quinta-feira, 18 de novembro de 2010




Táxi, táxi

* Por Marcelo Sguassábia


Ilustração: Thiago Cayres


- Pra onde?
- Pro inferno. Vai pro inferno, meu camarada. Toca em frente, infeliz, no caminho a gente resolve.
- Olha, seria bacana o senhor me tratar com um pouco mais de finesse, caso contrário eu deixo vocês aqui mesmo. Quero ver os dois peladões, a polícia chegando e levando o casalzinho meigo pro distrito por atentado ao pudor. Aliás, o que é que vocês estavam fazendo assim, nuzinhos, em plena Consolação chamando táxi?
- Você se lembra se a maçã era fuji, argentina ou gala, amor?
- Se você que pegou a maçã não sabe, eu é que vou saber? Mulher se liga em cada detalhe, que diferença isso faz agora? Vai se queixar pro Ceagesp ou pro Ceasa? Agora é tarde, minha nega. Já estamos expulsos mesmo.
- Mas o que aconteceu, meu Deus do céu?
- Pois foi o Deus do céu, foi esse mesmo, moço. Acabamos de cair fora do paraíso, ordem de despejo.
- Sei, mas foram expulsos do bairro ou da estação do metrô?
- Não, do paraíso mesmo, meu amigo. Imagina só, a única coisa que o Homão barbudo pediu era pra gente ficar longe daquela maldita árvore. Mas sabe como é mulher, né? Podia ter pego uma jaca, um maracujá, uma meia dúzia de limas da pérsia, chafurdado a fuça numa melancia, sei lá, qualquer coisa daquele pomar lindo, menos a maçã. Ela devia ser expulsa sozinha, a culpa foi dela, caramba.
- Tá bom, e a mordida que você deu? Devia ter recusado quando te ofereci. Aquela serpente era uma víbora, enganou a gente direitinho.
- Agora quero ver o que a gente faz da vida. Você, nuazinha e inteiraça desse jeito, não demora e arruma um dinheiro fácil. Mas e eu, que não sou nenhum Adônis? Como é que eu fico?
- Adônis? Quem é Adônis, Adãozinho?
- Olha, em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, e eu sou só um taxista querendo ganhar a vida honestamente, mas pelo jeito vocês são Adão e Eva. Portanto viveram muito antes desse mitológico rapaz grego, um modelão de beleza – se é que ele existiu de verdade. A Dona Eva tá certa, não tem como vocês terem conhecido ele, não. Aliás, ele é descendente de vocês. E eu também, diga-se de passagem. Somos todos filhos de Caim com não sei quem.
- Moço, explica melhor essa história. Agora bagunçou minha cabeça. Caim é o nosso filhinho!
- É o seguinte: segundo a Bíblia, que começa contando a história de vocês, seu filho Caim matou seu outro filho, o Abel. Sujeito cem por cento, maior ficha limpa. E pra humanidade ter continuado o Caim precisava ter tido uma mulher, que até onde eu sei não consta do Livro Sagrado. A menos que vocês dois tivessem aumentado a prole fora do Jardim do Éden, fato que a Escritura também não deixou claro.
- Aumentado a prole? Acho que não vai ter clima...
- Também acho. A base do casamento é a confiança, e você traiu a minha e a do Criador.
- Dá licença aí, desculpa interromper a troca de gentilezas, mas vou aproveitar que o sinal fechou pra deixar vocês por aqui, viu. Pelado não tem bolso, e onde é que tá a grana da corrida? Alguém pode me mostrar? E já vou avisando que não aceito maçã como pagamento. Ainda mais essa maçã amaldiçoada aí que vocês pegaram.
- Mais respeito, seu taxista. Mais respeito. Não se esqueça que eu sou seu avô, avô distante mas sou.
- Mas avô que se preza não sacaneia o neto.
- Ora, vamos. Seja um netinho obediente. Vou começar a espalhar meu currículo, logo consigo uma colocação e pago o que lhe devo.
- Sei, sei. Se você conseguiu ser expulso do paraíso, imagina de uma empresa.
- Mas já falei, a culpa foi da sua avó!
- Pra fora os dois. Já!
- Neto ingrato. Mas deixa estar. Deus é pai. O Homão barbudo há de fazer justiça.
- Essa é boa, Eva e Adão.
- Repete o que você disse! Repete, seu boca suja!!

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

Um comentário:

  1. Adão e Eva de volta ao futuro. O mulher de Caim deve ter sido alguma irmã mesmo, já que não haveria outra alternativa. Além disso, esse tipo de arranjo foi muito comum nas escrituras. Inusitado como todas as suas criações, Marcelo.

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