sexta-feira, 25 de março de 2011




Miss Pernambuco e o tempo

* Por Urariano Mota


Vera Lúcia Torres Bezerra é senhora de uma idade que a educação e a gentileza não devem perguntar Em uma discreta graça, que a maldade chamaria coquete, de passagem ela conta que foi Miss quando possuía apenas 16 anos. Pela implacável aritmética, 2011-1963 = 48. Quarenta e oito mais dezesseis, sessenta e quatro. Mas isso é segredo, ela com maior graça pede, porque mocinhas menores de idade não poderiam participar do concurso. Então, pelas normas legais, se ela foi Miss aos dezoito, atravessa hoje os sessenta e seis anos. Mas a Lei e a cruel Aritmética de nada sabem. Entendam, não é bem que as pessoas, as mulheres em particular, e Vera Lúcia em especial, não sintam nem sofram quarenta e oito mais dezesseis anos. Sentem, percebem, sofrem, se desesperam ou se acomodam a esse inexorável. Não quero ser, nem poderia em razão de natural deficiência, um Catão, um copiador de procedimentos de Plutarco, a invocar ética dura e pesada moral. Mas pessoas como Vera Lúcia penetram em nossa consciência como uma antecipação do que seremos. O que nos salva ou nos salvará, quando tudo for perdido?

Ela me fala com o rosto oculto em óculos escuros, embora seja noite no Recife. Enquanto fala, enquanto expõe, ela vai desarmando, ela vai desmontando os mais severos e sólidos preconceitos. O primeiro deles é o de que as misses são ignorantes, quando não se resumem na mais simples burrice.

Há um capítulo não escrito, na vida dos entrevistadores, que reza a sua conquista em razão de um comportamento inesperado. Nesse capítulo, em uma das suas divisões, em algum lugar se inscreve que entrevistadores são conquistados por misses que não se casam com grandes empresários. Mesmo que essas misses não mais sejam formosas jovens, mesmo que tenham passado pela curva dos sessenta e mais anos. Ou até mesmo por isso, diria até, com mais razão por se encontrarem nessa idade. Não sei se isso é bem perversão ou uma busca do espírito, só tu, puro espírito. De qualquer forma, uma perversão, que nem precisa dizer que é romântica, porque é do caráter do romântico um semelhante desvio. O fato é que ex-misses como a senhora Vera Lúcia Torres Bezerra possuem um travo, um amargo de ex-combatente, de quem passou pela experiência da guerra. E, no entanto, esse travo é bom. Imagino que isso se dá em razão de ser uma vitória dos valores em que acreditamos, o do valor que é o valor, o da vitória do belo nas condições mais infames. Senhoritas, misses, que em um mundo de corpo-mercadoria, em um açougue de carnes, que reagem e vivem como pessoa e gente. E que se casam ao fim com indivíduos cujo maior patrimônio é a qualidade interior. Isso não é um conto de fadas. Miss Vera Lúcia Torres Bezerra está diante de mim para tentar vender uma carta do poeta Olavo Bilac, que guarda e guardou há muito tempo.

O entrevistador se foi. Derrotado, miro-lhe então os olhos despidos das lentes escuras, e percebo-lhe as rugas, o pescoço, o tecido mole. Mas, coisa estranha, percebo ainda assim que os anos por ela passaram e não alcançaram a sua decadência. Por que esse paradoxo? Talvez porque o espírito, quando sobrevive, suporta melhor o corpo que envelhece. Não importa quantos anos se tenham passado, tenho gana de lhe dizer e me calo. Por isso escrevo agora, porque os escritores somos muito valentes no silêncio e à distância: Vera Lúcia Torres Bezerra, você ainda é a nossa musa. O tempo passou para todos, Miss Pernambuco 1963.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Para os belos, o tempo é um desastre maior do que para os feios,-internamente-, mas há exceções nas quais pessoas velhas mantém um charme específico, e deve ser esse o caso.

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