quarta-feira, 26 de maio de 2010




Viagem de trem

* Por Mara Narciso

O menino chegou ao trem um mês antes da menina. O percurso dele ia pelo trigésimo dia quando ela embarcou. A viagem deles começou na mesma cidade. Cada um ficou na companhia dos pais e irmãos por grande parte do caminho. Então, aos 15 anos os dois jovens deram de cara no mesmo vagão. Por um ano fizeram o percurso lado a lado, numa poltrona dupla, embora o diretor do pedaço não aprovasse o fato, e o pai dela colocasse vários empecilhos nessa jornada.

A existência e os estudos avançaram dentro do trem. No vagão Colégio fizeram a lição da vida. Não era apenas a habilidade intelectual que ela admirava nele, também o corpo bonito e torneado pelo esporte no vagão Campo de Futebol. Tímida, de longe, e algumas vezes na parte mais alta do trem, ela aproximava-se dele nos treinos futebolísticos pela força da luneta. Amor, paixão e uma dose de voyerismo: ver sem ser vista.

O vagão Cinema não era de fácil acesso, mas quando disponível, permitia, dentro dos rigores morais da época, um leve roçar de lábios em ingênuos beijos. Quando sexo, um imenso tabu, era mencionado, o rapaz contava das suas incursões no vagão Casa de Prostituição, costume então aceito. Curiosa, ela soube que após o gozo, tudo se acabava por um tempo, sem possibilidade de prorrogação imediata. Do lado oposto, no vagão Igreja, iam rezar e se enamorar em paz, alternando a atenção entre olhar o altar e o rosto um do outro, pois, devido às proibições, só era possível vagarem assustados pelos corredores, e sem direito a privacidade.

A vida tinha pressa, o comboio gemia nos trilhos em alta velocidade. A moça e o rapaz precisavam avançar, e para isso seria necessária a separação: passaram o restante da viagem em vagões separados. O fim dessa festa redundou em fim da fé e do diário que ela escrevia. A moça desistiu de escrever, pois sabia que o choro seria farto. Melhor aposentar a caneta. O testemunho da viagem seria apenas memorialista.

Ela ficou no vagão Cidade Natal, e ele seguiu viagem no vagão Capital. Os dois não mais se falaram. Cada um em seu vagão, cada qual cumprindo a sua história, seguindo sua viagem, sina, destino a seu modo: estudos, trabalho, obrigações. Raras ocasiões, um dos dois esteve de passagem pelo vagão do outro.

Uma vez, eles se falaram no meio do vagão Gramado do Clube. Foi logo depois de ambos passarem no vestibular, e os dois elogiaram o feito um do outro. Outra vez, no vagão Automóvel Clube, numa festa, ela teve de vê-lo beijando a namorada muitas vezes. A música mais tocada nesta festa virou o tema da dor de cotovelo. Duas vezes no vagão Capital, ela o viu pelo corredor.

O trem foi levando os sonhos dos dois, no ritmo da vida de cada um, com ocorrência de casamento e filhos. Os embarques e desembarques de pessoas tão importantes e íntimas, e que depois desapareceram no meio do burburinho dos outros passageiros, quebraram a rotina desta movimentada viagem.

Uma vez, se encontraram acidentalmente na internet em listas de amigos comuns, e a mulher enviou ao homem um texto que mencionava o tempo em que descobriram o vício de fumar. A nicotina embalou os sonhos deles já nos estertores do romance juvenil.

E praticamente não mais se viram e nunca mais se falaram. O serviço de som do trem não era bom. A comunicação fora interrompida durante anos. Mas há paradas para baldeação, e num desses momentos em que as vidas se entrecruzam, um pintor admirado por ambos, os reaproximou. Através do endereço eletrônico fornecido por esse amigo comum, o som ambiente do trem voltou a funcionar.

Reataram a comunicação pelas letras por uns dias, e, depois de muitos anos separados pela distância dos vagões, novamente se encontraram e se falaram mais uma vez. O estranhamento causado pelo tempo que estiveram separados foi um misto de querer chegar e afastar. Foi uma surpresa e um prazer, um resgatar cheio de emoções. As lembranças mais importantes de ambos já tinham sido rememoradas. Agora, apenas sorrisos e amabilidades, e dois abraços apertados, um na chegada e outro na saída, após 38 anos.

A mulher tinha se esquecido de como a voz dele era grave, suave e educada. Deve ser da época do namoro que a voz masculina passou a povoar os seus sonhos mais inconfessáveis. Estavam muito diferentes depois de toda essa viagem. Naquela emoção de muito querer ouvir e querer falar, os sorrisos foram a característica desse encontro, e marcaram as conversas e as curiosidades principais.

A sensação do reencontro assustou e emocionou em igual medida. Sentiram que foi bom e foi ruim, que alegrou e entristeceu, que causou segurança e temor. Como teria sido essa viagem, caso os dois tivessem permanecido sentados lado a lado por todo o percurso? A vida seria outra, e o resultado também: os dois personagens maduros não seriam os mesmos que agora são.

A viagem de trem permite embarcar e desembarcar na vida deste ou daquele a qualquer tempo, desde que se permaneça no trem. São tantas malas e bagagens, que nem sempre é possível mudar de vagão. Melhor que a poltrona ao lado estivesse vazia. Não, não está. Então chegou a hora de eles voltarem ao seus vagões de origem, e desejar ao outro uma boa viagem!

* Médica endocrinologista em Montes Claros, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

4 comentários:

  1. Mara,
    Sensacional a analogia do trem e seus vagões com a vida e suas fases, épocas e lugares. Encontros e despedidas, esperas e chegadas. Gostei demais do texto.

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  2. Encontros, desencontros...
    Sofridos por vezes, mas que
    fazem parte da vida.
    Ótimo texto

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  3. Mara, gostei muito do texto, a forma como escreveu, enfim, emocionante! Parabéns!

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  4. Uma das personagens me escreveu assim: " Se pessoas que não conhecem a história acham bonito,
    imagine os protagonistas. Demais!"
    Portanto é história real.
    Marcelo, Núbia e Sayonara, tão gentis e atenciosos, fico agradecida aos três pela atenção e carinho.

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