogo de palavras, mas não é. É a pura expressão da realidade. Raramente percebemos o quanto somos incoerentes em nossos atos e nos irritamos quando alguém observa isso. Ocorre que esse “observador”, caso venhamos a resenhar suas atitudes, age da mesma forma. E, não raro, com intensidade e constância maiores do que as nossas.

Montaigne escreveu, ainda no século XVI, memorável ensaio a propósito, intitulado “Da incoerência de nossas ações”, que enseja profundas reflexões. Em alguns casos, suas conclusões nos servem de “espelho”, por mais incômodo que isso nos seja, mas de grande importância para que façamos honesta análise da nossa personalidade e do nosso modo de agir, com o objetivo de nos conhecermos melhor, ou, em alguns casos, apenas de nos conhecermos, pois o autoconhecimento é muito mais complexo, complicado e raro do que ousamos supor.

Sou leitor compulsivo dos textos de Michel Eyquem de Montaigne, humanista e filósofo, tido e havido como o pioneiro, como o criador do gênero ensaio, um dos meus preferidos e minha especialidade em literatura, notadamente do tipo que consiste em reflexões e opiniões pessoais sobre a vida e sobre comportamento que, até então, os escritores não ousavam expressar publicamente e alguns, nem mesmo reservadamente e que, quando o faziam, registravam em secretíssimos diários.

Muitos queimavam esses registros “secretos” quando pressentiam a proximidade da morte, para que suas confidências e observações não caíssem, digamos, em “mãos profanas”. Não se davam conta, todavia, de que essas reflexões, por serem íntimas, viscerais e sinceras, eram as que, de fato, mais interessavam os leitores. É como William Shakespeare um dia constatou: “nada interessa mais o homem do que o próprio homem”.

A propósito da incoerência, Montaigne escreveu, no referido ensaio: “Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar, sob uma mesma luz, todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo”.

Somos, todos, alguns mais e outros menos, contraditórios. Eu, obviamente, sou e já confessei, publicamente, em mais de um texto, essa propensão à contradição. É inevitável. É impossível levarmos uma vida rigorosamente planejada, a régua e compasso eu diria, em que tudo funcione conforme o figurino, sem sair nada, nada mesmo, do plano pré-traçado. Dependemos das circunstâncias, que são, via de regra, imprevisíveis e, portanto, aleatórias. Por conseqüência, somos por isso (ou também por isso) constantemente incoerentes.

Somos capazes, em determinadas ocasiões, de atos de extrema grandeza, altruísmo e generosidade e, no momento seguinte, praticamos ações mesquinhas, quando não delituosas, que além de nos surpreenderem, causam pasmo e horror em quem acredite nos conhecer (pois ninguém conhece de fato ninguém), que não julgava que fôssemos capazes de agir dessa forma.

Quantas pessoas públicas, de reputação ilibada, de repente não cometem alguma bobagem dessas chocantes (um assassinato, por exemplo) e ficam na memória pública não como cidadãos exemplares, que foram antes, mas como os delinqüentes que se tornaram?! Não citarei nome algum, pois eles são para lá de conhecidos. É jornalista reputado que mata a namorada. É juiz que se despe da nobreza da toga e da relevância da função para cometer ato de corrupção. É atleta famoso e idolatrado que se envolve no desaparecimento da amante e vai por aí afora.

Montaigne cita, no ensaio de que estou tratando, do seguinte caso, que parece até anedótico por seu conteúdo insólito, mas não é: “Quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, quando lhe apresentaram paras ser assinada, de acordo com a lei, a sentença contra um criminoso, observou: ‘prouvera os deuses que eu não soubesse escrever!’, tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte”.

Aliás, quem lê a biografia desse imperador percebe que, além de atos de loucura em que ressalta o instinto homicida de que era possuído, sua vida é marcada por sucessivas e inúmeras incoerências. Na juventude foi atleta bem-sucedido, dos bons, e obteve consagração nos primitivos jogos olímpicos. Após assumir o trono, contudo, mergulhou de ponta cabeça no escárnio e no vício e praticou atos inconcebíveis, até, para o mais furioso e incontrolável dos loucos.

Claro que não foi só Nero que agiu com tamanha inconstância em sua linha de conduta. Citei-o, apenas, por ter sido mencionado no aludido ensaio de Montaigne. É verdade que, na maioria das vezes, nossas contradições são inofensivas e mais risíveis do que perigosas e condenáveis. Porém, temos que nos policiar, para não ultrapassar o limite do sensato e do razoável, que venha a nos arruinar, não apenas a reputação, mas a própria vida.

A conclusão a que chego, face ao exposto, é a mesma à que chegou o poeta Alfred Tennyson, nestes memoráveis versos do poema “Abismo”:

“Talvez o abismo nos envolva.

Talvez cheguemos à Atlântida.

Talvez não tenhamos mais a força

de mover montanhas.

Mas somos o que somos”.


Boa leitura.


O Editor.


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Um comentário:

  1. O autoconhecimento dói justamente por não querermos ver algumas facetas pessoais que queremos esconder de nós mesmos. E se não temos coragem para colocar em ação certas vontades, precisamos conter ao menos alguns dos nossos macabros pensamentos. O homem é naturalmente mau, até que prove o contrário.

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