segunda-feira, 24 de maio de 2010




Madame Margô provou da heresia. E era doce

* Por Eduardo Murta

Contados no dedo, não seriam mais que 711 os moradores do conjunto de casinhas alinhadas ao poeirão daquela Vila do Cachorro Magro. Vivendo, certamente, noutro vórtice do tempo. A começar pelo singelo detalhe de que todos se conheciam – por nome, apelido, sinal de nascença. Eram quase uma família. Quase. Porque dois ou três personagens haviam sido capazes de abalar a geografia das certezas que cultivavam por gerações a fio.

Já era muito para um lugar que de outras localidades só não havia requisitado nome emprestado. O padre – uma missa por quinzena – vinha de Cruz Alta. Lombo de burro, adentrava a pracinha triunfal, como encenasse o Domingo de Ramos, borrifando água benta até nos telhadinhos baixos. O barbeiro, colônias renovadas, num doce de virar estômagos, sempre aos sábados. E o dentista, que aportava mais para arrancar que tratar, ao longo dos janeiros.

Foi Mariana Mocó quem primeiro pôs desconcerto avassalador a toda essa rotina, em que abanar mosquitos era diversão por manhã, tardes e noitinhas, nas frescas da varanda. Começou com as roupas em tons mais fortes. Encomendou música de vitrola para o armazém de Seu Nico. Depois vieram as danças de rosto colado. E um avanço criteriosamente calculado na generosidade do decote. Fez, claro, transbordar o baú de desejos da tropa.

E logo se rebatizou: Madame Margô. Desfilava soberana por lá. Peitos de índia. Bunda africana. Em pouco tempo se tornaria até sonho de viajantes. Desejada, fazia tipo. Teatro de gênero. Porque jamais houvera tragado daquela piteira longa. E a ela não pertencia aquela pinta ao canto superior da boca, à esquerda. Nem eram da velha Paris, como contava, as roupas íntimas com que se exibia.

Mas não esperassem, por conta dessas concessões à fantasia, que fosse remeter tudo a uma deliberada frouxidão. Ao contrário. Impôs foi uma espécie de severo manual de condutas. Beberrões, brigões e maridos de mulheres tristes estavam fora da agenda. Ah, banguelas também. A ela davam asco aqueles beijos lisos, sem tensão felina. Mastigadores de fumo, pela natureza do hálito, se somavam a esse índex.
Comandando, nada mais a surpreendia. Se antecipava. Recebia em tapete vermelho a caravana de circo, fazendo fila à porta do quarto. E reservava olhos de mansidão aos desenganados pela medicina, que queriam se despedir em madrugadas de prazer pagão. Mas aquele desafio entre os meninos do vilarejo, a ver quem seria o premiado para uma aventura com Madame Margô, embaraçou-lhe a alma. Fora-lhe segredado, haviam juntado moeda a moeda, o que equivaleria ao valor de uma só e mísera sessão. Das chinfrins. Marcaram data para a prova, ao anonimato.

Então, às seis da manhã daquele sábado, dezembro, eram os cinco ali na Fazenda do Brejão. Castelo, Limão, Tererê, Juá e Lulu. Todos na travessia dos 11 anos. A chuva varando os corpos, tiraram na sorte quem seria o primeiro a montar o cavalo Tempestade. Chucro. Indócil. E iriam sem sela. Um a um, foram encontrando o chão do curral, nem a tempo do segundo empino. Arrasados.

Já partiam, quando o vulto em vermelho cruzou a luz quase amanhecida do galpão. Se retraíram, temor de que, no tempero do desejo ainda com o sal do pecado, a silhueta do demônio se houvera desenhado por ali. Até se aperceberem do odor tomando os ares. Um movimento mais, e dariam com a imagem. As pernas infantis num tremor hesitante. Os cheiros se avolumando. Estavam agora frente a frente com o que os desafiava. A própria Madame Margô.

Ela fez sinal de silêncio, sugerindo pacto e cumplicidade. E, caminhando a eles, relevou as doses de heresia. Começou se despindo pelo gorro. Depois, o casaco emprestado de Papai Noel. E, profano que fosse, reservaria àqueles meninos um Natal de que recordariam vida afora. Feito um inesperado e provocante presente.

• Jornalista, 43 anos, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado no dia 8 de maio passado, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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