sábado, 18 de setembro de 2010


Um conto minimalista de Osman Lins

* Por Luiz Carlos Monteiro

Exercício de imaginação é um conto de dimensão minimalista que o escritor pernambucano Osman Lins (1924-1978) deixou inédito em livro. Tematiza preferencialmente a infância, embora essa motivação ficcional lúdica e hedonista que o lastreia aflore-se permeada de um alto teor de sofisticação linguística e de inventividade rítmico-sonora:
"O pássaro, a menina, a bola e o gato. O gato, a bola, a menina e o pássaro. O pássaro a bola o gato a menina. A menila o pasto a bona e o gásaro. A Pastomenila e o Bonagásaro. Encontraram-se um dia, numa encruzilhada, a Pastomenila e o Bonagásaro. A Pastomenila: corpo de penas, asas de palheta, rabo curto de seda e longos dentes de vidro; o Bonagásaro talvez fosse feito de esponja (diminuía de volume, quando o apertavam), falava aos berros através do bico muito comprido e rubro, andava sem que ninguém lhe ouvisse as pisadas e saltava para o alto, com facilidade, acionado por molas, quando contrariado.
A Pastomenila abriu as asas; o Bonagásaro pôs-se a andar em silêncio. Soprou entre eles um vento brando e morno.
– O Verão está quase chegando – berrou o Bonagásaro.
– O Inverno também – disse a Pastomenila, falando devagar, para que as palavras fizessem tilintar os cristais dos lustres de cristal.
– Ontem chegaram os peixes – foi o brado seguinte.
Fazendo ressoarem melodiosamente os incisivos, a Pastomenila informou:
– E amanhã, às 10 horas, no máximo, chegam as aves.
– O Pavão também?
– Não.
O Bonagásaro mastigou a palavra “não”, engoliu-a e começou a saltar extremamente irritado. “Por que o Pavão não vem? Por que não vem o Pavão? O Pavão não vem por quê?” Seu bico vermelho parecia uma espada, enquanto ele explorava as possibilidades sintáticas da frase. Quando silenciou, disse a Pastomenila:
– O Pavão chega hoje com os leões.
O Bonagásaro bradou: – Por quê? Quem deu ordem?
A Pastomenila começou a girar, tilintando a cristalina dentadura. Abriu de súbito as asas de palheta e enlaçou chorando o Bonagásaro, que ficou menor.
Nisto, o vento, antes suave, entrou a soprar forte. Receando ser arrebatados, o Bonagásaro e a Pastomenila uniram-se com desespero.
– Também está chegando o Outono – gritou ainda o pobre Bonagásaro.
– Também a Primavera – tilintou a outra.
Regiraram os dois, ouviu-se em meio àquele torvelinho, com um rumor de taça quebrada contra as pedras, a palavra ARPRIMEVA! Cessado o vento, eram outra vez, na página, o gato, a menina, a bola e o pássaro. Não havia sinal de Pastomenila nem de Bonagásaro. Cerrei os dentes e ergui a cabeça, à espera do Pavão, com sua imponente guarda de leões."
Nada de novo ou surpreendente acontece enquanto não são definidos os dois personagens principais, a Pastomenila e o Bonagásaro. Seus nomes resultam da junção dos elementos humanos e materiais iniciadores da narrativa, tais quais: o pássaro e seu voo azulado; a menina e o seu princípio feminino irrecusável porque prévia e sensivelmente delineado e apresentado; a bola e seu movimento que é similar ao da própria Terra; e o gato feito felino terreno à aparência frio e indiferente a tudo, porém constantemente a saltar muros e a remover-se no mundo subterrâneo noturno de telhados e espaços vazios.

Esses elementos configuram certo mundo lúdico, de personagens e objetos perfeitamente identificáveis, mas que se transmudam, sintaticamente transformados, no sentido mesmo de sua dinâmica e renovação, em novos objetos e seres. A Pastomenila e o Bonagásaro fundem-se insolitamente a partir do seu encontro definidor numa encruzilhada, lugar característico e determinante de opções e escolhas, ou da inexistência delas. E serão, até o desfecho do conto, os novos integrantes da narrativa, sustentados em vocábulos modificados e reagrupados, como a empreender a simbiose ou a desintegração de seus fonemas em movimentos inclusivos e excludentes. E assim, permitindo novas construções vocabulares, abarcando a inversão e a reversão, especialmente no trecho inicial do conto, onde a sintaxe ora se mantém intacta, ora é recriada. O texto passa a evoluir duma maneira que incorpora a mudança situacional desde a ultrapassagem da linearidade espacial e temporal, ao aparecimento de pequenas variações e associações sintáticas e semânticas. A narrativa pode suscitar, assim, voos imaginativos inusitados, que teriam como aliados outros jogos prazerosos e descobertas lúdicas da aventura literária.

A chegada das estações se dá com alarde e estridência. Quando o vento começa a soprar forte, a Pastomenila e o Bonagásaro unem-se com desespero. Efeitos guturais traduzem onomatopéias e cacofonias e sugerem sinestesias. Também possibilidades de intervenção junto a modalidades de prosa visual, na fragmentação do ficcional, em diálogos inusitados, vertentes trocadilhescas, recriações anagramáticas, noções de espaço-tempo subvertidas em ação, intermédio e desfecho.

Mesmo que a clientela infantil desconfie antecipadamente de todo esse engenho de jogos e performances, de significantes sobrepostos a significados, ela não deixa de recriar, em linguagem própria e intransferível do seu próprio mundo, uma dinâmica ritualesca de gestual, sons, mímica e silêncios. Pode-se apenas imaginar o prazer inaudito que à criança é facilitado sentir, ao inventar seus próprios jogos de palavras, silêncios e sons, fazendo a diferenciação do seu mundo do mundo adulto pragmático e racional, através de reinvenções de palavras de um ludismo inesquecível e peculiar. A escrita se desfaz no parágrafo final como um brinquedo depois de certo tempo de uso, ou pela curiosidade de seu dono em desmontá-lo – o gato, a menina, a bola e o pássaro voltam, num abrir e fechar de olhos, a ser o que eram.


* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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