segunda-feira, 27 de setembro de 2010




De miragens e moradas de encantamento

Por Eduardo Murta


Sorrindo, Val imita um campo de girassóis. Exuberância despetalando ao vento que a namora. Saca os gestos em ar quase teatral. Desenhando movimentos. Um homem a observa. Perceberá o dedo delineando o assento dos cabelos ao contorno da orelha, a procura tateada por um objeto qualquer à mesa. Tem algo a lhe dizer. Mas guardará. Por ora, guardará. Nem a menção ao batom à curva do canino fará. Deixa que siga. A conversa com a amiga soa pessoal demais. Os rostos se aproximando. O tom de voz que secreta uma, duas frases.

E, bela em fartura, não lhe daria ouvidos. Riria, talvez, de seu nome. Sizaldino. De suas costeletas densas, das palavras embargadas no abecedário da timidez que odiava como a um inimigo. Melhor esquecer. Não fosse pelo que lhe chega agora. Olhos remando em sua direção. Firmes. Desviou, tornou-se para trás. Não havia mais ninguém. E seguiram ali. Imóveis, lhe mirando. Entremeados com um desmanchar de bocas. Ficou, até que lhe vencesse o horário. Faltava ainda coragem para responder ao que lia como um convite.

Dino assinava na cota dos mortais que se alimentavam mais da miragem que do verbo conjugado. Se permite uma última olhadela. A conferir o jardim de encantamento. O decote discreto, carícia para a fantasia, os seios arredondados, pernas de boneca, sapatos baixos. Lábios esculpidos. Pensa nela lhe escapando entre os canteiros da Praça da Liberdade. Doce fuga. Se entregando, sob a condição de que lhe oferte um poema de Drummond sem tropeçar nas vírgulas, e suspirando quando a entonação exigir. A brasa do cigarro, estrangulado aos dedos, lhe devolve os pés ao chão. Parte sem olhar para os lados.

Do lembrete, colado à geladeira, em casa, não precisa mais: Segunda, às três, ver Val no café. O garçom é quem lhe revelara o essencial. Que chegava sempre com a companheira, da cadeira encostada à parede não se afastava por um só segundo e que amava variações dos chás de maçã. Mais não quis contar. À prancheta, ele arrisca o primeiro traço. A ponta do lápis negro revelando uma face que lembrava pirâmides. O dos fios cruzando o rosto, a cabeleira em bruma, era seu preferido. Semblante felino.

Foi agrupando os papéis cômodos afora. Às namoradas de ocasião, mentia. Era em memória à mãe, que partira cedo em demasia. E, aos lençóis, se calava, com medo de chamar pelo nome da outra. Mantinha as luzes apagadas, para que não lhe escapasse a sensação de que eram ele e Val. Entregues por inteiro. Tardaria, mas não faltaria à promessa de que diria o que era preciso ser dito. Que se curvaria mesmo a exigências de esquecer cigarro, batizar filhos, não deixar contas pagas se avolumando na desordem das gavetas e trocar futebol e bebedeira por passeios de fins de semana.

Ele recorre ao relógio uma vez mais. Pertinho das três. Recolhe, agrupa as folhas, decora as declarações. Irá se apresentar a Val. Sizaldino, não. Dino, apenas. Põe os pés na porta do café. Gira. Dissimula. Caminha agora sem atalhos. A amiga é quem o recebe. As amabilidades lhe surpreendem. Tomará o café ao gosto do bombom derretido que aprendera a apreciar. Fará rodeios, destilará charme, até deixar escapar: não pensava em mais ninguém, em coisa outra que não fosse ela.

E estende a Val os desenhos. Quer que se veja como ele a via. Ela não sabe como responder. Trança os cabelos, braços sobre a nuca, assenta o queixo ao pulso, numa meia-fuga. E entrega as mãos a Dino. Que as conduza. A amiga se cala, reclusa. Ele desliza os dedos de Val pelos papéis, e só então percebe. Olhos de vidro. O tempo inteiro, olhos de vidro. Ela pede que descreva. É o campo de girassóis, exuberante, que lhe visita. Mas não poderá mencioná-lo. Vai desistir. Respira, volta à tona e sugere. Pense numa saudade. Em nada mais.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. Um texto lindo e suave.
    Tão belo quanto os girassóis.
    Abraços

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  2. É uma cantiga de amor para cantar bem baixinho, em ouvidos sensíveis, em lugares quietos, onde a audição prepondera, e onde a ilusão pode dar luz e cor a cegueira. Nossa e da personagem.

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  3. Valeu, gente. Isso me inspira mais e mais.

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