sábado, 30 de abril de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Um Midas das letras.

Coluna Direto do Arquivo – Laís de Castro, conto “Passageira da morte”.

Coluna Clássicos – Paul Auster, trecho do romance “No país das últimas coisas”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Outono na Barra do Camacho – quase junho”.

Coluna Porta Aberta – Raul Longo, crônica “O meu amigo Atahualpa”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “A vida e o texto’”. .


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Um Midas das letras

O escritor norte-americano Paul Auster é uma espécie de Rei Midas das letras. E, creiam-me, não há nenhum exagero da minha parte, ao dar-lhe essa designação. Recorde-se que o personagem mitológico que citei, como castigo dos deuses, transformava em ouro tudo o que tocava. Muita gente que conheço consideraria isso uma bênção. Mas não era. Tanto que Midas transformou, sem que o quisesse evidentemente, a filha que tanto amava numa estátua de ouro.
Sempre que se quer usar metáfora para caracterizar alguém que anda de mãos dadas com o sucesso, se recorre a esse personagem da mitologia grega, embora eu considere a comparação inadequada. Afinal, como citei, para Midas o fato de transformar tudo em ouro se tornou terrível castigo. Mas... deixa pra lá! A expressão, no entanto, de tão usada, já se transformou em clichê. Diz-se, nesses casos, que “fulano tem o toque de Midas”.
Mas, voltando a Paul Auster e abstraindo o aspecto negativo da metáfora, pode-se dizer que tudo o que o escritor norte-americano “toca”, vira ouro. Basta lançar um novo livro para que não tarde em se tornar best-seller. Na vida pessoal, fora da literatura, esse sujeito deve ser um figuraço! Afinal, além de escritor (o que já não é pouco), ele é, também, argumentista, tradutor, realizador, marinheiro e até inventor de um curioso jogo de cartas, entre outras coisas.
É o que costumamos de rotular de “homem dos sete instrumentos”, que é como caracterizamos os que têm múltiplas habilidades. A nós interessa, claro, seu talento de escritor. Informações sobre o que faz e como vive, porém, são sempre úteis para formar uma idéia mais clara sobre como é determinada pessoa, não importa sua ocupação.
Se não me engano (e não é nada difícil me enganar neste caso), Paul Auster já publicou 23 livros, dos quais quatro de não-ficção, inclusive ensaios. Não posso garantir, contudo, que seja “só” isso. Pode ter publicado muito mais.
Porém, Paul Auster, como observei, é também argumentista. E tem em seu currículo pelo menos cinco argumentos que produziu para o cinema. Só não entendo como esse sujeito encontra tempo para tudo isso. Deve ser um “mágico” ou o “the flash”, quem sabe.
Por falar em cinema, é evidente, nos livros de Paul Auster, a influência cinematográfica. A enciclopédia eletrônica Wikipédia, onde colhi mais informações sobre esse escritor, observa, a esse respeito: “As suas histórias desenrolam-se numa sucessão que faz lembrar um ‘thriller’ usando igualmente o método da ‘caixa chinesa’, sucessão de histórias no interior umas das outras”.
É possível que este seja o segredo do seu imenso sucesso. Convenhamos, essa técnica não é das mais usuais e das mais fáceis e, portanto, não é para qualquer um. Quem leu seus livros (ou todos, ou alguns), sabe do que estou falando. Wikipédia lembra, ainda: “Boa parte da sua história é contada por ele como se fosse uma autobiografia”.
E qual é o melhor dos livros de Paul Auster? Não sei! Creio ser impossível fazer esse tipo de avaliação. Da minha parte, gostei de todos os que li. Algumas pessoas, com as quais conversei a respeito, optaram pela “Trilogia de Nova York”, que reúne três contos longos (“Cidade de vidro”, “Fantasmas” e “O quarto fechado à chave”), que parecem independentes, mas que têm um elo comum que os une: a solidão e a perda da identidade numa “megalópole”, uma das maiores e mais cosmopolitas do mundo. Trata-se, sem dúvida, de uma obra genial, quer na concepção, quer na escrita em si. Só não garanto que seja a melhor.
Outros, todavia, apontam “No país das últimas coisas” como a grande obra, a maiúscula e decisiva de Paul Auster. De fato, é um livro intrigante. Destaco este trecho (entre tantos outros que mereceriam destaque) que me chamou, particularmente, a atenção: “Algo desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, nada haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade, afinal. É algo que ocorre a despeito de nós e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam”.
Outros livros de Paul Auster são citados como os melhores que publicou, como “Timbuktu”, “O livro das ilusões”, “A noite do oráculo”, “A música do acaso”, “Dr. Vertigo” e “Palácio da lua”.
O que essa incerteza significa? Para mim, só tem um significado, que é sumamente revelador: que o conjunto da sua obra é uniforme, mantém um elevado padrão de qualidade, sem que nenhum destoe, o que explica e justifica o sucesso de crítica e de vendas, e simultaneamente, o que é uma admirável façanha, sem a menor dúvida.




Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Passageira da morte

* Por Laís de Castro

Diziam que ela tinha se levantado cedo e arrumado um grande baú de roupas e uma pequena caixa esculpida, de palissandra, com pertences valiosos, entre os quais um retrato pintado do velho pai, um terço de pérolas com cruz de madrepérola, bento pelo Papa, acreditava piamente nisso. Um missal negro que herdou da mãe, o camafeu de marfim que tirou da blusa da avó já morta. Era Delena, nome estranho mesmo nos idos de 1875 que marcavam sua passagem pela Terra. Loucura? Pois esta história passou de boca em boca na família durante quase dois séculos e quem quiser acreditar, acredite. Quem não quiser, que conte outra.

Podem dizer o que for desta família em que vim dar com os costados nesse mundo infame: menos que nela exista gente mentirosa. Ah! Não tem. Tem ladrão, vagabundo, alcoólatra, político, prostituta disfarçada de madame, isso tem. Tem grandes senhores, banqueiros até, médicos sérios, gente fina e gente do pior escalão... Se você tem uma família enorme e pessoas que continuam desenhando uma árvore genealógica através dos tempos aparece tudo isso mesmo, como formiga em açucareiro, os nomes vão aumentando, se multiplicando. Assim acontece nesta vetusta família de quatro décadas de cabeludos: tem de tudo, mas não têm mentirosos. Somos gente honesta, que não inventa e nem exagera. Então, se este caso macabro resistiu a 150 anos, deve haver nele um raso de exatidão. Além do mais, não somos nada imaginativos, para inventar histórias e personagens que os autores de folhetins criam há séculos.

Por isso vamos voltar à veneranda fazenda do interior, onde o velho Diogo e a velha Rita viviam, na oitava década do século 19 que agora, com o aporte do século 21 ficou mais distante e longínquo, ainda mais difícil de ser imaginado.

Havia ali tal silêncio que se podia ouvir cada folha seca que caía de uma árvore e pousava suavemente no chão de terra batida. Havia um tal ar puro que respirá-lo mataria imediatamente qualquer vivente dos nossos dias por choque alérgico. Havia o pomar de onde vinham as mangas irresistíveis, laranjas carameladas, ameixas douradas e abacates amanteigados. Havia a horta, de onde vinham as poucas verduras – couve, chuchu, repolho e morangas – que apenas aquelas, por hábito, se comiam. Havia o curral, de onde vinha o leite. E o matadouro, de onde vinha a carne. Das grandes plantações vinham o café e o arroz. Dos campos das culturas temporárias, não há porque esquecer o feijão – preto, fradinho e em favas – o milho e as raízes, mandioca, batata doce, inhame e cará, parte efetiva do cardápio daquele tempo em que vinho português se bebia como água nas casas grandes.

Difícil imaginar um tempo em que o gratin de abóbora era um prato fino, levado à mesa por escravos, muito antes dos cozinheiros franceses aqui aportarem e resolvessem valorizar o maracujá para misturar às nossas carnes e fazer molhos franco-brasileiros. Difícil, mas não impossível, que impossível, dizem também nesta família que me trouxe agnóstico ao mundo, é Deus pecar.

Era nesse cenário paradisíaco, sem luz elétrica rádio ou televisão, sem carros a motor, que Ford inventaria no início do próximo século, que se passaria a história da melancólica Tia Delena, solteirona conformada com sua solidão, ainda mais que tinha criado um sobrinho de nome Luiz que morrera jovem de uma maleita mal curada. Essa falta de sorte legara à mãe adotiva mais duas rugas profundas ao lado dos olhos azuis, dizem que de tanto chorar.

Pois estavam os dois velhos, Rita e Diogo, postos em sossego, quando ouviram o barulho de um tílburi negro com desenhos em rococó vermelho, bancos estofados em bom couro de boi também preto, que se aproximava. A chegada de alguém naqueles confins, que eram confins mas não estavam a mais do que 80 quilômetros do Rio de Janeiro, trazia sempre uma festa, ou uma má notícia. Só por estes dois motivos balançavam e quebravam as costelas pelos gretados caminhos de terra batida os não tão intrépidos personagens antigos.

Delena, irmã de Rita, chegava com a mucama e dois baús. O conteúdo da caixa menor todos já conhecem. No grande, havia uma longa saia de linho branco, simples e alva, uma blusa do mesmo linho enfeitada de rendas francesas nos punhos e gola. As roupas de baixo estavam impecavelmente limpas e engomadas e eram também níveas e puras, como a proprietária.

A irmã demonstrou alegria com aquela chegada inesperada, o cunhado ficou feliz por poder variar o cotidiano. Almoçaram e passearam pelo pomar, de onde tiraram a sobremesa. Sob a sombra das árvores mais frondosas, laranjas fresquíssimas embalaram a caminhada e adocicaram as bocas.

Paz, solidariedade e esperança eram tragados pelo charuto do velho Diogo ao final da tarde daquele dia ameno, enquanto dividia o chá das cinco com a mulher e a cunhada. Lembrava-se dos filhos, na distante Lisboa, um estudando direito em Coimbra, outro, moço fidalgo, a serviço d‘El Rey. Nas baforadas, soltava sua satisfação de ver seus sonhos realizados, embora tivesse também perdido a filha menina, vítima de um sarampo insistente. Rita, que nunca mais tirara o luto, depois de 15 anos da morte infantil, tinha voltado a sorrir levemente. E os vizinhos foram autorizados a retomar os saraus das sextas-feiras no piano de ébano emoldurado por dois enormes castiçais de bronze onde se acendiam, somadas, as 56 velas que iluminavam, para a época, feéricamente o teclado.

Na sala quase vazia, que quase vazias eram as salas de antanho, os sofás eram adamascados, os tapetes bordados em casa e as mesas laterais, ovais ou redondas, repetiam o ébano do piano. Nada mais havia e nada mais precisaria haver, além do tear, que ficava no canto, próximo a um dos janelões, pois os olhos de sinhá exigiam boa luz solar para tecer. Naquele ambiente nobre e simples, os três saboreavam, gole a gole o chá do capim limão, que dez minutos antes balançava ao vento. E os biscoitinhos de nata, sequilhos, derretiam na boca.

Até que Delena avisou estar ali porque viera morrer. Tão quanto drástica fora a frase, tanto quanto natural a reação de incredulidade da irmã. Delena insistiu, advertindo a ambos que o seu filho, ou o sobrinho que havia criado, viria buscá-la naquela noite. Como sabia? Em sonho, ele lhe aparecera comunicando calmamente o fato. Ela não tinha nenhum medo, nenhuma ansiedade, nenhuma sensação de que o sobrenatural mostrava ali seus desígnios. Apenas acatava seu destino, como se fosse comum a morte enviar aviso prévio. Rita insistiu de que aquilo era uma bobagem, ela se pusera louca com a despedida do filho adotivo, andava a trilhar caminhos excêntricos ou a ler romances ingleses em demasia. Nada que uma boa temporada na fazenda, amparada pela irmã e pelo cunhado, não pudesse curar.

Depois da ceia, servida por volta das sete e meia da noite o mais tardar, Delena, contrita, se recolheu. Ia seguir solitária seu estranho desígnio como solitária vivera toda a vida. Banhou-se longamente no enorme tacho de cobre que a mucama enchera de água quente. Rezou seu terço de pérolas que “ia com ela”, segundo sua vontade. Recordou as palavras do filho, mas não deitou uma lágrima nos lençóis de linho cru que a irmã lhe oferecia. Escorreu longamente nos cabelos prateados o pente de marfim que trouxera também de sua fazenda, enquanto pensava que, afinal, não tinha sido feliz, nem infeliz. Vestiu as roupas debaixo para a viagem final e deixou as de linho e renda estendidas sobre a outra cama do quarto. Ordenou à mucama que a vestisse logo de manhã, já morta, com aqueles fatos.

Quem encontrou seu corpo inerte foi Rita, como não poderia deixar de ser. Ela considerou o acontecimento normal já que não se entregou jamais ao temor de fantasmas recidivos. O velho Diogo ensimesmou-se e passou uma semana sem dizer uma palavra. Uma só semana foi o tempo também em que se mantiveram suspensos os saraus, já que Delena ordenara que assim deveria ser.

Ela deixou o tílburi e os cavalos como testemunhos silenciosos de sua chegada. Não precisou deles para partir.

Nessa família, não inventamos nem exageramos. Matamos a mentira como erva daninha e cultivamos a verdade como trigo de bom pão.

(Conto do livro “Um velho almirante e outros contos”)

* Jornalista, 36 anos, está há 18 no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.






No país das últimas coisas

* Por Paul Auster

Algo desaparece e, se você passar muito tempo sem pensar nele, nada haverá de trazê-lo de volta. Recordar não é um ato de vontade, afinal. É algo que ocorre a despeito de nós, e, quando há muita coisa mudando ao mesmo tempo, o cérebro vacila e os objetos lhe escapam. Às vezes, quando me vejo tateando em busca de um pensamento que fugiu, começo a evocar os velhos tempos, a me lembrar de quando eu era menina e toda família viajava de trem para o norte, nas férias de verão.

William, meu irmão mais velho, sempre deixava para mim o assento da janela e, a maior parte do tempo, eu não falava com ninguém, viajava com o rosto comprimido na vidraça, contemplando a paisagem, estudando o céu, as árvores e a água, enquanto o trem percorria os campos.

Achava tudo tão bonito, tão mais bonito que as coisas da cidade, e, todos os anos, dizia a mim mesma: "Anna, você nunca viu nada mais lindo. Tente se lembrar disso, tente memorizar as belas coisas que está vendo, para que fiquem para sempre com você, mesmo quando já não as possa ver".

Não creio que tenha olhado para o mundo com mais interesse que naquelas viagens ao norte. Queria que tudo me pertencesse, que tudo se tornasse parte do meu ser, e recordo que tentava guardar aquela beleza na memória, armazená-la para depois, quando me fosse realmente necessária.

O diabo é que não consegui. Tentava tanto, mas, de um modo ou de outro, sempre acabava me esquecendo e, por fim, só conseguia me lembrar do quanto tentara me lembrar. As coisas passavam muito depressa e, mal as via, já se haviam escapado, substituídas por outras que também desapareciam antes mesmo que chegasse a vê-las.

(Paul Auster, No País das Últimas Coisas, pp. 77-78. Tradução de Luiz Araújo.)


• Escritor norte-americano, autor de vários best-sellers, como “Timbuktu”, “O livro das ilusões”, “A noite do oráculo” e “A música do acaso”.






Outono na Barra do Camacho - Quase Junho

* Por Urda Alice Klueger

Hoje, enquanto o meu amor continua lá do outro lado do mundo, no Norte onde agora é Primavera, tomei eu o rumo do Sul, afastei-me fisicamente ainda mais dele, mas diria que a energia que me une àquele Príncipe-passarinho só fez aumentar no decorrer da estrada longa, onde cruzei, tantas vezes, com andorinhas, gaivotas e outras aves que arribam sabendo que estão no limite do seu tempo para atingirem o Tempo da Multiplicação. O meu amor foi para o Norte perseguindo a Primavera; os outros passarinhos também estão indo – vindo ao Sul, persigo eu o Passado.
Em parcas cinco horas de estrada cheguei eu a essa Barra do Camacho, lugar onde a boca da imensa lagoa que parece o mar deságua naquele, entre imensas dunas que parecem de açúcar branco, e que se movimentaram bastante, desde que aqui estive a última vez, pois andaram se enfiando dentro de algumas casas. Saí da pousada de tardinha, como que farejando a História, e entre tantas ruas e tantas casas fica meio complicado viajar no tempo – mas depois que saí para a imensa praia de dunas e caminhei por ela até o anoitecer, era possível deixar a imaginação voar solta.
Assim neste friozinho de Outono, não estão aqui os turistas, sequer os paraguaios, que como que se adonaram destas terras – é tão impressionante, no verão, descobrir que há uma área paraguaia no Estado de Santa Catarina! É também impressionante ver vazias as dunas que no verão estão repletas de gente que fala um espanhol adoçado pela língua Guarani – hoje tais dunas que se perdem nas brumas da imensidão do Sul estão vazias, desertas, e quando, lá muito longe, despontaram duas minúsculas figuras humanas andando na minha direção, eu como que voei para o passado e senti-me na pele de alguém que aqui viveu um dia, há 2, ou há 4, ou há 6 mil anos antes do presente. Como sou filha do século XXI d.C., pensei: “Pôxa, não serão inimigos? Será seguro encontrá-los?” – e então me dei conta que pensara exatamente o que alguém talvez pensara naquele mesmo lugar numa situação igual milhares de anos antes de mim.
Disse que aqui viera perseguindo o passado – e o quanto é forte o passado aqui! São cerca de meia centena os Sambaquis cadastrados neste hoje pequeno município agrícola onde veraneiam os paraguaios, chamado Jaguaruna – quantos haverá que ainda não foram encontrados? Só em um dos Sambaquis, onde deverei passar os próximos dias, aquele que se chama Jabuticabeira II, estima-se que haja para mais de 43.000 pessoas enterradas. Já estive lá outras vezes, e é como viver os meus melhores sonhos de infância. Como não consegui ser arqueóloga, que era o sonho nº 1, acabei me tornando historiadora, conseqüência natural, e já contei em alguma crônica, mais para o passado, como fico, com certeza, incomodando um monte os arqueólogos, pisando onde não devo, imaginando coisas que não devo, quando se trata de uma ciência que prima pela exatidão.
Então, agora à noitinha, temi pelo encontro com pessoas que eu não sabia quem eram, do mesmo jeito que, decerto, pessoas do passado temeram um dia, milhares de anos atrás. Achei melhor, então, caminhar pelas dunas na direção oposta, lá para onde é a goela da Lagoa produtora de abundante alimento ao longo de milênios, e onde tarrafeavam alguns homens do presente. Como se fosse um ser humano do passado, parecia-me mais seguro estar na proximidade de um grupo. Ah! Estas coisas atávicas nas quais nunca pensamos!
É bem sofrido o caminhar na areia refinada e fofa das dunas – pensei que os humanos que aqui viveram no passado eram mais bem treinados que eu, não usavam incômodos tênis e nem roupas incomodativas. Mas então sentiriam frio, pois este clima de hoje é o mesmo “ótimo climático” de 6.000 anos atrás, aqui no Sul deste meu continente. Como os meus irmãos que dormem seu último sono dentro dos Sambaquis se protegiam, então? Ah! Há tanto a saber, tanto a descobrir! A História e a Arqueologia andam apenas tateando no que deve ter acontecido um dia em torno da Lagoa do Camacho, essa lagoa que parece um mar!
Quase escurecia quando vi a garça, tão branca entre a areia branca e a espuma branca do mar! Atentamente, espiava ela a água das ondas que iam e vinham – até que, num átimo de segundo, ela bicou a água e garantiu a sobrevivência! Trêmulo peixe prateado ficou atravessado no seu fino bico, e calmamente ela o devorou totalmente contra a vontade dele! No céu que iria empretecer em seguida, parecia haver todas as tonalidades possíveis do rosa. Ah! Meu amor, é muito lindo o Outono no Sul do mundo, também! Como queria que você tivesse visto o que vi! Escrevi esta crônica tentando passar para os seus olhos que estão às voltas com as flores da Primavera os encantos que o Outono pode ter nas proximidades de uma lagoa que é quase uma testemunha muda das coisas do passado – pois ao redor dela, como que em páginas de um livro, os arqueólogos podem ler camadas e camadas da nossa História tão antiga! Venha um dia ver as dunas brancas da boca da lagoa comigo, meu Passarinho! Quem sabe aquela garça apareça de novo e encha de novo de magia o fim da tarde para você!

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


O meu amigo Atahualpa


* Por Raul Longo

No mesmo dia em que recebo pelo correio eletrônico a imprecisa definição de que “literatura é a arte de escolher palavras”, de alguém se pretendendo crítico literário para tentar convencer que Chico Buarque de Holanda não é escritor; também recebo pelo postal a biografia do meu amigo Atahualpa.
Não sei se o meu amigo tem alguma descendência peruana, pois, conforme sua biógrafa, impossível determinar-lhe procedências dadas às insólitas e precárias condições de seu início de vida. Pelas bem definidas sobrancelhas, o vasto bigode e olhar profundo, sempre me fez lembrar Nietzsche, mas nem por isso o definiria de procedência germânica. Até porque nenhum alemão ou austríaco batizaria um filho como o nome de Atahualpa.
Para quem não sabe, Atahualpa é nome muito comum em todos os países de língua espanhola da América do Sul. Ou seja: menos o Brasil e as Guianas. Nós, colonizados pelos portugueses e as Guianas por ingleses, franceses e holandeses, naquela que hoje é conhecida por Suriname.
Talvez exista mais alguém com o nome de Atahualpa aqui no Brasil, além do meu amigo. Mas não conheço.
Provindo do quéchua, Ataw Wallpa foi o nome do mais importante entre os últimos imperadores Incas. Foi traído e aprisionado pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro que ardilosamente convidou Atahualpa para um jantar amigável na cidade andina de Cajamarca. Em duas horas os cristãos trucidaram mais de 6 mil incas e Atahualpa foi aprisionado no Templo do Sol.
Em troca de sua liberdade Atahualpa entregou ao espanhol uma enorme quantia em ouro. Tanto que preencheu o aposento em que era mantido prisioneiro, e ainda deu o dobro daquela quantia em prata. Mas o cristão não manteve a palavra e submeteu Atahualpa à farsa de um julgamento sob 12 acusações pelas quais foi condenado à fogueira.
No momento da execução Atahualpa aceitou o acordo imposto pelo padre Vicente Valverde e permitiu ser batizado como convertido ao deus e à religião católica, para logo em seguida ser executado por estrangulamento.
Isso foi em 26 de julho de 1533, mas não me consta que, apesar do pedido de desculpas aos judeus, algum papa tenha reconhecido os crimes da Igreja contra Incas, Astecas, Tupis, Guaranis ou tantos dos povos dizimados pelo cristianismo.
No entanto, tenho a impressão de que meu amigo Atahualpa está pouco se lixando para os papas. Mais que isso, creio mesmo que apesar da aparência física com o Nietzsche, superou o sábio alemão nesse sentido. Nietzsche costumava declarar que Deus está morto, Atahualpa certamente nunca acreditou na existência desse personagem e tão pouco faz questão de conferir a própria imagem e semelhança a qualquer divindade. Daí me parecer que mesmo que porventura admire a Nietzsche, não procura imitá-lo nem realçar a casual parecença.
Mas voltando ao herói e mártir Atahualpa, tornou-se um arquétipo da resistência sul americana ao colonialismo imposto ao continente ao longo dos últimos 500 anos, justificando os tantos Atahualpas da Patagônia ao Golfo de Urabá, ao norte da Colômbia, onde fazemos divisa com a América Central.
Héctor Roberto Chavero, por exemplo, nascido na província de Buenos Aires em 1908 e falecido em Paris em 1992, adotou como pseudônimo nome e sobrenome de Atahualpa que foi neto de Tupac Yupanqui. Como Atahualpa Yupanqui, Héctor Chavero se fez compositor, cantor, violinista e escritor argentino de renome internacional tal qual o Chico Buarque de Holanda, para desespero do crítico que inadvertidamente me enviaram pela internet.
A mãe de Atahualpa, Tocto Pala, não era inca. Mas por ter sido uma princesa equatoriana, natural de Quito, o nome do herói muito se propagou por aquele país, conforme nos conta o brasileiro Paulo de Carvalho Neto no excelente romance “Meu Tio Atahualpa”, onde reporta com muito humor a sabedoria da cultura popular equatoriana, assimilada quando ali representou o Brasil como diplomata.
Quanto ao Chico Buarque, ouvi dizer que sequer conheceu Budapeste embora um húngaro tenha me garantido que conseguiu reproduzir com muita fidelidade o clima humano da cidade. De fato, pelo menos para quem não conhece aquele trecho do Danúbio nem do lado Buda nem do lado Peste, ou quaisquer das outras margens do famoso rio, descreveu a capital da cultura dos magiares de forma muito convincente.
Mas o crítico não gostou e nem considera literatura. Tudo porque resolveu que Chico escolheu mal as palavras ao afirmar que o personagem do romance tenha assistido “por alto” a um noticiário de TV em idioma desconhecido, conforme explica a história de um fictício escritor que ali aportou por um imprevisto ocorrido durante uma viagem aérea.
Nem mesmo aos nossos noticiários consigo dar atenção, mas o crítico encasquetou que todos têm de levar tão a sério quanto ele as enormes bobagens da TV. Outros, como José Saramago, José Miguel Wisnik, Urariano Mota, Caetano Veloso e Luís Fernando Veríssimo; gostaram muito do Budapeste do Chico. Por certo também não dão muita atenção a TV ou não acreditam que produzir literatura seja apenas escolher palavras.
Seja lá o que for eu é que não seria besta de me pressupor capaz de criar definições para uma arte milenar que compreende tantos gêneros e expressões, inclusive sem palavra alguma como em histórias contadas por gestos, imagens e até por sombras, com conteúdo evidentemente literário.
Por outro lado, muito me orgulho em poder estrear este blog escrevendo sobre a biografia do meu amigo que acaba de ser lançada. Aliás, convém lembrar que Atahualpa também é um grande contador de histórias e a ele não fazem falta as palavras. Na última vez que esteve em minha casa, contou uma história tão intensa e emotiva à minha cachorra Canela que a fez correr pela casa pulando de sofá em sofá, como se estivesse conquistando uma selva.
Duvido que o crítico do Chico produza o mesmo efeito! E a julgar pelos caninos da Canela, seu poder de crítica é bem mais inócuo do que os de minha cachorra.
Mas é preciso falar do livro com capa ilustrada por um expressivo close fotográfico do biografado imitando Einstein ao mostrar a língua. Na verdade, ainda não li a obra, mas assim mesmo posso recomendá-la com total segurança e não apenas pela intrigante personalidade do personagem meu amigo como, sobretudo, pela certeza de que a autora não é apenas uma mera escolhedora de palavras, como quem cata arroz carunchado. Nas livrarias ou no portal da Livrarias Curitiba na internet (http://www.livrariascuritiba.com.br/) consultem sobre o último lançamento de Urda Alice Klueger pela Editora Hemisfério Sul.
Em sua vaidade, Atahualpa não se deixaria contar por ninguém menos e isso também provocou o ciúme de Sandra Tolfo, que confessa: “Eu poderia escrever muita coisa sobre o Atahualpa. Poderia contar de nossas brincadeiras, de quando o ensinei a falar, das poses para as fotos, dos meus lanches divididos com ele, mas... essas memórias tomariam muito espaço”.
É certo que, igualmente, se denota aqui uma ponta de inveja, mas muito compreensível pela intimidade e o carinho da cientista social pelo Atahualpa. Aceitável, pois não se evidencia nenhum despeito, nenhuma dor de cotovelo.
Mas o que dizer do ridículo catador de palavras? Só mesmo escolhendo as do velho lugar comum, pois, enquanto os cães ladram, Atahualpa e Chico Buarque passam.

• Jornalista e escritor



A vida e o texto

* Por Luiz Carlos Monteiro

Moacyr Scliar antecipou-se a seus possíveis antologistas, críticos e biógrafos com a escrita de um novo livro de título O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória Literária. De descendência judaica, mas nascido em Porto Alegre, passou boa parte de sua vida no bairro do Bom Fim, ele é, sem dúvida, um dos escritores de maior relevância do Brasil de agora. Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na circunvizinhança dos 70. Assim, torna-se bastante difícil contextualizar um autor que guarda uma produção literária dessa dimensão, que se inicia com o malogro de Histórias de um Médico em Formação (1962), manifestação literária imatura das histórias e experiências de um estudante de medicina, até acertar em 1968, no próximo livro, que ele considera deveras sua primeira obra, com os contos de O Carnaval dos Animais. Bem recebido pela crítica, pois trabalhado nos moldes do realismo fantástico aliado a um viés ideológico típico da década de 60, revela o escritor em pleno processo de amadurecimento. Mais à frente, nas próximas décadas, aparecem romances como A Guerra no Bom Fim (1972), sobre a repercussão da Segunda Guerra Mundial no bairro em que o autor foi criado e O Centauro no Jardim (1980), que tem como protagonista um menino metade homem metade cavalo, a mostrar o filho do imigrante judeu repartido culturalmente entre a influência do convívio familiar e a vida externa que, de algum modo, entra em choque com a cultura originária do seu povo.

Em A Majestade do Xingu (1997), Scliar traça o roteiro biográfico do médico e indianista Noel Nutels (1913-1973), que fez seu curso no Recife e depois foi para o Rio de Janeiro. Convocado para fazer parte de uma expedição ao Xingu, Nutels passou a dar assistência médica aos indígenas. Nos seus primeiros contatos, uma prova de fogo se faz urgente, que é curar uma indiazinha que agonizava, ação que tem desfecho surpreendente: “Noel termina de preparar a solução. Num rápido movimento, aplica a injeção no braço da indiazinha. A picada da agulha arranca-a ao torpor: com inesperada fúria, agarra a mão do médico – e a morde com vontade. Os índios riem. Não lhes desagrada ver um branco assustado, mas não é só isso, estão aliviados, felizes. (...) Quando, ao raiar do dia, vê que ela começa a melhorar, sente-se invadido por uma onda de júbilo e alívio. Sai da oca, espreguiça-se, olha ao redor a magnífica paisagem, a floresta, o majestoso Xingu; já é parte daquela paisagem, ele. Aquele é o seu cenário”.

Para quem escreve de um modo “prolífico” feito Scliar, que contabiliza ainda no conjunto da obra livros de ensaios e crônicas, e mais de vinte títulos de ficção infanto-juvenil, deve-se admitir e esperar que um ou outro destes volumes possa vir a decair um pouco na questão da qualidade literária. Pois não há como evitar a saturação formal e temática, sendo quase impossível evitar também a repetição de clichês ou lugares-comuns já existentes em trabalhos anteriores. Seja como for, o seu reconhecimento como autor de primeira categoria é assunto fechado. Nos cinco capítulos deste O Texto, Ou: A Vida, Scliar destrincha a sua atividade literária de décadas em paralelo com a medicina, uma servindo de suporte e influência à outra. Outra vertente de óbvia relevância para a trajetória literária vivida é a sua condição judaica e, em conseqüência, a sua ligação com a Bíblia e muito de suas histórias, parábolas e temas. Em vários textos ensaísticos ou ficcionais, ele aborda a medicina pública brasileira e a imigração judaica com a chegada, a acomodação e a sobrevivência dos judeus no Brasil. Trabalhos a que pouca gente tem acesso são trazidos a lume, inclusive um texto longo como Os Contistas, que retrata, com humor desabrido e ferino, a imensa e exótica fauna de contistas a quem o autor imprime vida e movimento, reunidos num lançamento de livro. Texto que poderia ser aplicado também, guardadas as diferenças de gênero, à imensa quantidade de pretensos ou, mais raramente, autênticos poetas que vagam por aí, bons e maus artistas do verso, vivendo no campo ou na cidade. Este trecho de Os Contistas reflete bem o clima do texto, de gozação, ironia e sátira explícitas: “O contista Morais parou de escrever para cultivar rosas, o contista Ymai para ser terrorista. O contista Murilo não deixou totalmente a literatura: abriu uma escola de escritores por correspondência. ‘Em um mês você estará escrevendo tão bem quanto Guimarães Rosa’, garante, em prospectos. O contista Feijó tinha seus contos sistematicamente recusados para publicação. Deixou os contos de lado, entrou no ramo de cereais e enriqueceu. Lançou, então, o Prêmio Literário Feijó, cujo regulamento estipulava que o conto vencedor passaria à propriedade do Grupo Feijó. De posse desse conto, Feijó rasgava-o, dizendo: ‘Este contista salvei de uma carreira de sofrimento’”.

Há uma passagem neste O Texto, Ou: A Vida de uma sagacidade e bom-humor implacáveis, que indica como o escritor é visto pelo homem comum, neste caso um vizinho, e vice-versa. “O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: ‘Descansando, senhor escritor?’ Ao que o escritor respondia: ‘Não, amigo, estou trabalhando’. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: ‘Trabalhando?’ ‘Não’, respondia o escritor, ‘descansando’.” E Moacyr arremata: “Uma ocupação que não parece trabalho mobiliza arcaicos sentimentos de culpa; afinal, e ao menos no Ocidente, ainda vivemos sob a influência do bíblico ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’”. Este questionamento já tinha aflorado, sob um ângulo bastante diferenciado, num livro anterior a este, Na Noite do Ventre, o Diamante (2005), a partir de uma conversa entre Spinoza e um discípulo seu, resumida adiante. Na Noite do Ventre, o Diamante foi escrito para a coleção “Cinco Dedos de Prosa”, da editora Objetiva, no qual Scliar construiu sua narrativa a partir de uma história sobre o dedo anular. O livro pode ser resumido dizendo-se que um diamante sai em estado bruto no século 17, época da Inquisição, de um arraial em Minas Gerais, passa pelo Rio e São Paulo, chega a países como a Holanda, Alemanha e Rússia, para voltar lapidado ao Brasil num anel da judia Esther Nussembaum. O diamante, ao mesmo tempo em que é valioso e mágico, leva os que o portam a caírem em desgraça. É o caso do menino Gregório, filho de Esther, forçado a engolir o diamante, ainda na Rússia, e que sofre, durante muito tempo, as conseqüências de tê-lo em seu ventre. Quando finalmente o operam, Gregório acorda e sonha com “anulares brotando do chão (...); um bando de anulares, uma coorte de anulares, um exército de anulares, uma multidão de anulares. Todos vindo em sua direção, todos convergindo para ele, todos ansiosos por mergulhar em suas vísceras, todos ansiosos pelo diamante que a noite do ventre – soma de todas as noites – engolira”. O livro exibe situações de aventura e mistério, além de personagens inesquecíveis como o padre Antonio Vieira, o filósofo Spinoza e o revolucionário Leon Trotsky. Num diálogo atribuído a Spinoza e seu discípulo Rafael Fonseca (que lapidou o famoso diamante, depois roubado por Diogo Moreino, um também discípulo de Spinoza), emerge, com muita lucidez, a separação entre o ato de escrever e uma atividade de sobrevivência. Rafael questiona o mestre acerca de sua necessidade de polir lentes e estudar óptica. Ao que Spinoza responde: “Em primeiro lugar, polir lentes é meu ganha-pão – filosofia, como já deves ter percebido, não dá sustento a ninguém. Depois, porque é trabalho manual. É importante usar as mãos, Rafael. Sobretudo no caso de pensadores, como nós. Usamos demais a cabeça, e isto acaba nos atrapalhando, nos distancia da realidade que afinal é uma coisa concreta, visível, audível, palpável, sobretudo palpável.” Aqui, percebe-se claramente como o escritor ou o pensador pode ter a necessidade de usar as mãos em atividades que não as que exigiriam apenas manusear a caneta, a máquina de datilografia (para muita gente, estas duas maneiras já em desuso na escrita de poesia ou prosa) ou o computador.

No último capítulo de O Texto, Ou: A Vida Scliar procura fazer uma retrospectiva do seu trabalho de escritor, desde a infância até os tempos atuais, das possíveis finalidades, objetivos e da própria razão de ser deste livro, de um modo implacavelmente realista: “Sim, a vela que, na infância, arde no bolo de aniversário é a mesma que enfeita o caixão. A vida passa; escrevendo, ou fazendo medicina, ou formando uma família, ou militando politicamente, ou trabalhando, ou bebendo – a vida passa. Chega um momento em que tudo que esperamos das velinhas é que elas iluminem, com sua tênue luz, o nosso passado e nos permitam extrair alguma conclusão de nossas trajetórias”. O começo de O Texto, Ou: A Vida indica que Scliar cresceu ouvindo histórias em casa e na rua, tendo lido também, segundo ele, “histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn (...)”. Estes mesmos personagens vão servir, circularmente, de fechamento ao livro: “Todos olham, em silêncio. Do ombro desse senhor, um pouco calvo, que, dizem, é autor de vários livros, mas que nesse momento é apenas o escritorzinho do bairro do Bom Fim contando sua história com a esperança de que as pessoas a acolham com um pouco de simpatia”. Exercício de modéstia e de reconhecimento das influências, familiares ou não, dos personagens e mitos, dos leitores anônimos ou especializados que o animaram e o fizeram prosseguir e contar aqui, com um bom-humor inteligente e necessário, sua “trajetória literária” percorrida até agora.



(Texto original. Publicado com modificações na revista Continente Multicultural, ano VII, nº 80, ago. 2007).

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com


sexta-feira, 29 de abril de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Romance ou aula de literatura?.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Meninos de rua no Recife”.

Coluna no Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Insatisfação

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, crônica “Tanto glamour que está ficando brega”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, crônica “Fui absolvido”.

Coluna Porta Aberta – Guilherme Scalzili, crônica “Carcarás”..


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Romance ou aula de literatura?

O que é mais importante em uma obra de ficção (não importa se conto, novela, peça teatral, roteiro de cinema ou, e principalmente, romance): o enredo, ou seja, a história em si ou os personagens que a povoam? Não vale dizer que ambos, o que seria uma resposta demasiado simplista e óbvia. Afinal, queiram ou não, uma das duas características prepondera sobre a outra, mesmo que ligeiramente.
Para o escritor argentino Ricardo Piglia, os personagens são mais importantes do que as histórias. São criados com base na experiência de vida do autor, na observação das pessoas que conheceu pessoalmente, ou de quem ouviu falar, ou sobre as quais leu, não importa. São, pois, “retalhos”, com características de diversas delas, condensadas em uma só. A perícia em juntar esses “pedaços”, e com coerência e lógica, é que os torna verossímeis e não grotescos Frankensteins, risco que os imperitos correm a todo momento. Criar, em torno desses personagens, situações e circunstâncias, é o de menos.
Concordo, portanto, plenamente com Piglia. Ademais, quem sou eu para discordar?! O escritor argentino, meu contemporâneo (é de 1941, ou seja, somente dois anos mais velho do que eu), é um dos mais criativos, originais e, sobretudo, polêmicos da atualidade. Seus textos, livros ou simples ensaios esparsos, induzem-me invariavelmente à reflexão. Nem todos os escritores conseguem isso. Óbvio que nem sempre concordo com suas colocações. Mas as discordâncias são escassas e em questões secundárias, marginais, e não no essencial.
Ricardo Emílio Piglia Renzi esteve recentemente no Brasil, mais especificamente, em novembro de 2010, quando compareceu ao Festival Literário Internacional de Pernambuco (Fliporto), onde esbanjou inteligência, com opiniões fortes, corajosas e... polêmicas.
Por exemplo, criticou o atual Prêmio Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa, de quem disse que a última grande obra que produziu foi escrita em 1966. Elogiou o chileno Roberto Bolaño (falecido), afirmando que sua originalidade e genialidade comprovam que a literatura latino-americana não se restringe a Gabriel Garcia Marquez, como muita gente ainda supõe. E não poupou elogios a Jorge Luís Borges (meu guru literário) de quem “herdou” as principais características.
Gosto de Piglia e não li, ainda, nada do que escreveu que me levasse a fazer lhe re3strições. Pelo contrário, aprendo, e muito, em cada livro dele que leio. Um dos que considero singulares (singularmente genial), que me marcou sobremaneira, é o romance “A cidade ausente”. Não que os outros fossem, ou sejam, de qualidade inferior, longe disso. Mas esse livro, posto que de ficção, é, da primeira à última página, magnífica aula de literatura. E garanto-lhes que não estou exagerando. O autor revela opiniões que poucos escritores teriam a coragem de manifestar. Faz de seus personagens metáforas literárias, das mais ousadas e precisas.
Vejam, por exemplo, o que Piglia diz, em determinado trecho, colocado na boca de um tal de Russo: “A obra literária diz a verdade mentindo”. E não é? Os personagens não são frutos da imaginação, que o autor sugere que sejam reais, posto que não sejam, aos quais confere o máximo de verossimilhança? E é pela boca desses seres fictícios que transmite suas idéias e opiniões. Portanto, finge mentir... mas não mente.
Esse mesmo personagem, ou seja, Russo, observa, em outro trecho: “Um relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo, numa escala puramente verbal. Uma réplica da vida, caso a vida fosse feita só de palavras”. Ao término da leitura do romance, ficou-me a sensação não de haver lido uma obra de ficção, mas de ter assistido a uma aula de literatura, em que fica claro o papel do escritor no mundo e fica mais clara ainda a importância da literatura em nossa vida.
Valho-me de uma análise da professora Shirley de Souza Gomes Carreira para dar-lhes idéia mais precisa do enredo de “A cidade ausente”, cuja leitura é de tirar o fôlego. A mestra escreve: “O romance gira em torno de uma máquina, reprodutora de relatos, cujas transmissões foram captadas por Júnior, o protagonista, que trabalha na redação de um jornal. Graças às transmissões, Júnior conseguia publicar as matérias antes que os fatos se produzissem”.
O romance foi estruturado como uma coletânea de contos, não escritos por nenhum personagem e nem pelo autor, mas pela incrível “máquina”, que tinha a faculdade do raciocínio. E esta é, como os personagens (digamos, “humanos”) outra metáfora: a da escrita, do ato criativo do escritor que narra, invariavelmente, o que já foi dito por muitos outros, posto que com outras palavras, não raro até de outro idioma, mas que são, ao fim e ao cabo, meras repetições, disfarçadas de novidade.
E o que vem a ser a tal e milagrosa máquina? Shirley de Souza Gomes Carreira nos revela: “...O encontro da vida com a ficção é insinuado por uma das personagens, Ana, quando esta observa que Elena Obieta adoeceu. ‘Macedônio (Fernandez, personagem onipresente) decidiu que a salvaria’. No romance, a derrota da morte se dá através da construção de uma máquina que tendo armazenado os dados que havia no cérebro de Elena, sua memória e seu conhecimento, passa a gerar relatos virtuais”.
A máquina é testada com um conto (celebérrimo) de Edgar Alan Poe, “William Winston”, que trata da questão do “duplo”, ou seja, de dois sósias absolutamente iguais e inidentificáveis, embora não se tratem de gêmeos ou sequer de irmãos, que são como a imagem de espelho um do outro. A máquina produz uma história com todos os ingredientes da que foi escrita pelo norte-americano, posto que com outras palavras, completamente diferentes das utilizadas por Edgar Alan Poe. E o conto dela recebe título também diferente, para caracterizá-la como original, como outra história e que, portanto, não se trataria de plágio: “Stephen Stevensen”.
A certa altura, Ricardo Piglia põe estas observações na boca de outro dos personagem: “Grandes poetas deixam de sê-lo e se transformam em nada e em vida vêem surgir outros clássicos (que também são esquecidos). Todas as obras-primas duram o que dura a língua em que foram escritas. Só o silêncio persiste, claro como a água, sempre igual a si mesmo”.
Por essas e outras, ficou-me a sensação, ao cabo da leitura de “A cidade ausente”, que não li propriamente um romance, instigante e original, mas que fui brindado, de fato, (reitero) com uma magistral aula de criatividade literária. E será que não fui?!

Boa leitura.

O Editor.




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Meninos de rua no Recife


* Por Urariano Mota

As cidades se revelam mais nuas quando amanhecem. Há seis anos, quando eu caminhava às 6 da manhã pelo centro da cidade, pude notá-los. Os seus corpos enchiam a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoavam-se, como se, enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, estivessem dispostos como cadáveres.

Ninguém precisava chutá-los para ter a certeza de se estavam ou não mortos. Os meninos estavam imóveis, no chão, de bruços, ou com a cara para o sol, de boca aberta. Pareciam com cadáveres porque alguns dormiam sem fechar os olhos: ficavam a olhar vítreo para as marquises dos prédios, ao lado de floristas, íris do olho à meia-lua. Mais lembravam a foto do cadáver de Che Guevara, sem camisa abatido na Bolívia. A diferença é que eram mais novos, e não estavam caídos por causa mais nobre além da urgente necessidade, de comida ou do afeto que o tóxico dá.

As ruas, as avenidas onde jaziam têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes colava na pele, ou melhor, neles se colava uma poesia invisível, até porque ninguém mesmo os via. Eles eram à semelhança de ratos pela madrugada, porque com ratos se confundiam ao sair das cavernas e cloacas da cidade, no escuro da noite. Então eles ficavam todos negros, na pele ou na camuflagem dos animais que corriam pelo asfalto da avenida. Ao amanhecer, jaziam como defuntos, misturados a latas e papéis no chão, acumulados ao longo da noite.

Durante o dia, mais tarde, estariam em grupos na primeira refeição, com o tubo de cola à boca, que aspiravam. Então, mesmo em grupos, aos bandos, ninguém os via, ou melhor, às vezes, sim, quando rondavam como símios as bolsas e os relógios dos adultos. Viam-se sem serem vistos, assim como vemos e evitamos no solo um buraco, um obstáculo, ou grandes montes de merda. As pessoas faziam a volta e tratavam de assuntos mais sérios. Todos estavam já acostumados àqueles figurantes, no cenário. Os meninos eram personagens que nem falavam, porque estavam sempre em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega, plenos do sonho que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios, os que podiam, saltavam para a traseira de um ônibus. Então os meninos se transformavam em morcegos, à beira da morte nos testes que o motorista fazia, ao frear e acelerar e a fazer voltas velozes com os ônibus, para ver se os morcegos se estendiam no chão.

Olhando-os bem, podia-se perceber que despertavam o amor e a compaixão em algumas almas caridosas. Olhando-os às seis da manhã, como quem faz um exame de corpo de delito, podiam-se ver os traços deixados pelo coração da melhor gente cidadã. Os meninos imóveis, a ressonar, tinham roupas de grife, bermudas, camisas com etiquetas. Roupas sujas, cheias de grude, é verdade, mas roupas caras. Ao vê-los assim, no desprezo da cidade, ficávamos a imaginar o impulso que movia o coração da gente que somente lhes queria bem. Ao chamamento de instituições religiosas, “olha o teu irmão”, ao imperativo de que Deus também podia estar naqueles meninos de rua, as boas almas do ramo doavam algo mais chique.

Mas o detalhe que unificava os meninos na tendência da moda era muito estranho. Todos estavam descalços. Todos. Devia haver alguma lei que impedisse os corações caridosos de caírem até os sapatos. Ou será que a gente mais cristã, quando via os meninos, não lhes via os pés? Ou será que achavam, os corações em boa fé, que andar descalço pelas ruas fosse uma festa? Talvez a moral cristã se preocupasse com a nudez das coxas até os ombros. Ou talvez, quem sabe, os meninos recebessem tênis e os atirassem às águas do Capibaribe, que por ser um belo rio gosta de andar calçado. Ou talvez os sapatos fossem um bem supérfluo para os pés dos meninos, assim como os bonés, porque neles não se viam bonés, como é costume nos irmãos caridosos de sua mesma idade. Ou talvez, enfim, os sapatos fossem trocados por cola, de sapateiro, como me garantiu um senhor educado, com nojo: “eles vivem de cola”.

A um dos meninos, certa manhã, perguntei a idade. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras, de classe média: “Vai fazer ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que ele não me havia entendido. “Você faz anos em que mês? Quando é o seu aniversário?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:

- Tio, eu não tenho aniversário.

E me deixou mudo, sem mais perguntas.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.






Insatisfação

* Por Rodrigo Ramazzini

Em um salão de beleza, com os pés sob cuidados está a cliente chamada Isabela. Realizando a atividade de embelezamento a manicure Maria. Elas conversam sobre o cotidiano...

- Guria, tu acreditas que o meu carro estragou de novo? Não agüento mais. É a segunda vez em dois meses...
- Isso arruma, dona Isabela! O importante é que a senhora tem carro. E eu? Que tenho que pegar dois “busão” lotado para chegar na minha casa. Imagina? Não é fácil, não!
- Mas esse trânsito cansa a minha beleza, minha filha. Tu que não diriges, por isso não sabe do sofrimento...
- Depois que eu e o meu marido terminarmos de fazer o puxadinho lá de casa, que vai ser o quarto dos meninos e tá ficando bem bonito, nós vamos tentar comprar um carrinho, sabe dona Isabela...
- Nem me fala em obra! Estou saturada de pedreiro... Mandei fazer uma reforma no meu banheiro, para deixar ele mais espaçoso, se não me engano ficou com dois metros de largura por dois de cumprimento... Tu acreditas que eles levaram duas semanas fazendo a tal obra? Era sujeira para todos os lados. Um horror só!
- Pedreiro enrola mesmo, dona Isabela...
- Eu quem diga...
- No meu banheiro, que eu troquei o chuveiro, por um desses que sai um montão de água... As crianças estão adorando... Só tem que cuidar o tempo, se não a conta no final do mês vem lá nas alturas...
- Pois é...
- A senhora conseguiu folga do trabalho hoje, dona Isabela?
- Consegui! Graças a Deus... Não estou agüentando mais o meu chefe, sabe? Ele é daquelas pessoas negativas, que fica fazendo tempestade com um copo de água... Está difícil... Estou até pensando em procurar outro emprego...
- Mas a empresa é grande, né?
- Bastante...
- A senhora é gerente lá, né?
- Isso... Do setor de compras...
- Mas a senhora ganha bem, né?
- Em comparação ao restante do mercado, talvez... Mas, com certeza, ganho menos do que mereço... Me dedico demais e ganho pouco reconhecimento, sabe com é? A minha última promoção mesmo, foi há dois anos... Acreditas?
- A dona Marlene, aqui do salão, nunca me promoveu e um aumento no salário, estou brigando a um tempão... Há! Há! Há!
- Hoje, mesmo! Tenho que ir numa dessa festas chatas, com gente posando de chique e com o ego lá nas alturas... É preciso ter paciência... Aliás, não demora muito aí que eu me lembrei que tenho que passar no shopping e comprar um vestido e uns sapatos...
- Calma, dona Isabela! Estou terminando... Nem me fala em festa... Estou ansiosa para que chegue o próximo domingo. Vai rolar uma roda de samba lá no Bar do Tino, lá na comunidade... Estou louca pra ir!
- Samba? Cruzes! Estou fora...
- A senhora diz isso porque não conhece a roda de samba do Bar do Tino... Coisa mais boa! Sambo e me divirto um monte!
- Me poupa, Maria! Meu celular tocando... O Carlos, meu marido... Alô! Sei... Tá! Pode deixar, Carlos! Eu passo lá! Já disse que passo... Tchau! Tchau!
- Ai! Tem dias que marido é só pra incomodar! Meu Deus!
- Há! Há! Há! O meu nego é que está faceiro, agora. Trocou de emprego, está gostando e ganhando um pouquinho melhor...
- Sorte a sua! O meu só incomoda!
- Há! Há! Há!
- Daqui a pouco são os filhos incomodando, também! Quer ver só? Espera para ver se o celular não vai tocar daqui a pouco de novo...
- Há! Há! Há! Dona Isabela... A senhora é muito engraçada...
- Por quê?
- Desculpa lhe falar, mas a senhora reclama de tudo...
- Falta de dinheiro me deixa estressada, deve ser isso...
- A senhora com falta de dinheiro, dona Isabela? O que sobra pra mim que vivo contando moeda...
- A situação está feia... Terminou as unhas?
- Prontinho, dona Isabela! Terminei... Ficou do jeito que a senhora gosta...
- Que bom! Mulher de unha e cabelo feito vira outra pessoa...
- É verdade!
- Muito obrigado!
- De nada, dona Isabela. Volte sempre!
- Volto sim, minha filha! Salão de beleza é uma terapia...
- É mesmo! Há! Há! Há!
- Pago ali no caixa, com a Cleuza, né?
- Isso! Ali com ela...
- Obrigado, Maria! Tchau!
- Tchau!

No caixa...

- Putz! Só tenho isso na carteira. Trocas uma nota de cem de reais?


• Jornalista






Tanto glamour que está ficando brega

* Por Silvana Alves

Enquanto o mundo volta toda a atenção para o casamento do século, entre o Príncipe e a Plebéia, me deparo com plebéias que sonham um dia se tornar princesa sem muitos holofotes.
O casamento de hoje revela o exagero da realeza britânica. E a falta de assunto da mídia.
O cúmulo da realeza foi o pedido da rainha. A dona da coroa fez um apelo a blogueiros e twitteiros do mundo todo para que “transmitam” o casamento do neto com a plebéia. Um show midiático da geração “casamento hit-tech”.
Enquanto isso, em algum lugar de uma cidadezinha qualquer do mundo, milhares de plebéias sonham um dia subir ao altar, seja com uma festa chiquérrima ou até mesmo numa cerimônia comunitária.
A todo momento a mídia se ocupa com fotos do casal, ainda namorados e noivos, um casal bonito, com muita energia para viver. Mas na minha percepção, sem muita paixão. Ou, a maneira britânica de se apaixonar é fria e distante. As fotos não me convencem. E tudo o que vejo são apenas capas de revistas faturando com as vendas da última fofoca, dos canais noticiosos revelando os sabores dos doces, o enroladinho de salsicha importado que será servido para os convidados, da magreza da noiva, da apostas, dos filmes e etc e etc...
Pode-se dizer que será uma cerimônia do conto de fadas. Daquelas com direito a “foram felizes para sempre” e “the end”.
Só que neste conto de fadas, a realidade permanece. Os sonhos de muitas mulheres de todo o mundo despertarão quando Kate descer da carruagem em direção ao altar. A hora do sim fará com que mulheres de todo o mundo sonhem e voltem a acreditar no conto de fadas da vida real.


* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.









Fui absolvido

* Por Eduardo Oliveira Freire


Um dia, vi um desenho da minha sobrinha Camila; era uma árvore, que ao invés de ter folhas e maçãs, havia uma enorme mão verde. Senti inveja, nunca imaginaria desenhar algo assim.
De repente, escuto alguém dizer:
– Que vergonha, como pode invejar uma criança – era o tronco da árvore, que estava me condenando. A mão verde saiu do papel, trazendo-me para o desenho.
Não sabia o que dizer, estava com medo e com vergonha. Disse:
– É que eu queria criar coisas bonitas e originais. Gostaria de ter a sensibilidade de uma criança.
– Não convenceu. Como castigo, nunca mais terá imaginação.
– Tenha clemência, por favor!
– Então tá, mas terá que passar por num desafio.
– Qual?
– Terá que escrever uma história.
– Não consigo.
– Tente.
– Você vai me dar lápis.
– Não, é só pensar que as palavras irão aparecer.
Não tinha jeito, viajei aos lugares remotos de minha consciência. Queria recordar de algumas histórias que fiz, porém o nada reinava.
Decidi mudar de tática, pensei no agora. Frases soltas, imagens sem sentido e a vontade de fazer uma boa história começaram a se aglomerar, tornando-se num mosaico.


* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando Pós Graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor






Carcarás

* Por Guilherme Scalzili

Como se sabe, a cultura brasileira sobrevive de incentivo fiscal. Com autorização do governo federal, as empresas podem direcionar parte do dinheiro destinado a tributos para os projetos de sua preferência. Todo mundo usa esse instrumento há anos. Todo mundo mesmo: de filmes com atores globais a livros de fotografia, de circos famosos a shows de estrelas sertanejas.
Mas então por que de repente surgiram reclamações contra o projeto de Maria Bethania e Andrucha Waddington?
Primeiro porque boa parte da blogosfera dita “progressista” continua se deixando pautar pela imprensa corporativa. Em vez de questionar certas incongruências do noticiário cultural, tão afeito a lobbies e mistificações, esses comentaristas não apenas engolem suas besteiras mas, pior, ecoam-nas como se tivessem nascido de espírito investigativo desapegado e imparcial.
Em segundo lugar porque existe uma campanha midiática para derrubar a ministra Ana de Hollanda. E não é razoável supor que certa intelectualidade de esquerda, tão sagaz em identificar e denunciar seus inimigos, desconheça os interesses aos quais se alinha nesse tipo chinfrim de polêmica.
Não se trata, portanto, de uma discussão sobre a Lei Rouanet (que, aliás, precisa ser redimensionada urgentemente), mas de uma disputa política do pior tipo: aquele que usa bodes expiatórios para dissimular suas verdadeiras motivações.

*Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

quinta-feira, 28 de abril de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Sentir e pensar.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Caminhos do Tempo”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica,“Roberto Carlos 70”..

Coluna Aventuras em paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, poema “Sorry, i lost”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, microcontos “Idosos”..

Coluna Porta Aberta – Francisco Fernandes de Araújo, artigo “Incentivo à leitura”..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.




Sentir e pensar

O que é mais importante, diria indispensável, para se fazer uma boa obra de arte (entre outras coisas), o sentimento ou o pensamento? Claro que o ideal é o “casamento” indissolúvel e harmonioso de ambos, ou seja, da emoção e do raciocínio. Mas, se o artista tiver que optar por um dos dois (e não raro tem), sua opção mais inteligente e sensata é priorizar o primeiro. Ou seja, deve escolher, sem pestanejar, o sentimento. Fernando Pessoa afirmou a respeito: “Sentir é criar. Sentir é pensar sem idéias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem idéias”. E não tem mesmo.

Em outro trecho de um dos seus tantos textos, o poeta dos heterônimos reforça sua tese e aduz: “Os sentidos são divinos, porque são a nossa relação com o universo, e a nossa relação com o universo Deus”. A natureza torna-se mais compreensível quando, em vez de vê-la, a sentimos. Tentar racionalizá-la, traduzi-la em idéias, pode redundar, até, em belas fantasias, mas é o método mais falho para captarmos a realidade. A criação é fruto de sentimentos muito mais do que da razão.

Fernando Pessoa observa, ainda, que "sentir é compreender. Pensar é errar". Depende, portanto, do que queremos. Se buscamos a compreensão, através somente do raciocínio, acorrentando nossos sentimentos e policiando as emoções, estamos em um caminho equivocado. Aldous Huxley tem uma observação pertinente, que completa esse raciocínio: "A ciência não explicou nada. Quanto mais sabemos, mais fantástico se torna o mundo e mais profunda fica a escuridão ao seu redor".

Três condições espirituais são indispensáveis para a manutenção da nossa saúde psíquica e física: fé, esperança e amor. Sem elas, estaremos perdidos num mar tempestuoso de dúvidas, medos e de ódio, que têm que ser vencidos se pretendermos conservar a sanidade.

Sem uma crença transcendental, nossa vida não terá nenhum sentido. Quem não espera nada, por sua vez, e não acredita que possa alcançar o que deseja, carece de metas e todos os seus esforços se tornam inúteis e vãos. E aquele que não ama, tem a alma repleta de sentimentos negativos que, invariavelmente se refletem no corpo, o fazendo adoecer.

Mas essas três condições espirituais são sentimentos, não pensamentos. Sentimo-las e não pensamos, necessariamente, nelas. O filósofo Will Durant, com base em pesquisas científicas sérias, constatou, em seu livro “Filosofia da Vida”: “A fé, a esperança e o amor parecem expandir-se em cada célula do nosso corpo; a dúvida, o medo e o ódio contraem-nos os tecidos, como se fossem venenos – e, fisicamente, são venenos”. Como são!

Admito que nada no ser humano é mais nobre e maior do que a razão. Nada se compara à sua capacidade de raciocinar, de analisar e entender tudo e todos que o cercam e de criar, com a simples força do pensamento, o abstrato, ou seja, o que não existe. Não fora sua racionalidade, e esse animal, organicamente tão frágil e vulnerável, há muito, e fatalmente, já teria desaparecido da Terra. Aliás, não está a salvo do desaparecimento. Mas sem o sentimento, sem a emoção, sem a ação benéfica dos sentidos, não saberíamos apreciar, adequadamente, a vida e a beleza e muito menos reproduzi-la.

Face a essas constatações, indago: o que devemos preservar? A inteligência, desenvolvida ao longo dos anos mediante o exercício e o estudo? Ou a sensibilidade, com a qual nascemos, e que tínhamos quando crianças, mas que, na idade adulta, não raro abrimos mão? Embora a maioria possa optar pela primeira, manda a prudência que cultivemos com mais afinco a segunda. Ou seja, que sejamos sensíveis, emotivos, apaixonados até em todos os nossos relacionamentos e nossas realizações.

Claro que o ideal seria ter as duas coisas simultaneamente, mas pela vida toda e não somente por determinado período dela, por certo tempo, que varia de pessoa para pessoa. Conservá-las enquanto vivermos, creiam, raia à impossibilidade. O poeta Paulo Mendes Campos adverte: “Inteligência degenera com a idade, sensibilidade não; inteligência é desonesta, sensibilidade não”.


Para Jiddu Krishnamurti, eminente filósofo indiano, falecido em 1986, esta fusão, esta integração, esta simultaneidade entre pensamento e sentimento é não somente possível, como indispensável.


O eminente educador acentuou, em um dos seus tantos (e sábios) textos: “Separamos o intelecto do sentimento, desenvolvemos o intelecto à custa do sentimento. Somos como um tripé com uma perna mais longa do que as outras, não temos equilíbrio. Somos educados para sermos intelectuais; (…) (A Educação e o Significado da Vida, pág. 79)


Em outro trecho, Krishnamurti, considerado pela Sociedade Teosófica como um dos grandes mestres do mundo, afirma: “(…) O que pode produzir a transformação em nós, e por conseguinte na sociedade, é a compreensão do processo integral do pensar, que não é diferente do sentir. Sentir é pensar”. Ou seja, o sábio indiano fez a mesma constatação de Fernando Pessoa, de quem, aliás, nem foi contemporâneo, com que iniciei estas reflexões.

Boa leitura.

O Editor.




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Caminhos do Tempo

* Por Pedro J. Bondaczuk

A visão do tempo precisa ser mudada. Temos que valorizar mais o presente e vivê-lo intensamente, cônscios de que a vida não tem reprises. Nunca devemos adiar para um incerto amanhã o amor, os ideais, os gestos de nobreza e solidariedade e a manifestação das nossas melhores características.
Octávio Paz acentua, em um ensaio publicado há alguns anos pelo “Jornal da Tarde” de São Paulo: "Saber que somos mortais nos leva a indagar: que futuro melhor nos espera? A ameaça de aniquilação do mundo deu novo e redobrado valor à hora presente. A presença é um novo erotismo fundado, não na eternidade, mas no aqui e no agora".
Já passou pela cabeça do leitor que pode nem haver um ano 2009 para a humanidade? Pode não ser oportuna a menção dessa possibilidade, mas que ela existe, é um fato. Mesmo que não seja provável (e ninguém sabe se é ou não), isso está perfeitamente dentro das possibilidades lógicas, admitam ou não. Poderíamos traçar inúmeros cenários possíveis que levariam o mundo à catástrofe e, talvez, à destruição.
Suponhamos que ocorra uma guerra nuclear. Ou que um meteoro atinja a Terra e a destrua. Ou que um outro tsunami, de gigantescas proporções, surpreenda países e cidades. Os perigos a que estamos expostos são infindos e tantas e tantas catástrofes podem acontecer, anunciadas ou não. E raramente nos damos conta (se é que nos damos) desses riscos potenciais.
Comparei, certa feita, nossa vida a um intrincado labirinto, em que caminhamos, por entre o emaranhado de inúmeras passagens, à procura de uma saída. Atrás de nós, segue a morte, nos procurando para nos levar. Viramos para um lado, imbricamos por outro, fazemos zigue-zagues para cá, para lá, até que, em determinado momento, que não temos a mínima condição de saber quando será, cruzamos com nosso implacável carrasco. E então...
Adeus aos sonhos e ilusões! O que foi feito, muito que bem. O que não, jamais será realizado por nós. É preciso ter sempre em mente (e, por mais óbvio que seja, relutamos em admitir) o tempo é o nosso mais precioso capital, que não podemos desperdiçar. Comparei-o, numa outra crônica, a uma esteira rolante diante da qual estamos, num determinado ponto da sua passagem. A parte que já passou por nós de forma alguma vai voltar. O que está à frente, o futuro, a cada piscar de olhos ou bater de asas de um beija-flor se transforma em passado.
E o que passa velozmente diante de nós, com tamanha rapidez que sequer o percebemos, é o presente, fugaz, invisível e volátil. E isto enquanto pudermos permanecer diante da esteira porque, num determinado prazo, que não temos a mínima possibilidade de conhecer qual é, teremos de sair definitivamente dali.
Não há, portanto, momentos inúteis, vazios, ociosos, cuja perda possamos recuperar. Todos, sem exceção, são irrecuperáveis. Nós é que quase nunca sabemos como equacionar o tempo. Preenchemo-lo, via de regra, com banalidades, fatuidades e tolices e depois reclamamos da falta de sorte e de outras tantas coisas, na tentativa de justificar erros e fracassos.
Já Austregésilo de Athayde utilizou-se de outra metáfora, esta bem a caráter para este período de despedidas de 2008 e de recepção de 2009. Escreveu, na crônica “Relembrar, esquecer...” (publicada na extinta revista “O Cruzeiro”, em 22 de janeiro de 1966): “Imagino a passagem de ano como quem vai viajando numa longa estrada. Surgem os campos, as montanhas, os rios, as pequenas e grandes cidades. E a marcha prossegue. Umas imagens deixam as outras esmaecidas, até que desaparecem”.
É assim, também, que encaro a entrada de cada novo ano. É um caminho que se desenha à nossa frente, com inúmeras possibilidades. Pode ser que se trate, por exemplo, de uma estrada, como essas modernas rodovias européias, ou norte-americanas (ou algumas brasileiras), com asfalto perfeito, como um tapete negro sem rugas, totalmente sinalizada, sem nenhum tipo de obstáculo. Mas pode, também, ter muitos buracos em determinados trechos e até terminar em um profundo abismo, que surja, de repente, à nossa frente, sem nenhum aviso prévio, não nos permitindo, sequer, frear nosso carro.
Temos, pois, que estar preparados para todas essas instâncias. Ademais, requer-se a consciência de que passaremos por essa estrada uma só vez. Temos que aproveitar, pois, da melhor maneira possível, essa “viagem”, porquanto, queiramos ou não, estejamos ou não conscientes, os caminhos do tempo nunca têm retorno.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk






Roberto Carlos 70

* Por Marcelo Sguassábia

ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES

Digamos que minha celeste obsessão começou no berçário da maternidade. Entre um arroto e outro da primeira mamada, eis que avisto um par de sapatinhos azuis que uma tia de Lady Laura tinha tricotado para colocar na porta do quarto. Sapatinhos azuis, e não marrons. Azuis como todos os sapatinhos, sapatos, tênis, pantufas de vovó, botas de lavrador, galochas, chuteiras e assemelhados deveriam ser. Ainda empapado de resíduos placentários, olhei para o adorável parzinho de lã, sorri marotamente e dei uma piscada, já ensaiando os flertes que teria mais tarde com as garotas de Cachoeiro. Todas, coincidentemente, de olhos azuis. Melhor dizendo, escolhidamente – ainda que nenhuma das mulheres com quem casei tivesse olhos desta cor. Ninguém é perfeito, nem mesmo as boas esposas. Mas são os desígnios do Senhor, e ao Senhor só rendo e componho louvores.
O resto é história, que vocês já estão cansados de saber. São sete décadas de adoração a essa cor que inspira e eleva. Eleva tudo mesmo, já que aquele comprimidinho milagroso, não por acaso, é azul. Mas não nego que vivi também momentos que preferia esquecer, como as inverdades que a imprensa marrom se esmerou em espalhar. Boatos, intrigas, coisas que nunca disse, casos que não tive, emoções que não vivi. Aliás, imprensa ruim, irresponsável e maledicente tinha mesmo que ter esta cor. E pensar que ao longo de anos e anos tive aqueles cachimbos, todos marrons, grudados à boca o tempo todo. Era uma brasa, eu pensava, mas como estava cego...
De ruim teve também, é claro, o episódio do trem. Se fosse o Trem Azul, do Lô Borges e do Ronaldo Bastos, certamente ele não teria passado por cima da minha perna. Nem eu teria, injustamente, mandado o maquinista para o _______, aquele lugar que não posso dizer o nome e que fica abaixo do paraíso e do purgatório.
É, bicho, mas tirando estes poucos infortúnios eu não posso me queixar da sorte que a cor azul sempre me deu. E essa sorte eu quis dividir com o meu amigo Eduardo Araújo, quando ele fez aquela música chamada “O bom”. Ele mostrou a canção pra mim em primeira mão e perguntou o que eu achava. Disse que era bacana e que tinha tudo pra estourar nas paradas, mas que eu trocaria a parte que fala “Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear” por “Meu carro é azul, não uso espelho pra me pentear”. Ele manteve a letra daquele jeito e a música até que fez sucesso na época, mas também depois... não emplacou mais nenhuma, mora? Não foi por falta de aviso.
O que eu queria mesmo era comemorar silenciosamente estes 70 outonos aqui na minha casa da Urca, sozinho com meus fantasmas e minha imagem de Nossa Senhora, assistindo “Avatar” no home theater. Aquele adorável filme que mostra um maravilhoso mundo de seres azuis. Um manifesto ao extermínio do racismo, já que brancos, negros, vermelhos e amarelos não existem. Só os essenciais azuis, a cor que importa. Roberto Carlos Braga é, na verdade, Roberto Colour Blue. Mesmo aos 70, ainda é tempo de mudar o meu registro no cartório e envelhecer em paz com o azul do céu e dos oceanos. Amém, bicho.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)






Sorry, I lost

* Por Fernando Yanmar Narciso

Naquela estante tem um troféu
Que nunca ganhei
Naquela página tem uma entrevista
que eu nunca dei

Naquela esquina tem uma garota
que nunca fiz gemer
Naquele sinal tem um carro
que não fui eu que bati

Aquele mendigo desmaiado
que a enxurrada arrasta
como um barco pela rua
poderia ser eu

O enterro milionário
que passa pela avenida
com centenas de pessoas chorando
poderia ser o meu

• Designer e colunista do Literário.







Microcontos -idosos

* Por Gustavo do Carmo

Rotina
Convidou o amigo da praça para fazer algo diferente para fugir da rotina. A coisa diferente passou a ser a nova rotina dos dois aposentados.



Amor Proibido
Casal de idosos foi impedido de manter relação amorosa. Fugiram com o pouco dinheiro que tinham. Mas não foram longe. As pernas de ambos incharam. Voltaram pro asilo.


A Rosa
Sonhava ver o seu amor platônico entrar no altar para casar com ele ao som de "A Rosa" de Pixinguinha. Anos depois usou a mesma música na trilha do seu casamento com uma idosa que conheceu no asilo.


Filho ingênuo
Só dava prejuízo para os seus pais com a sua falta de emprego e vida romântica e ingênua. Deu ainda mais prejuízo quando levou uma bala perdida e ficou tetraplégico. Idosos, sem força e solitários, seus pais o mataram.


Nome
O velho impôs ao filho o seu nome feio no neto e o proibiu de deixar o menino chamar-lhe de avô. Quando o rapaz questionou ouviu:
—Quem sustenta você, seu filho e sua namorada sou eu!


Banda
O velho de 85 anos mandou o filho de 50 parar de ver a banda passar e dar um rumo na sua vida. Estava cansado de sustentar o caçula desocupado.


Seguro
Seu Seguro não morreu de velho. Foi atropelado aos 40 anos.


Devagar
Devagar se vai ao longe! Disse o idoso dirigindo o seu Romi-Isetta. Encerrou a volta ao mundo no Rio de Janeiro com o carro que comprou 0 km em 1958.


Cova
Todas as noites via o pai cavando um buraco no quintal da casa. Um dia perguntou o motivo. O ancião disse que estava cavando a própria cova.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores






Incentivo à leitura




* Por Francisco Fernandes de Araújo

Pela lei federal nº 11.899/09 foi instituído o Dia Nacional da Leitura e da Literatura, a ser anualmente celebrado exatamente no Dia da Criança e durante toda a semana que lhe corresponde. O projeto foi do senador Cristovam Buarque e visa valorizar e fomentar a convivência da sociedade brasileira com o hábito da leitura e a produção literária do país.
A importância de se instituir o Dia da Leitura no mesmo Dia da Criança é realçada por Maurício de Sousa, criador da Turma da Mônica, ao dizer que “Um dos momentos inesquecíveis da vida de qualquer criança é quando, pela primeira vez, ela junta uma letrinha, mais outra, e mais várias delas e começa... a ler! É uma conquista tão importante que será usufruída pelo resto da vida e abrirá, a cada dia, uma nova janela para o mundo”.
No mesmo diapasão, assim se manifestou outra reconhecida personalidade do mundo da leitura e dos livros, o bibliófilo e acadêmico José Mindlin, recentemente falecido: “Em minha opinião, todos os dias deveriam ser dedicados à leitura... devemos cultivar, cada vez mais cedo, o hábito de leitura nas crianças, para em um breve futuro, termos muito mais leitores”.
Também eu digo que a leitura é um turismo de beleza sem fronteiras. E não importa a nossa idade nem a hora da cidade. É o melhor investimento, que nos dá conhecimento e o direito de sonhar. É pelo caminho da leitura que se alcançam muitos sucessos e benefícios na vida, daí a necessidade de se irradiar esse salutar hábito entre as pessoas de nossa convivência diária.
A este propósito, muito se tem falado sobre o fim do livro impresso, que, segundo algumas vozes, em pouco tempo perderá mercado para o livro eletrônico. Todavia, mesmo não se desconhecendo a força da novidade, penso que a tradição do livro impresso ainda perdurará por muito tempo, destacadamente por causa do custo adicional dos instrumentos necessários ao novo modelo de leitura.
De fato, o livro eletrônico (e-Book), embora possa ser mais barato, exige aquisição de algum tipo de ferramenta (e-Reader) para viabilizar a sua leitura, com um custo adicional considerável, equipamento esse nem sempre capaz de captar diretamente da internet todos os conteúdos do livro digital, exigindo, então, também o repasse por meio de um computador para o e-Reader, o que sempre significa despesa incompatível com a disponibilidade econômico-financeira dos leitores mais carentes, segmento que constitui, sem dúvida, grande contingente que necessita de uma maior e melhor atenção das autoridades educacionais.
Em outras palavras, o livro digital é uma novidade que facilita a leitura, mas apenas para os mais afortunados. De qualquer forma é previsível a convivência dos sistemas, pois a TV jamais “matou” o rádio, tampouco a Internet “matou” a TV...
Seja como for, embora a nova legislação seja bem-vinda, devemos insistir que não bastam leis para disseminar o gosto pela leitura. Tampouco datas comemorativas. É preciso criar mecanismos viáveis e economicamente compatíveis com as classes menos favorecidas, promovendo mudanças radicais no hábito das pessoas, tanto no lar quanto na escola e na sociedade em geral, para que haja um progresso palpável na formação cultural de todos, sem discriminações de qualquer natureza.
Só assim poderemos comemorar com justificada alegria todo o progresso advindo dessas providências concretas, para fazermos deste País continental também uma grande Nação. Portanto, o incentivo à leitura é uma tocha que a todos cabe acender. Mãos à obra!

• Francisco Fernandes de Araújo é escritor