sexta-feira, 21 de maio de 2010


Isso se aprende no colégio?

Caríssimos leitores, boa tarde.
Muito oportuna, pertinente e, sobretudo inteligente a coluna de Urariano Mota (aliás, como tudo o que esse artista do texto escreve) em que aborda um tema original (como sempre), algo que começa a virar moda entre nós, e que tende a trazer desgostos e frustrações futuras aos incautos que venham a cair nesse logro: as tais Escolas de Escritores. Pouca coisa, na verdade nada, tenho a acrescentar a esse texto, que me suscita inúmeras reflexões, algumas das quais peço licença para partilhar com vocês.
Penso, em relação à literatura (e a experiência de anos de janela me comprova que estou certo) o que Noel Rosa, por exemplo, pensava em relação ao samba: “não se aprende no colégio”. O imortal compositor carioca deixou isso expresso com singeleza, mas com clareza, nessa peça marcante e única do cancioneiro popular brasileiro (tão rico e fantástico) que é “Feitio de oração”. Em determinado trecho da letra, ele afirma peremptoriamente: “Batuque é um privilégio/ninguém aprende samba no colégio...”.
Bem, literatura, no que se refere à teoria, à análise crítica, à sua história etc., se aprende, na verdade, nas escolas. Isso é um fato. Mas há quem consiga a “mágica” de tornar alguém, com meia dúzia de aulas (ou até com um milhão delas), um escritor, na lídima expressão do termo? Duvido! A exemplo de samba, isso também não se aprende no colégio. Só tem uma escola que “talvez” (e notem bem, que coloquei essa palavra de propósito entre aspas, por não se tratar de nenhuma certeza) possa funcionar: a da vida.
Nem todo o sujeito que se vale da palavra escrita para expressar idéias, emoções e sentimentos, ou afetos e desafetos, ou desespero e esperança ou etc.etc.etc. é, rigorosamente, escritor. Pode até escrever bons livros, e em profusão, tornar-se, num piscar de olhos, best-seller, e ainda assim não poder ostentar com legitimidade essa condição. Jamais será um Balzac, um Baudelaire, um Hugo, um Dostoievski, um Machado de Assis ou tantos e tantos e tantos outros gênios das letras..
Se não tiver aquela chama interior, indefinível, mas concreta; se não tiver paixão pelo que faz; se não for sincero e verdadeiro, sobretudo consigo mesmo, pode ser até redator de primeiríssima qualidade, jornalista de múltiplos recursos, economista, filósofo, filólogo ou os diabo a quatro de extrema perícia, mas jamais será um escritor.
O leitor contumaz (não me refiro àquele ocasional, que apenas de vez em quando leia um jornal, revista ou livro, mas ao que faz da leitura algo essencial como comer, beber, andar, dormir, respirar...), sabe muito bem fazer essa distinção. Fá-la não com o intelecto (que muitas vezes nos prega peças enormes), mas com a alma, com a sensibilidade e com a emoção.
Arrepia-me toda a vez que um guri, cheio de empáfia, me apresenta seus textos (não raro canhestros e eivados de lugares-comuns) para apreciação, amiúde acompanhados da afirmação “gosto muito de escrever”. Ocorre que o escritor (o que é de fato e de direito) não escreve por gosto (ou não só por ele), mas por necessidade. A escrita, para ele (ou ela, claro) é uma válvula de escape, uma descompressão dos sentidos e da alma, um exercício de exorcismo dos seus demônios interiores. Há muitos que, sequer, gostam de escrever.
“Mas como?!!!”, perguntará, atônito, aquele que tem idéia estereotipada (e por isso equivocada) a propósito dessa atividade. Pois é, a escrita, no fundo, no fundo, não é um prazer, mas uma obrigação que às vezes temos que cumprir para conservar um mínimo de sanidade mental.
Li, há cerca de meio século, uma crônica, da escritora cearense (e esta sempre mereceu, de fato e de direito, esta designação) Rachel de Queiroz, na extinta revista “O Cruzeiro”, em que essa ilustre membro da Academia Brasileira de Letras confessava que “não gostava de escrever”. Isso mesmo, sem tirar e nem pôr. Afirmou que escrevia para se “livrar” de determinados livros que ficavam lhe piscando na cabeça, como um anúncio de néon, até que viessem à luz.
Também sou assim. Escrevo para “livrar-me” dos meus fantasmas, das minhas memórias, das minhas angústias e demônios interiores. E alguém, em sã consciência, sob pena de cair em ridículo e no mais absoluto descrédito ousaria dizer que Rachel não era escritora, e das melhores que nossa literatura já produziu? Claro que não! Nem o mais tolo, alienado e estúpido dos indivíduos teria tamanha ousadia.
Ainda a esse propósito, li, há já algum tempo, o discurso de posse na Academia Paulista de Letras (muito antes de ser eleita, também, para a augusta ABL) da escritora Lygia Fagundes Telles em que ela, em determi8nado trecho, confessava que tinha “medo de escrever”. “Mas como?!!!”, tornará a perguntar o mesmo sujeito atônito que fez o questionamento de dúvida sobre o fato de haver escritor que não goste de escrever (e a maioria dos que conheço me confidenciaram que não gostam mesmo).
Também tenho esse temor. Nos textos, desnudo-me por completo, exponho o que sou e o que penso, mas sempre receoso sobre o que os que me lerem irão achar. Esse, aliás, era o “medo” a que Lygia se referia. Nunca sabemos o destino da palavra escrita, em que mãos nosso texto irá parar e, por conseqüência, o que essa pessoa irá pensar de nós.
Urariano ressaltou dois aspectos do escritor ao qual raramente atentamos, mas presentes em todos eles, variando, apenas, em intensidade: masoquismo e vaidade. No primeiro caso, Vinícius, o querido poetinha, popularizou essa verdade na letra da canção “Eu não existo sem você”, que compôs com o saudoso maestro Antonio Carlos Jobim, o querido Tom.
Em determinado trecho dessa composição, ele diz: “Assim como o oceano só é belo com o luar,/assim como a canção só tem razão se se cantar,/assim como uma nuvem só acontece se chover,/ASSIM COMO O POETA SÓ É GRANDE SE SOFRER....” E não é?! Poeta esbanjando felicidade consegue emplacar sua obra e sensibilizar alguém? Pode até expressá-la, mas apenas para valorizá-la, após deixar que ela escape por entre os dedos.
Agora eu pergunto: alguma escola do mundo é capaz de ensinar essas coisas (exceto a da vida, logicamente)? Quem seria (ou quais seriam) tal mestre? O que o qualificaria a ensinar jovens ingênuos e iludidos a serem escritores? Por que? Afinal, isso sequer é considerado profissão! Pode render prestígio, mas menor, por exemplo, do que o de um jogador de futebol ou o de um ator de novel. Dinheiro? Raramente ganhamos algum que compense o esforço (e os riscos). Alguém ensina isso aos que querem “aprender” a ser escritores? E, ao se diplomarem, se não tiverem o verdadeiro estofo de homens de letras, como serão suas obras? Profundas ou superficiais? Originais ou eivadas de lugares-comuns? Permanentes ou transitórias?
Carlos Drummond de Andrade escreveu, certa vez, em uma das crônicas que publicava regularmente na sua coluna do “Jornal da Tarde”, de São Paulo: “As obras-primas devem ter sido geradas por acaso; a produção voluntária não vai além da mediocridade”. Esses projetos de escritores aprenderiam esta lição dos seus “mestres”? Acreditariam nisso ou poriam em dúvida? Dificilmente. Isso tudo só a sensibilidade, a experiência, a autocrítica e, sobretudo a vida, ensinam. Escola de escritores, ora, ora...

Boa leitura.

O Editor.

5 comentários:

  1. Pedro, a história dos jovens que gostam de escrever ficou incompleta. Ou estou enganada? Quando alguém se torna humorista? Quando a pessoa sabe que é um pintor? E a literatura? Quando quem escreve sabe que é de fato um escritor? Acredito ser possível o aprimoramento, mas não o aprendizado. Você já escreveu isso e concordo com você: há quem escreva com técnica tão formal, com uma correção tão extrema, mas com os dedos duros no teclado, espancando-os de tal forma, que acaba por produzir um texto rigido que não empolga. Outros são envolventes, febris, hipnotizadores. Drummond devia estar certo quando escreveu que alguém apaixonado que tenha escrito um poema por desilusão amorosa jamais foi poeta.

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  2. "Aprender a escrever é antes de tudo aprender a pensar" (Clarice Linspector).
    Num país onde todos são iguais perante a lei... A decepção é grande! O importante é a competência, o talento de cada um. Relendo o Caderno "C", do Jornal do Commercio, de 01/10/1991 - "Paixão entre Imortais", Marcelo Pereira entrevista Ariano e Rachel de Queiroz e pergunta ao primeiro sobre os escritores. Ariano responde: "Eu não gosto dessa raça de escritores..." Estranho nordestinos como a escritora Rachel de Queiroz, ou o Ariano Suassuna, dizerem: "Prefiro cozinhar", "Prefiro criar cabras"! Por que não disseram isto quando entraram na arte de escrever? Ela, com o seu "O Quinze" e, ele, com o "Auto da Compadecida"?

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  3. Mara, de fato, você tem razão. O texto ficou demasiadamente extenso e tive que cortar bastante. Ainda assim, ficou maior do que eu pretendia. Fracassei em dizer muito com poucas palavras. Mas o assunto é fascinante. Entendo que o escritor nunca terá certeza de que o seja de fato, embora, pelos resultados, "desconfie". Outra coisa que quero deixar claro: em momento algum disse que o estudo não é importante. Apenas ressaltei a impossibilidade de haver uma "escola de escritores". Quanto à sua observação, José Calvino, até entendo a postura tanto de Rachel quanto de Ariano. Escrever dá um trabalhão dos diabos, principalmente a parte que vem depóis, ou seja, a revisão e edição. Via de regra, metade (às vezes até mais) do que se escreveu originalmente, revela-se supérfluo, e portanto, "descartável". No mundo, são publicados, em média, em torno de 52 milhões de livros por ano. Quantos, todavia, caem no agrado dos leitores? Poucos, pouquíssimos. Quando muito, duas dezenas e olhe lá. Muitas pessoas julgam-se escritoras. Poucas, contudo, o são de fato. E quem não é e pensa que é, fatalmente sofre decepções mil e termina a vida frustrado, julgando-se "injustiçado" pelo mundo.

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  4. Pedro, a tua generosidade criou um comentário em forma de um novo texto. Grato.
    Você tem absoluta razão ao enfatizar que "em momento algum disse que o estudo não é importante". Como un escritor estuda! Lendo, interpretando, pesquisando, brigando com o mundo, com a família, com a mulher amada, "queimando todos os seus navios". Os livros para ele estão no mundo, e nem todos estão impressos.
    Forte abraço.

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  5. Pedro, esqueci de lhe falar: por causa de um texto seu, comprei a biografia de García Márquez. Para o meu bolso, foi caro, 100 reais. Mas pelo prazer que tenho tido com a sua leitura, como ficou barato, Pedro.
    Recomendo o livro que você recomendou: "Gabriel García Márquez - Uma vida", de Gerald Martin.
    É um tijolaço de 814 páginas, mais leve que uma pluma.

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