sábado, 22 de maio de 2010


O entrevero de Lampião com Meia-Noite
ou o limite da tensão na caatinga

* Por Luiz Carlos Monteiro

I

Sem que naquele instante
de tensão atingindo o limite
no bando de cangaceiros

ninguém tivesse a ousadia
de se pronunciar ou mover-se
um passo ínfimo que fosse

e então sorrateiro ou explícito
mas nunca desavisado
pensasse em intervir ou meter-se

em ingresia tão grossa e certeira
ao intentar demonstrar ou fazer
um gesto qualquer de boca

ou ligeiro usar ao acaso
as mãos e os dedos nervosos
de agilidade feroz e treinada

que nem mesmo no lazer ou repouso
prevenidos não se separavam
do gatilho e da lâmina das armas

para se postar de um lado da briga
e firmar posição ostensiva
de lealdade-defesa-amizade.

II

Depois do ataque a Souza
naquele ano de vinte e quatro
Meia-Noite discutiu feio
com dois dos irmãos Ferreira.

Levino e Antônio tramaram
naquele Agosto agourento
uma enviesada partilha
dos restos do roubo e pilhagem.

III

A desavença está feita
e é preciso a interferência
urgente e destemerosa

do chefe dos cangaceiros:
há uma situação radical
de decisão e bravura,

irrepetível e único
eis um momento total
de ferocidade e loucura.

IV

Definidor é agora o confronto
para a liderança de Lampião
desacatado por Meia-Noite.

Naqueles sertões bravios
o negro desaforado
a vivente nenhum respeitava.

E a autoridade legítima
de Virgulino famoso e cruel
não mais reconhecia ou atestava.

Naquela hora incendida de ira
estavam em xeque as vidas
de homens sem medo da sina.

Na caatinga o vento escondia-se,
as nuvens ficaram paradas no ar
e o Sol recoberto de cinzas.

Lampião está calmo e frio
como o seu punhal preferido
sempre sedento por sangue.

Por ora não pensa em fama,
ouro e dinheiro esquece,
quer apenas resolver o conflito

mesmo sem vocação de pacífico,
pois no seu íntimo admira
a valentia do ousado bandido.

V

Meia-Noite desafia o bando
gritando em alto e bom som
que na cabroeira canalha
ninguém ali é tão macho
para diretamente enfrentá-lo
ou apreender suas armas.

Maria Bonita ainda não conta.
Não apitam Jararaca ou Sabino.
Lampião está lúcido e severo,
porém concentrado e em vigília,
relegando até a vingança paterna
a um plano passado e antigo.

Sabe que Meia-Noite é capaz
de impiedosamente matá-lo.
Do mesmo modo que o negro
tem também Lampião seu destino
na palma das mãos ou nos dedos,
nos desfechos de punhal ou de rifle.

Um irmão morto não será importante
no desafio que o instante lhe impõe.
E contra o protesto mudo do bando
libera o homem sem um arranhão.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

2 comentários:

  1. Luiz Carlos, você, além de criterioso e competente crítico literário, é um grande poeta. Sua presença no Literário é um saudabilíssimo sopro de talento e erudição. Gosto de escritores assim: que sabem o que dizem e dizem com convicção. Excelente poeta, caro poeta!

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  2. Pedro, grato pelos elogios (quem não gosta?). Devemos, eu e você, ao camarada Urariano Mota a nossa presença no Literário. Espero continuar colaborando ainda por muito tempo para o Literário - e acessando diariamente -, este, que é, hoje, um dos melhores espaços culturais que conheço. Forte abraço!

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