terça-feira, 18 de janeiro de 2011




Doe para quem a vida dói mais

* Por Fausto Brignol


A escritora, arqueóloga e historiadora Urda Alice Klueger – maior referência literária de Santa Catarina - estava em sua casa em Blumenau quando aconteceu o que ela chamou depois de “Tragédia das Águas”. Viu o mundo desandar à sua volta. Foi em 2008, no mês de novembro, e as enchentes afetaram 60 cidades e mais de 1,5 milhão de pessoas. Oficialmente faleceram 137 pessoas.

Os mais pobres, como sempre, foram os que realmente sofreram. Mas choveram doações do Brasil inteiro. Em dinheiro e em espécie. No entanto, mais de 100 dias depois da tragédia, as pessoas atingidas, não só em Blumenau, como em todo o Vale do Itajaí, continuavam vivendo em barracas e recebendo o mínimo de roupas, de alimentação e de objetos de higiene.

Urda atestou o que viu em Blumenau. Formou-se o MAD (Movimento dos Atingidos Pelo Desastre das Águas em Blumenau). Através desse movimento, as pessoas aprenderam a reivindicar, mesmo em tempos de Lula. Mas, 100 dias depois as pessoas pobres se alimentavam com restos de comida e recebiam roupas estragadas.

Em Santa Catarina, foram estocadas 200 toneladas de donativos. Onde foram parar?

Urda escreveu uma série de artigos a respeito, que foram lidos em todo o mundo, publicados desde sites na Internet a jornais como o Le Monde Diplomatique. O mundo inteiro soube o que aconteceu em Blumenau e em todas as regiões atingidas pelas chuvas, em Santa Catarina. Não só devido às matérias de Urda, mas também à ação de diversos outros escritores e escritoras e ativistas do Brasil inteiro.

Mas as grandes redes de televisão não tocaram no assunto. O povo brasileiro, que vive grudado naqueles canais (des)informativos não ficou sabendo que o flagelado povo catarinense passava sede e fome, apesar das toneladas de doações do Brasil inteiro.

Um trecho de uma das crônicas de Urda:

“E João foi em busca de comida para a sua gente.

"- Amiga – ele me disse – perdi a conta de quantos cadastros tive que fazer aqui e ali para ganhar algo para trazer para as crianças. Se eu conseguisse um quilozinho de arroz que fosse já ficaria feliz – não havia mais nada para as crianças comerem.

"Pois vocês acham que João ganhou um quilozinho de arroz? Ganhou nada! E tinha gente ganhando carros tão cheios de comida que as rodas ficavam meio arriadas de tanto peso! Quem será que levou tanta comida para onde?”

Outro trecho da mesma matéria (EUROPA BRASILEIRA 4 – ASCO):

“Daí fico lembrando de outras histórias ouvidas nestes últimos 105 dias, como o daquele homem que estava num abrigo, e ajudou a descarregar de um caminhão caixas e caixas e mais caixas de sobrecoxa de galinha desossada, pitéu caro e raro, e ficou com água na boca, esperando para comer ao menos umazinha, quando ela fosse servida, só que naquele abrigo nunca se comeu sobrecoxa de galinha desossada. Para onde foram aquelas caixas todas? Para um supermercado, ou talvez para os amplos congeladores de burgueses que fedem?”

E jogaram comida fora. Não quiseram dar para os pobres porque eram pobres, ou porque queriam ganhar dinheiro com a comida doada, e parte da comida perdeu a validade e começou a apodrecer, conforme conta Urda, na mesma matéria:

“E agora estão jogando comida fora, comida cuja validade venceu! Quantas toneladas estão jogando? Não sei, mas desta vez não tenho como passar por mentirosa, pois antes de mim a imprensa radiofônica e televisiva noticiou, com as devidas imagens e tudo – disseram-me também que saiu em jornais de papel, mas eu, pessoalmente, não botei os olhos neles, e então não faço afirmações a respeito. Mas o quilo de arroz que foi negado às crianças de João está lá no lixão da cidade, e tantas outras coisas, tantas outras! Quando a imprensa começou a noticiar, as autoridades disseram que era coisinha de nada, comidas que já tinham chegado vencidas há 105 dias atrás. Uma ova que era! Era a comida que foi negada a tantos Joões e tantas crianças, brancas e pretas, decerto para se ver quem podia levar maior vantagem com o que sobrasse.”

E para “poupar” mais dinheiro, as autoridades públicas resolveram colocar os desabrigados em grandes galpões. Dentro dos galpões, muitas supostas habitações divididas por madeira. Os desabrigados ficaram encaixotados. E quem não tem nada aceita qualquer coisa, até viver em caixotes. É assim que essas “autoridades” raciocinam.

Muito dinheiro, mandado tanto pelo governo federal como por particulares, foi “poupado”. Para quais poupanças foram?

Shirlei Azevedo, assessora em saúde do trabalhador e militante no movimento de mulheres, em 10 de fevereiro de 2009 denunciava:

“Quase 70 dias depois, continuamos repetindo as mesmas perguntas. Onde estão sendo aplicadas as doações? Quando o governo do estado prestará conta? Como será a prestação de contas? Quem está definindo as prioridades? Continuamos sem as respostas.

“Queremos a fiscalização da aplicação dos recursos doados tanto pela sociedade civil brasileira quanto pelo governo federal e com a nossa participação na tomada de decisões.

“Temos que agir rápido antes que a grana suma. Por isso, pedimos mais uma vez a vocês, brasileiros. Juntem-se a nós. Sejam mais uma vez solidários. Agora, para fiscalizar o destino do dinheiro doado às vítimas das enchentes. Ajudem-nos a evitar que escorram pelos "ralos" errados.”

Qual o resultado dessa denúncia? Shirlei dizia que cerca de 32 milhões de reais tinham sido doados somente para os desabrigados de Blumenau, mas não se via o resultado dessas doações.

E as roupas doadas? No seu artigo “EUROPA BRASILEIRA – ABRIGOS -1”, Urda escreveu:

“(...) E as roupas sujas de menstruação que se deram às pessoas do abrigo tal, para que as usassem (nada havia sido salvo das suas casas), enquanto gente do Brasil inteiro mandava roupas novinhas novinhas... Começa a pergunta: quem ficou com tantas coisas? (...)”

E acrescenta, na mesma matéria:

“A lista das humilhações e falta de respeito é tão grande que nem pensaria em tentar coloca-la aqui. Mas taí uma amostra. E mesmo assim, esses trabalhadores da minha cidade terão que deixar o abrigo dia 30.01. Muitos e muitos já acabaram desistindo dos maus tratos e das humilhações e indo para a casa de amigos, ou voltando para as zonas de risco, assinando documentos em que se declaram auto-responsáveis pelo que vier acontecer, caso algo lhes acontecer. Eles têm que se ir, sumir; a vida nos abrigos tem que ser a pior possível, para que os moradores desistam, sumam das estatísticas - é bem diferente construir mil casas do que cinco mil casas - sobra um dinheirão para os bolsos não sei de quem.”

Sobrou um dinheirão para os bolsos de não sei quem. A auto-intitulada grande imprensa ou grande mídia, que mais parece imprensa oficial, aquela das novelas e dos BBBs e do futebol a toda hora, que domina completamente as mentes e as emoções de milhões de brasileiros, falou disso? Escreveu sobre isso?

Vocês sabem que não. Este é um país onde tudo é maquiado, principalmente a miséria e a corrupção. Quando acontecem as cada vez mais freqüentes grandes catástrofes os especialistas em corrupção já começam a urdir seus planos. Sabem que o brasileiro tem a alma boa, o coração mole e que vai doar e preparam-se para abocanhar grande parte dessas doações.

Em Santa Catarina, em 2008, somente o governo do Lula, conforme escreve Urda na sua matéria “colocou 1 BILHÃO e 700 milhões de reais à disposição dos atingidos - é um dinheiro ENORME. Sei que isso abrange, também, construção de pontes, rodovias e correlatos, mas sobra MUITO dinheiro para construir casas para os nossos trabalhadores. Parte será emprestada por meio de financiamentos, mas parte também será repassada a fundo perdido. E nada se faz.”

Ao contrário do que se diz, aqui não é o Haiti. No Brasil temos um Produto Interno Bruto gigantesco, que deveria ir justamente para o Povo Interno Brutalizado, mas não vai. Vai para contas secretas em algum lugar secreto. Ao contrário do Haiti, aqui temos um governo e uma constituição. E a Constituição diz, em seu artigo 3º, inciso IV:

“IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

O Estado tem a obrigação de “promover o bem de todos”. Em caso de catástrofes ambientais ou climáticas também. E talvez principalmente. Quero dizer com isso que cabe ao Estado prever e evitar catástrofes como a de Santa Catarina em 2008 e as das enchentes em São Paulo, Minas Gerais e no Rio de Janeiro, este ano. E tantas outras. Caso não consiga prever e evitar, deve cuidar do bem estar dos cidadãos atingidos. Tanto por inundações como por secas.

É uma obrigação constitucional do Estado promover o bem estar de todos. Significa que os cidadãos brasileiros não precisam fazer doações em caso de catástrofes, mas sim exigir do Estado a sua imediata ação. Mas as doações existem porque nós, brasileiros, sabemos que o Estado não cumpre a sua função constitucional. Ou a cumpre apenas em parte.

Mas, se você se sentir na obrigação moral e ética de fazer uma doação ou trabalho voluntário, em caso de catástrofes como as de agora, escolha os lugares certos.

Em Minas Gerais, cerca de 80 cidades estão sofrendo muito com as enchentes, Em São Paulo, muitas cidades estão quase submersas e milhares de pessoas passam fome, sede e todo tipo de necessidade. No Nordeste a seca sazonal acontece também este ano e já existem 179 municípios em estado de emergência. No Norte, uma estranha grande seca, que teve início em 2010, está matando flora e fauna, além de prejudicar em muito o povo da região. No Sul, 12 cidades já decretaram estado de emergência por causa da seca.

Se você pode e quer ajudar, escolha os mais necessitados, como os nordestinos, por exemplo. Ou os nortistas. Promova ações para realmente ajudar os povos mais pobres a quem o governo trata com descaso quando não é época de eleições.

Nada contra o pessoal da serra do Rio de Janeiro, que está sofrendo muito com as inundações. Mas aquele é o estado mais rico da federação, a menina dos olhos de Dilma Roussef. Acredite que todos os esforços estão sendo feitos para cuidar com muito carinho dos atingidos pelas enchentes nas cidades do Rio. Nada faltará para eles.

Mas se você realmente quer ajudar, olhe para o Brasil como um todo e não somente para os lugares onde domina a classe média alta.

E depois de fazer a sua doação, exerça controle. Exija saber para onde realmente foi o seu dinheiro, de que maneira foram distribuídas as doações, se realmente foram para as pessoas necessitadas ou para desconhecidos lugares.

Não faça doações apenas por desencargo de consciência, porque você tem mais dinheiro que a maioria dos outros brasileiros. Mas, se o fizer, doe para quem a vida dói mais.

Não somente em época de catástrofes – enchentes ou secas ou o que for. Temos milhões de pessoas, no Brasil, passando fome e sede e todo o tipo de necessidades essenciais. E estão assim porque o governo não olha para eles, não cumpre o seu dever constitucional.

Aproveite o momento e procure saber mais do Brasil. Quando pensar em sair de férias, visite o Brasil; vá para lugares que não estão nos mapas turísticos. Descubra a verdade que querem esconder de você.

• Jornalista e escritor

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