domingo, 23 de maio de 2010




Naufrágio e chegada a Lilipucia

* Por Jonathan Swift

Parte I
Cap. 1

Tive uma infância feliz, embora minha família não fosse de gente rica e houvesse cinco filhos em casa. Eu era o terceiro. Meu Pai mandou-me estudar para o Colégio Emanuel, em Cambridge, na idade dos catorze anos. Ali fiquei três anos, e fui aluno aplicado. Mas, como o encargo de pagar o Colégio se tornou excessivo para as posses de meu Pai, entrei como aprendiz no consultório do . Dr. James Bates, cirurgião eminente de Londres. Quatro anos ali trabalhei. Depois, resolvido a ser médico de marinha, aprendi a arte da navegação, pois sempre pensei ser esse estudo o mais conveniente para o meu inato desejo de percorrer e conhecer o mundo. Realizei algumas travessias. Ainda voltei a praticar, porém, com o Dr. Bates. Ele morreu. No intervalo, tinha eu casado. Precisava ganhar a vida. Consultei minha mulher e resolvi fazer-me outra vez ao mar, na mesma qualidade de médico. Parti de Brístol em 4 de Maio de 1699, no navio veleiro "Antílope", comandado pelo Capitão Guilherme Richard. A travessia iniciou-se nas melhores condições. Tudo corria bem. Mas em seguida, começou a minha primeira e grande aventura.

Não entrarei em pormenores excessivos para não fatigar o leitor, agora que vou começar a narrativa de extraordinárias e imprevistas aventuras. Basta informá-lo de que, na viagem para as índias Orientais violentíssima tempestade impeliu o navio para noroeste da Terra de Van Diemen. Encontramo-nos então, segundo o que observamos, na latitude de 30 graus e 2minutos. Doze dos nossos tripulantes, por excesso de trabalho e falta de alimento, tinham morrido. O resto ficou em péssimas condições. O barco bateu num rochedo e naufragou, por fim. Metemo-nos seis num bote, e remamos corajosamente umas três léguas, para alcançar terra. Não o conseguimos. O cansaço, a fome, e as ondas encarregaram-se da triste tarefa de levar os meus companheiros. Eu, remando e depois nadando, a tudo escapei, nem sei como. Alcancei com dificuldade imensa uma praia de suave declive. Mergulhado na água até aos joelhos andei então perto de duas léguas e cheguei à terra firme. Não vi ninguém, nem sinal sequer de qualquer habitação. Tudo deserto. Marginando a praia um campo de verde relva, apenas.

Cansadíssimo, extenuado, deitei-me na relva macia e adormeci. A noite vinha descendo e eu não tinha energia para caminhar mais.

Longas horas dormi, sossegadamente. Já o Sol estava alto quando acordei, e a sua claridade intensa quase me ofuscou a vista. Disse de mim para mim: - "Vou-me levantar e procurar de comer, à sombra da primeira árvore que me apareça". Era o melhor que podia fazer ... Simplesmente, ao tentar erguer-me, não o consegui. Estava preso pelos cabelos, que nesse tempo se usavam muito compridos, e o resto do corpo enredado num sem número de cordelinhos delgados, mas fortíssimos, que me tolhiam os movimentos. Pernas e braços, mãos e pés, senti-os fixados ao solo. Retesei os músculos, respirei fundo, quis sacudir aquelas apertadas malhas - e nada! Os cordéis entravam-me na pele e feriam-me. Que aflição! Por não me ser possível fazer outra cousa, voltei a estar quieto. Uma espécie de comichão ou prurido, como que provocado pela marcha de formiga ou de mosca, incomodou-me então. De súbito, surgiu a meus olhos espantados uma criaturinha minúscula, um homenzinho da altura aí duns cinco centímetros - imagine-se! - mas bem proporcionado e todo esperto. 0 uniforme e as armas que ostentava convenceram-me que se tratava de um militar, de um soldado ou, talvez, de um oficial. E mais havia, decerto, à minha volta, pois um ruído confuso, de passos e de exclamações, me chegava aos ouvidos.

Assustei-me, confesso, e gritei involuntariamente. Mas a plena voz. Os sujeitinhos retiravam-se em pânico. E até alguns se feriram, caindo de cima do meu corpo, na precipitação da fuga. Como não me demorei a calar-me, voltaram, porém. Já eu conseguira libertar-me um pouco dos fios que me prendiam cabelos, cabeça, mãos e artelhos. Pude olhar um pouco para o lado. Ao dar por isto, as tais criaturinhas fugiram outra vez, soltando gritinhos de medo.

Fugiram e emudeceram logo em seguida. Um deles exclamou, num brado de comando, "Tolgo fonac!" "Tolgo fonac!" – Que língua estranha, pensei. 0 pior é que mais de cem flechas – flechas que se diriam alfinetes ou agulhas - me pisavam uma das mãos, cujos dedos já se moviam, embora, vagarosa e dificilmente. Experimentei mexer-me mais. Nova descarga de flechas caiu. Algumas feriram-me o rosto. E os homens pequeninos atacavam-me então com agudas lanças. 0 que me valeu foi eu trazer o meu casaco de pele de búfalo, resistente a todos os golpes. Se não fosse essa circunstância, não escaparia às consequências do ataque.

"Quieto! Quieto!" aconselhei-me a mim próprio. E quieto permaneci, esperando a noite. Confiava que, a favor da escuridão, e convencido de que não haveria ali habitantes de maior estatura, conseguiria libertar-me de vez das malhas da espécie de rede que me prendia. Iludia-me! Estava-me reservada outra sorte ... Os meus assaltantes não descansavam. As flechadas acabavam, o ataque cessou. Mas incessantes pancadas de martelinhos de pau - cujo barulho muito bem ouvia - avisavam-me da construção de qualquer cousa do lado do meu ouvido esquerdo.

Assim era. Voltei ligeiramente a cabeça tanto quanto mo permitiam os cordéis que me seguravam os cabelos e a cabeça - e o que vi? Vi – surpreendidíssimo – que estavam a levantar um estrado aí de uns vinte centímetros, até à sua plataforma. Nem mais, nem menos. Queriam conversar comigo!

Quatro dos homenzinhos, de fato, um à frente, os outros como que formando séquito ou escolta, saltou para o meu peito e discursou. Pareceu-me eloquente, e que, nas suas palavras, havia ora ameaça ora bondade e compaixão. Abandonei-me à esperança da bondade possível. E não me arrependi, nem me arrependo ainda hoje.

Respondi em meia dúzia, não de frases (que eles não entenderiam) mas de sinais. E, como a fome apertava, busquei que esses sinais revelassem a minha submissão e a minha urgente necessidade de alimentos.

0 comandante da escolta, o "Hurgo", – que era o nome que lhe davam - compreendeu-me muito bem. Desceu sem demora do frágil estrado e ordenou que trouxessem muitas escadas de mão. Colocaram-nas aos meus lados, contra o meu corpo. Cem criaturinhas diligentes e curiosas caminharam para a minha boca.

Transportavam cestos de carne muito bem preparada de diferentes animais. (Mas que animais? Não adivinhei quais fossem). Eram pernas, e outras partes do corpo desses bichos. Qualquer delas, todavia, não excedia o tamanho de asas de cotovia. De uma só vez, engoli bastantes de tais iguarias, acompanhando-as de seis pães! Os meus ofertantes ficavam maravilhados.

Sentia sede, também, Lá me fiz entender por novos sinais. Abriram alguns tonéis de vinho e despejavam-nos na boca. Cada um não seria maior do que um copinho dos nossos. Bebi avidamente. Pedi mais. À forca de gesticulação vária explicavam-me que não havia. Paciência! Já estava um pouquinho mais reconfortado.

Reconfortava-me também a ideia de que não tinha abordado em terra de selvagens ou de gente má. Enquanto eu comia, esfregavam-me a cara e as mãos com um certo unguento, de cheiro muito agradável e rapidamente curativo das alfinetadas – alfinetadas para mim, para eles terríveis flechadas – que eu recebera. Decerto a minha fisionomia denunciou naquele momento satisfação patente. Os homenzinhos gostaram de me ver assim, e a minha alegria comunicou-se-lhes. Começaram a dançar sobre o meu peito - quase nem me pesavam! . . . - repetindo volta e meia "Hekinah degul", palavras de que mais tarde soube o sentido e que exprimiam, claro está, agrado e contentamento. Indicaram-me então que deitasse fora os dois tonéis despejados. Impeli-os. Rolaram e caíram. Afastados da passagem, - aos gritos de "Borach Mivola" - para não serem feridos, mal os avistaram no chão atiravam ao ar um "hurrah!" de entusiasmo, bradando de modo "Hekinah Degul".

Vi então chegar junto de mim, mais exatamente em cima de mim, uma multidão imensa daqueles pequenos e nojentos seres. Compunha-se de um verdadeiro exército, com seus generais, coronéis e capitães, de membros do clero, da magistratura e da nobreza, de burgueses, de operários, de artífices, e mesmo de camponeses. Distinguia-se cada classe pelos trajos. Se eu quisesse, fácil me seria deitar a mão a um ou mais desses visitantes, que me contemplavam espantadíssimos. Nem o tentei. Sentia-me agradecido pela bondade com que fora tratado e não tinha em consciência o direito de lhes dar a mais leve beliscadura. Antes pelo contrário, se atendesse unicamente ao meu problema alimentar ... 0 que eu sentia, porém, era grandíssima vontade e até necessidade de dormir. Adormeci pesadamente, nem sequer me impedindo de repousar os passinhos miúdos dos estranhos transeuntes que formigavam sobre o meu corpo.

Quando acordei, continuava envolto na rede de cordelinhos em que me tinham, por assim dizer, embrulhado. Ao que mais tarde vim a saber, o Imperador daquele país, que se chamava o país de Lilipucia, fora informado da minha chegada, por um guarda da praia, mal eu a alcançara, e mandara que se construísse um imenso carro para me transportarem, sempre amarrado, até à Capital do seu Império. Lá estava o carro, com efeito. Tinha um metro e oitenta centímetros de comprimento, vinte rodas, e mil e quinhentos cavalos vigorosos, aí do tamanho de ratos grandes, puxavam-no com ímpeto. 0 pior foi içar-me para tal veículo. Só à força de cordas e de roldanas. Um trabalhão! Novecentos homenzinhos, Lilipucianos valentes, gritando várias vezes Hekinah degul, e obedecendo ao Comandante Hurgo, que lhes recomendava "cuidado! cuidado!", na sua linguagem, ergueram-me do solo e atiraram-me para cima do carro. Ali, amarraram-me solidamente, e toca para a cidade que não estava muito longe do que um simples quilômetro. Mas esse quilômetro levou mais de um dia a percorrer. Durante esse tempo, dormi outra vez. Tinham-me dado um soporífero.

De súbito, acordei, espirrando estrondosamente. 0 capitão dos meus guardas lembrou-se de enterrar a espadinha na minha narina esquerda. Foram tais as cócegas que logo despertei. Não adormeci mais.

Este foi o único incidente do caminho. No dia seguinte, de manhã, paramos à distância de cinquenta metros da capital de Lilipucia.

Nesse lugar, existia um templo, que fora profanado em épocas idas, e no qual, portanto, não se praticava o culto. Seria essa a minha moradia. Para os naturais da terra era muito vasta, sem dúvida. Para mim, bastava, em comprimento. Quanto à altura, não ia além da dum vulgar canil! Em frente, erguia-se uma torre da mesma altura, onde se instalaria o Imperador e a sua corte para me contemplarem de perto e sem perigo.

Tiraram-me então do carro, sem me desamarrarem, já se vê, e meteram-me dentro do antigo templo. Vieram depois os serralheiros de Sua Majestade e fixaram à porta oitenta e uma correntes de aço, não mais grossas do que fortes cadeias dos nossos relógios de bolso. Essas cadeias, seguras na porta, foram aferrolhadas à minha perna esquerda com trinta e seis cadeados. Então, depois de verificarem, que me seria impossível quebrar tão sólidas cadeias, os operários cortaram todas as cordinhas que me prendiam ainda.
Pude erguer-me e mover-me melhor. Mas que tristeza, que profunda mágoa! Sentia-me cão no canil, acorrentado, privado de verdadeira liberdade!

Cada vez mais, para me admirar, a multidão engrossava, aumentava despropositadamente. Gulliver transformado em espectáculo, que vexame para mim. E se se lembrassem de me atacar? Mas - não. 0 Imperador proibira, sob pena de morte, que me tocassem, e o povo tinha de contentar-se com contemplar-me. Aborrecido e cansado, deitei-me ao comprido no nicho, e busquei repousar de tanta comoção já sofrida.

Parte II
Cap. 1

Grande temporal. Aportamos a uma terra desconhecida. Vamos procurar água. Os indígenas prendem-me e ali fico.

RECOMEÇADA a minha vida de navegador, sempre no encalço de novas regiões a conhecer, dobramos o Cabo da Boa Esperança e continuamos para o norte. Mas um terrível temporal caiu sobre nós, um pouco ao norte da ilha de Madagáscar, e perdemos o rumo. Onde estaríamos? 0 capitão do navio ignorava-o. Já tínhamos navegado bastantes dias, até que, no dia 7 de Junho de 1703 avistamos novamente terra. A água doce faltava outra vez, calamidade imensa que era necessário remediar. Dirigimo-nos a uma enseada, que não sabíamos se pertencia a ilha ou continente, e ali ancoramos. Doze tripulantes, entre os quais eu próprio, foram mandados numa das chalupas de bordo, para trazer alimentos frescos e, principalmente, uma boa dose de água. Não tardou muito que se nos deparasse um regatinho límpido, e várias pipas foram cheias do precioso líquido.

Enquanto os meus companheiros terminavam essa indispensável tarefa, o meu constante desejo de pesquisar melhor os litorais, e até o interior das terras a que aportávamos, incitou-me a dar um pequeno passeio. Chegado que fui a uma alta falésia, à distância de mais ou menos três ou quatro centenas de metros da foz do ribeirinho, senti-me fatigado. Sentei-me e repousei uns momentos. Qual foi o meu espanto, porém, quando, pondo-me em pé e olhando para o lugar onde tinham ficado os companheiros, os vi já dentro do barco, remando a toda a pressa para se afastar da praia. Indignei-me. Então abandonar-me-iam ali? Que gente sem coração! Mas enganava-me, afinal. Eles não me abandonavam de propósito. Fugiam. Fugiam a toda a pressa. Que perigo os ameaçava? Que monstro os perseguiria? Olhei em volta, muito inquieto já. Indescritível pânico me tomou. 0 "gigante" que eu tinha sido para os Lilipucianos transformara-se, perante o verdadeiro gigante que avançava pelo mar dentro perseguindo a chalupa e querendo deitar-lhe a mão, transformara-se, repito, num pedacinho de gente. E era eu, era eu, desgraçadamente, esse pedacinho de gente, e o gigante era o homem prodigioso que mal molhava os pés na profundidade do oceano.

Tremi de medo. 0 colosso sumira-se entre uns rochedos mais altos. Escondi-me por detrás dum maciço de arvoredo. 0 escaler já escapara, à forca de remos. Só e ignorando onde estava - quem me salvaria de ser agarrado pelo Gigante? E que me sucederia depois? A angústia oprimia-me a alma. Resolvi caminhar pelo atalho que encimava a falésia. Talvez aquele homem de estatura desmedida fosse exemplar único, e o resto da população, se a houvesse, não excedesse o tamanho vulgar. Coragem! Coragem! dizia eu comigo, mas o certo é que não me sentia muito valente.

Andando, fui dar à orla duma floresta ou bosque muito cerrado, de árvores altíssimas. Qual foi o meu espanto reconhecendo que as árvores, ou, antes, o que me parecia arvoredo cerrado - não era senão uma seara de trigo, de espigas já maduras! Meu Deus! Que terra seria aquela em que se criavam trigais que pareciam florestas, e de que tamanho seriam os habitantes em tudo o mais ali? Tal era o meu susto, que as pernas se diriam não suportar já o peso do corpo.

Estava nestes transes aflitivos, quando de súbito ouvi um ruído infernal, semelhante aos apelos roufenhos dum porta-voz. Um homem ainda mais alto de que a torre duma igreja surgiu diante de mim, que fiquei estarrecido e de boca aberta.

O gigantesco personagem trazia na mão direita uma foicinha, seis vezes maiores de que as nossas foices. Os pés dele eram tão largos que uma carruagem com seus cavalos atrelados ficaria à vontade em cima de qualquer deles.

Que perigo, que tremendo perigo ameaçava a minha fraca vida! Ou os pés gigantescos me esmagariam, ou o monstro, ao cortar as espigas, me faria também em dois. Nessa altura - contradições da alma e do pensamento humano! - culpei-me do meu desejo de aventuras. Recordei o carinho da família, o conchego do lar, que estupidamente abandonara, para cair em tão perigosa armadilha do destino. Como eu fora imprudente! Revi e revivi, num relance, a minha existência em Lilipucia, e a surpresa dos seus habitantes, que me tinham considerado um prodígio. E, quase no mesmo momento, tive um tal acesso de pavor, que me pus a soltar gritos inarticulados, e a tremer, a tremer inconscientemente.

Os gritos chegaram aos ouvidos do gigante, ante. Parou, olhou para todos os lados com atenção. Não viu nada, já se sabe. Baixou então os olhos e deu comigo. Naturalmente julgou estar em presença de algum animalzinho – grande formiga ou pulgão – ou, talvez, de bichinho mais perigoso, que, poderia: morder ou arranhar. Com muita cautela, agarrou-me entre o polegar e o indicador pelo cós traseiro dos calções, e observou-me de perto.

Nem movi um dedo. Resignei-me a ficar quieto, embora me sentisse agarrado e apertado cruelmente. Atrevi-me apenas a erguer os olhos, e a juntar as mãos em prece. Disse ainda, com voz humilde e dolente, meia dúzia de palavras suplicantes.

0 homenzarrão pareceu surpreendido ao ouvir-me falar. Não compreendeu o que eu lhe dizia, mas escutou-me com interesse. Pegou numa hastezinha do trigo, – para mim da grossura duma das nossas canas – e, servindo-se dela ergueu uma das abas do meu casaco. Pareceu-me que julgava ser este unia espécie de cobertura ou casca defensiva dada pela natureza. Para me contemplar melhor o rosto, soprou nos meus cabelos. Depois, delicadamente, tornou a colocar-me no chão - mas a quatro patas! Convencera-se, evidentemente, de que eu era um animalzinho.

Que fiz eu, para lhe demonstrar o contrário? Pus-me de pé, andei para trás e para diante muito devagarinho, de modo a provar-lhe que não tentava fugir. Tirei o chapéu, cumprimentei-o com uma respeitosa reverência, e, ajoelhando-me a seus pés, peguei numa bolsa cheia de moedas de ouro, e ofereci-lha humildemente.
Aceitou-a. Observou-a por todos os lados. Molhou o dedo mindinho na língua, e tomou-lhe o gosto, tal como fazem as garotinhas da nossa terra quando enfiam pérolas minúsculas para colares das bonecas.

Compreendi que o monstro de forma humana ignorava o que seria uma moeda de ouro. De fato, tornou, a entregar-me logo a bolsa. E, estendendo sobre a mão esquerda o lenço que tinha no bolso, fez-me sinal para que nele me instalasse. Obedeci logo. Mas, como tinha medo de rebolar até cair no chão, deitei-me e o colosso embrulhou-me no grande pedaço de tela, e levou-me para casa.

Ali chegado, chamou a mulher. Que susto lhe pregou! As mulheres inglesas não gostam nem de sapos, nem de aranhas, e creio que esta me julgou, como elas julgariam, bichinho de espécie mais ou menos idêntica. Só momentos depois compreendeu que eu era criatura pensante e consciente, e passou a gostar de mim. Tratou-me sempre depois, com solícita amizade.

Dera meio-dia, e o jantar estava na mesa. 0 lavrador sentou-se, e a sua família seguiu-lhe o exemplo. Compunha-se, a família, da esposa, de três filhos, e da velha avó. Todos eles não tiravam os olhos de cima de mim. Colocaram-me em cima, da mesa, e eu nunca me aproximei do rebordo, receoso de escorregar e cair. Preocupava-me também o receio do que me iriam dar a comer. Mas a mulher do camponês esfarelou um pouquinho de pão. numa escudela de pau, e pousou-mo à beira. Em seguida, cortou um pedaço de carne em bocadinhos. Tirei do bolso a minha faca e o meu garfo, que me acompanhavam sempre para o que desse e viesse, e ?comecei a comer sossegadamente. Os meus gestos e atitudes foram o gáudio de aqueles bons aldeãos. Divertiram-se de grande.

Uma das crianças, percebendo que eu tinha' sede, encheu um copinho destinado a beber licor, e encheu-o de vinho. Apesar de "copinho", cabiam-lhe dentro uns dez litros dos nossos! Por isso me custou muito a segurá-lo nas mãos. Todavia, consegui erguê-lo e beber à saúde dos meus hospedeiros. 0 que então disse, e nenhum deles entendeu, provocou no entanto tais e tão sonoras gargalhadas, que eu ia ficando surdo.

Um dos filhos do meu amo - pois assim lhe chamei depois, visto que me tomou a seu serviço teve, porém, uma diabólica ideia, desejoso de se divertir à minha custa. Agarrou-me pelas pernas, e tão alto me levantou, que senti vertigens. Tanto gritei e me agitei que o pai viu e arrancou-me de aquelas mãos cruéis. A bofetada que aplicou na bochecha do rapaz, como merecido castigo, foi tão forte que, decerto teria derrubado todo um regimento de cavalaria das nossas terras!

Um episódio, que seria talvez horrível e terrível, se não fosse o meu sangue-frio, deu-se então o gato da minha patroa saltou para cima da mesa e pôs-se a fitar-me de maneira feroz. Tinha três vezes o tamanho dum boi, miava como se rugisse, e mostrava feia catadura. 0 camponês, para me experimentar a coragem, colocou-me mesmo à beira do monstruoso bichano, que parecia disposto já a devorar-me. A minha dona, segundo percebi, quis logo intervir. Antecipei-me, todavia, à sua carinhosa decisão, porque sabia de há muito que o melhor modo de conter em respeito os animais bravios era não demonstrar o menor receio. Portanto, avancei calmamente, e fitei o gato de olhos nos olhos. 0 animal surpreendido pela audácia, recuou. Pareceu-me até, que tinha medo de mim, e não eu dele. Gozei o triunfo com íntima alegria.

Na casa também havia cães. Mas embora cada um tivesse, no mínimo, a estatura de dois elefantes adultos, inspiravam-me mais confiança, e não os temia. Sempre possuem melhores sentimentos.

0 pior perigo que então corri não veio, contudo, dos animais, mas do mais novo dos filhos da casa. Acabada a refeição dos pais, a criada trouxe-o ao colo e entregou-o à mãe. Assim que me viu começou aos berros, atroando os ares e aturdindo-me. Tapei os ouvidos, mas mesmo assim me incomodava e amedrontava. Julgava que eu seria um brinquedo. Pretendia apossar-se de mim. A mãe não resistiu àquele imperioso desejo. Colocou-me na mão do menino gigante. Que fez o sujeitinho? Levou-me logo à boca, e engolir-me-ia, se eu não tivesse desatado logo a bradar por socorro, aflitivamente. Foi o que valeu. Amedrontou-se e deixou-me cair, em risco de me fazer partir a cabeça. Uma circunstância feliz salvou-me desse percalço: a mãe recebeu-me no seu avental, onde me quedei algum tempo meio desmaiado. Mas não ganhara para o susto!

Enfim, vendo-me fatigado e fraco, deixaram-me adormecer. A minha patroa deitou-me na sua própria cama, e cobriu-me com um lenço. Com um lenço dos dela, claro está, e que, apesar de ser o mais fino e pequeno que possuía, era, afinal, maior e mais espesso de que a vela dum dos nossos navios.

Dormi umas duas horas, tranquilamente. Despertei ao sentir que um não sei quê roçava por mim. Abro os olhos, e o que vejo? Dois ratos, cada um de tamanho de bois, que se preparavam a roer-me a carne. Que morte nojenta e horrorosa! disse comigo mesmo. Toca a defender-me! Tirei o sabre da bainha e, com enérgica decisão, furei a barriga dum dos inimigos. 0 outro fugiu logo, felizmente. Ao conhecer e verificar o magnífico triunfo, a minha ama abraçou-me e beijou-me, e os filhos rodearam-me, festejando a valentia de que eu dera tão maravilhosas provas.

* Escritor irlandês )30 de novembro de 1667-19 de outubro de 1745).

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