sábado, 19 de junho de 2010




Ravelstein – um livro irônico e inquietante

* Por Luiz Carlos Monteiro

Uma década depois de seu aparecimento, Ravelstein se coloca ainda hoje como livro saudavelmente irônico e inquietante, além de provocante e explosivo. É o último livro de Saul Bellow (1915-2005), judeu americano nascido no Canadá e prêmio Nobel de 1976. Outras obras de Bellow, dentre o seu considerável acervo ficcional de décadas diferentes, como Por um fio, As aventuras de Augie Archer, O planeta do Sr. Sammler e Dezembro fatal despertaram a curiosidade do público americano e europeu pelas verdades do escritor ditas em tom polêmico e desassombrado, sem medo de desagradar a ninguém. Apareciam nas suas páginas referências repetidas das consequências desastrosas da Grande Depressão de 1929 em diante, das duas guerras mundiais e do anti-semitismo massivo e intercontinental, do ceticismo perante a América como a nação mais influente e democrática do planeta em contraponto com a vida miserável da gente esquecida dos guetos, bairros amontoados e similares de favelas tropicais. O mundo da alta cultura e da crítica não poderia desprezá-lo ou ignorá-lo, pois no seu desempenho narrativo encarregava-se de falar em absoluto a seu tempo, sem renegar a sintonia com um passado literário demasiado próximo ou distanciadamente clássico, e sem deixar de projetar e confrontar situações de sua própria época com essa tradição e os dias vindouros.

Judaísmo e guerra, velocidade tecnológica e desmoronamento progressivo do corpo, filosofia grega e gastronomia francesa, música clássica e esportes, compõem um conjunto de assuntos e uma sequência de acontecimentos desenvolvidos em Ravelstein (Rio de Janeiro, Rocco, tradução de Léa Viveiros de Castro). Ravelstein, um conhecido e bem-sucedido professor de filosofia política pede a seu amigo escritor Chick que faça a sua biografia. Ravelstein se encontra à beira da morte, acometido por vários males infecciosos, entre eles AIDS, mas resiste com determinação e coragem enquanto o corpo se decompõe vertiginosamente. O escritor reluta bastante, pois sabe que ao biografar o filósofo estará também retratando a si mesmo, ao considerar que os ligava uma amizade de várias décadas. É aí que reside o viés polêmico do texto: Bellow, identificado como Chick, – e Abe Ravelstein como o filósofo Allan Bloom (1930-1992) – teria cometido exageros no perfil e na visão do amigo. Mesmo que a obra tenha todo um lastro ficcional, a introdução de situações reais e ainda muito recentes da vida de ambos foi contestada, talvez pela maneira extremamente crua, sincera e irônica que Bellow utilizou.

O escritor e o filósofo promovem um duelo intelectual que expõe no limite o que pensam sem escamoteações. São diálogos encetados e construídos com a finalidade de analisar a alma por dentro, o flagrante nem sempre previsível das intrincadas relações humanas, a falta de entusiasmo nas coisas que são feitas como rotina. E também a corrida desabalada das últimas décadas do século 20 em direção a um caos irreversível e às vezes não identificado, ensejando a luta inglória pela sobrevivência entre predadores de todo tipo, o consumismo exacerbado e a indiferença pelo humano e o humanismo, a metafísica cambaleante, cambiante e teimosa por isso viva ainda, a tremenda desesperança dos rostos da maioria desorganizada.

O escritor se manifesta a partir do novelo literário de suas percepções, falhas, defeitos, titubeios, vacilações e acertos. O filósofo a partir do saber acumulado numa inteligência privilegiada volta-se para as causas da loucura do mundo moderno de informatas, burocratas e tecnólogos, estabelecendo a conexão possível entre o mundo antigo e o declinar do século 20. Filósofos gregos são trazidos e retransformados para a atualidade da alta política liberal europeia e norte-americana. Surgem daí reflexões sugestivas e entremeadas sobre Platão, Sócrates, Maquiavel, Rousseau e Keynes. O mundo patriarcal, monoteísta e dominador de Moisés permite que se fale sobre Jerusalém e a longa tradição das Escrituras, sobre a condição dos judeus agora incluídos geopoliticamente em países e continentes, mas ainda com sanções e efeitos restritivos nem sempre explícitos.

Ravelstein, um homem de muitos desafetos intelectuais, era o controlador dos amigos (monitorava os casamentos de Chick), de alunos (incitava-os a afastar-se de suas famílias, a imitá-lo na aparência exterior de ternos, gravatas e sapatos caros) e de quem quer que fizesse parte de suas relações acadêmicas, mundanas ou de amizade. A dependência de Chick relativamente a Ravelstein era apenas aparente e parcial, pois o escritor pensava por si mesmo e uma ou outra vez não desejava contrariar o amigo. Essa suposta humildade de Chick, que defendia a conversa franca entre ambos que nada deveriam esconder um do outro, talvez seja responsável pela extrema acidez e pelo humor constante que destila no perfil traçado, para muitos críticos e colegas do filósofo, incômodo, ao expor pós-morte fatos que não eram de domínio público.

Quando Ravelstein, que sempre gastou mais do que podia, chega a endividar-se sistematicamente, Chick propõe que ele escreva um livro sobre sua experiência acadêmica. A grande semelhança Ravestein-Bloom começa nesse ponto: o filósofo publicou em 1987 O fechamento da mente americana (The closing of the American mind), com prefácio de Bellow, um best-seller contundente, que vendeu milhões de exemplares e o tornou um sujeito rico, podendo transitar sem economizar em lugares luxuosos de Paris, manter um apartamento no mesmo hotel onde estava hospedado Michael Jackson, comprar acessórios pessoais, louça e prataria sem pensar nos seus custos dispendiosos. Os hábitos alimentares de Ravelstein são explicitados numa passagem esclarecedora, num almoço promovido pela esposa do fundador do seu departamento universitário: “Abe Ravelstein, na época um jovem membro do corpo docente, foi convidado para um almoço em homenagem a T. S. Eliot. Marla Glyph disse para Abe Ravelstein quando ele estava indo embora: – Você bebeu do gargalo da sua garrafa de Coca, e T. S. Eliot estava olhando, horrorizado.”

Um tema recorrente nas obras de Bellow, como não poderia deixar de ser, é o papel do nazismo na vida dos judeus, que continua a abrir sequelas quando nele se pensa a fundo. Ravelstein, um ateu liberal e filósofo de algumas ideias próprias, que aprendeu o esotérico em filosofia com seu mestre Leo Strauss (no livro, Davarr) não descarta totalmente o talento de apenas um nome vinculado aos nazistas, o do escritor francês Cèline. Mas a condição judaica de Ravelstein, aliada a uma mente de inteligência poderosa e contestadora, permitiu a exposição de uma visão independente, polêmica e diferenciada que atacava em todos os flancos as feridas recentes das duas guerras, a exclusão judaica de muitas decisões populares e nos altos círculos intelectuais e políticos de países. Essa mesma condição facilitou o envio de torpedos filosóficos e políticos envenenados no rosto sorridente da América do século 20: a falência do sistema educacional norte-americano, a paralisia da juventude entupida de rock’n roll, o engessamento de professores acomodados em sua rotina ideológica de esquerda ou de direita, a defesa intransigente da educação como formação de cabeças e quadros novos para exercer funções importantes nos setores públicos e privados do poder, que contribuíssem efetivamente nas escolhas políticas e econômicas de eventos como negociações envolvendo guerras, conflitos raciais e religiosos, invenções científicas e tecnológicas.

Críticos americanos não conseguiram entender como o filósofo convivia no cotidiano com seu ateísmo militante, seus impulsos conservadores e seu desregramento sexual. No final, ele reconcilia-se com o judaísmo, mas mantém a base pragmática e eclética de sua filosofia e não mais se importa com o risco advindo de parceiros ocasionais de rua. Bloom-Ravelstein afirmava que os seus mentores intelectuais poderiam ser listados rapidamente, mas nada era tão simples assim: Sócrates para o discurso filosófico, Maquiavel para o político, Nietzsche para o niilismo distribuído em modos de concepção diferenciados para americanos, judeus, ingleses, alemães, italianos e franceses, além de Rousseau para instigar o individualismo, a auto-exclusão da maioria como rebanho que não pensa, ou não pensa em termos do bem-pensante filosófico.

Chick adoece ao comer um peixe estragado numa praia caribenha, escapando da morte por pouco. No longo período de convalescença é que decide dar início à escrita de Ravelstein, cumprindo a promessa feita no leito de morte de Abe. Bellow-Chick admirava o raciocínio filosófico radical e a capacidade do amigo em mobilizar grandes plateias na Europa e nos Estados Unidos, para divulgar suas ideias em larga escala, nem sempre aceitas compulsória e compassivamente. Na última frase do livro, “Você não desiste facilmente de uma criatura como Ravelstein em favor da morte”, Bellow reconhece a presença de uma figura excepcional que não se acaba com o corpo. Pensamento e matéria, ideias e necessidades diárias que puderam andar juntas enquanto complementares de um mesmo jogo, se revelam onipresentes na experiência efêmera e dessacralizada da vida em confronto e simbiose com a violência inesperada e pacificadora da morte.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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