terça-feira, 18 de maio de 2010




A desimportância dos tesouros

* Por Risomar Fasanaro

Cigarras franzem a hora
Libélulas pensam dálias...
(Manoel de Barros)

Já estava com minha crônica pronta quando vi a notícia pela tevê: “incêndio destrói acervo de cobras do Butantã”. Levantei voando da cama, e enquanto preparava o café da manhã, ouvia as notícias pelo rádio:

O incêndio destruíra o maior acervo científico de cobras do mundo. Uma coleção que se iniciara havia 120 anos, composto, segundo o jornal “O Estado de S.Paulo”, de 85 mil cobras, 450 mil aranhas e escorpiões. Uma tragédia.

E enquanto ouvia aquelas notícias me pus a relembrar: eu era criança no Recife quando vi pela primeira vez uma foto do Instituo Butantã, em um livro de Geografia que havia em nossa casa.

Muito antes sequer de se cogitar a transferência do meu pai para São Paulo, eu pensava: quando crescer, um dia vou a SP conhecer o Instituto Butantã.

Por que eu me interessava tanto por aquele instituto? Não sei. Talvez porque eu gostasse de brincar com gafanhotos, joaninhas, formigas, vaga-lumes, lagartas. Sabia até um jeito de pegar nessas últimas sem me queimar. Sim, para que as lagartas não nos queimem é preciso apanhá-las pelo dorso, prendendo os pêlos com a mão. O que queima é a “barriga”, e isso as crianças aprendem logo cedo.

Porém o que mais me chamava a atenção era o local com muitas árvores onde fica aquele Instituto. Por isso, o primeiro passeio que fizemos quando aqui chegamos foi àquele instituto.

Essas lembranças tão doces me trouxeram duas reflexões: quando um patrimônio público é agredido, é destruído, aqueles que têm consciência da verdadeira cidadania sentem como se sua casa, como se seu corpo fosse atingido.

O Instituto está lá, poucas vezes voltei àquele lugar, mas sinto que é meu. Assim como sinto que toda biblioteca pública é minha, todo museu é meu. Basta que eu tome uma condução, vá até um deles e usufrua o que tem a me oferecer.

Foi pensando nisso que me desfiz de 80% dos meus livros, porque tenho a esperança de poder utilizá-los sempre que quiser lê-los ou relê-los. Serei uma sonhadora por ainda acreditar que o patrimônio público pertence a todos?

Quando houve aquele incêndio no MAM do Rio de Janeiro senti a mesma dor que hoje sinto pelo Instituto Butantã. Lamentei a perda de parte do acervo que ali havia. Outros substituíram? Não. Jamais. Tenho consciência de que nada substitui nada, ninguém substitui ninguém, como alguém disse em um texto que li recentemente.

São apenas cobras, escorpiões, aranhas, muitos dirão. E mesmo sem ter o conhecimento dos cientistas entrevistados, concordo com eles: as cobras que hoje forem coletadas não serão as mesmas que para lá foram levadas há 120 anos. Nem as aranhas, nem os escorpiões. Não terão a história que aqueles tiveram.

Cortou-me o coração ver as imagens dos funcionários que choravam enquanto recolhiam os animais que restavam, protegendo-os com carinho como se fossem crianças que estivessem sob seus cuidados.

“Mas aqueles são animais repugnantes”, dirão alguns. Talvez, mas quantas pessoas foram salvas por este mundo afora por esses “insignificantes e repugnantes” animais?

Hoje pleno domingo de sol, a cidade de SP está em ebulição com a “Virada Cultural”. Milhares de reais foram gastos, mas não se deu ao Instituto Butantã a segurança que ele precisa e merece. Acho válido que se gaste com cultura. Mas que se gaste não com eventos que acontecem e passam. Que se gaste com um projeto de política cultural, e nisso se deveria dar prioridade à segurança dos museus, dos prédios históricos, das reservas ecológicas, e principalmente que se valorize aqueles que trabalham nesses locais, “tirando leite das pedras”.

Que enfim, se tenha um outro olhar e se destine mais verbas para a ciência, para a educação, para a cultura, para arte.

Os políticos passam sem que sequer lhes guardemos os nomes, mas esses patrimônios, e o que neles os homens produziram, produzem resistem aos séculos, são o bem mais precioso que a humanidade possui.

Mas que estou eu reivindicando? Eu que vi centenas de pessoas desabrigadas, feridas, morrendo despencadas dos barrancos em Niterói, em São Luís do Paraitinga... Eu que vejo tantos moradores de rua, tantos garotos fumando crack espalhados na praça em frente à Estação Ferroviária Júlio Prestes??? Por Deus!!!

Hoje fiquei a tarde toda lendo Manoel de Barros. O poeta que entende a grandeza das rãs, das aranhas, dos gafanhotos... Só sua Poesia conseguiu aquietar minha alma.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

6 comentários:

  1. Imagino o que sentes Riso. Adorava
    insetos quando criança, porém hoje em
    dia os quero distante de mim. Mas reconheço
    a importância dos estudos e pesquisas do instituto. Morei no mato e já vi muita criança picada por cobras e outros bichos peçonhentos.
    Infelizmente só lembramos disso, quando dói
    em nós mesmos.
    Parabéns.
    Beijos

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  2. É raro ver uma pessoa assim, Risomar, com consciência da importãncia das coisas. Gostei da crônica como sempre muito bem elaborada e também do tema. Parabéns e beijos!

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  3. Grande, Risomar. O Literário hoje está bom e mais que bom. De fio a pavio, e você pondo fogo.
    Muito obrigado por sua gentileza ao me enviar a lembrança de Lima Barreto.
    Abraço fraterno.

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  4. Meus amigos queridos, muito obrigada pelas palavras carinhosas. A gente que gosta de escrever precisa sempre desse alimento.
    Urariano: ver qualquer obra, qualquer texto de ou sobre Lima Barreto me remete imediatamente a duas pessoas muito queridas: você e João Antônio.
    Beijos

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  5. Também senti que a perda de todos era uma perda minha. Como você, passei boa parte da juventude colecionando bichos. Enfim, a natureza é "irretornavel". Pouco caso com o que é nosso nos traz desfechos como este.

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  6. Uma cidadã exercendo com grandeza seu direito de expressão.Foi o que li aqui, Risomar. Você merece descansar em Manoel de Barros, o encantador poeta dos bichos e das coisas simples da vida. Beijos e parabéns!

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