quarta-feira, 19 de maio de 2010




A dama descalça

* Por Mara Narciso

Quatro horas da manhã, e o canto do galo já encontra dona Joanna Cherubinna assoprando os gravetos, enchendo os pulmões de ar, acendendo o fogo para o café. O mugido das vacas aponta o rumo do curral, onde seu filho, fazendo as vezes de vaqueiro, tira o leite, que colocará no latão e o deixará à beira da estrada para o caminhão levar. Mal termina com o leite, o filho mais moço, e o único que mora com ela, monta na sua moto e vai para cidade, a 20 km, para o trabalho no escritório e a faculdade à noite.

As tarefas da roça são intermináveis para uma viúva sozinha, mas entre uma corrida e outra, encontra tempo para cheirar o rapé, que deixa no rosto de pele curtida pela dupla sol e tempo, um rastro escuro, que acusa o vício, acima da boca e abaixo do nariz. São muitas cheiradas do pó preto por dia, seu único lazer. A pele clara, de tanto sol no roçado, está morena, batidinha como chão de argila estorricada em dia de seca. Os cabelos alourados e longos, com muitos fios brancos, são maltratados, e os olhos azuis de outrora trazem em volta da íris um halo cinzento que enfeia essa cara de sertaneja rija, que já foi bonita um dia.

Joanna Cherubinna sabe que as tarefas intermináveis e pesadas são quase todas suas. O empregado que a ajuda, pouco resolve. A filharada de cinco meninos está longe. Duas filhas são médicas em São Paulo. Os outros dois também não querem saber da vida dura na roça. Apenas o seu filho caçula faz essa concessão, mas deixa claro que será por tempo limitado, pois quando terminar a faculdade vai morar na cidade e não voltará.

A mulher limpa a casa, lava roupas, faz comida, trata a criação de galinhas, patos, marrecos, e porcos, cuida da horta, planta feijão, colhe café. O marido morreu faz tempo. Os filhos querem que ela deixe essa vida de sacrifícios. Ainda forte, é falante e bem informada, e nos seus 65 anos, nem imagina uma vida diferente da que tem agora.

Pra lá e pra cá, sempre descalça, não consegue usar sapatos. Seus irmãos, quando meninos, andavam descalços, mas quando adultos aceitaram calçar. Ela não conseguiu seguir essa ditadura, pois sempre teve o espaço de uma fazenda inteira para espraiar os pés. Medo de cobra, Joanna Cherubinna tem, mas nem pensa nisso. Faz toda a faina com os pés no chão, atolados no barro ou na poeira. Liberdade é morar onde se gosta, fazendo o que se quer, e ainda mais, com o prazer de sentir na sola dos pés e entre os dedos toda a maciez da terra preta e fértil.

Duas vezes por ano viaja para São Paulo para ver as filhas. Leva o rapé num estojinho, e à parte fartos sobressalentes para não correr riscos. Como ficar sem sua companhia mais desejável, sem seus espirros desopilantes? Os filhos não gostam, mas não reclamam. Também de nada adiantaria, pois ela está acima de qualquer crítica. Leva seus vestidos de caipira, e no sacrifício consegue ficar quase um mês longe da sua fazendinha. Ficar sem ver as vaquinhas, o cafezal, a plantação de milho e feijão, isso não é desconforto algum perto de outra dor que sente ao viajar.

Quando olha pela janela, sentada na sua poltrona, passagem paga, sem luxos, mas em segurança financeira, junto do aperto no coração, pela ansiedade de saber que estará em breve com as filhas, sente de súbito um grande sufoco, porém nos pés. Dentro do avião, com a alma leve e prestes a decolar, acabou de amarrar o cinto e as correias. Num gesto de coragem, fez sua derradeira tarefa antes de voar: fechar as sandálias. Mais uma vez murcha a barriga e segura o fôlego, procurando arrumar uma posição mais confortável, e indiretamente folgar o calçado, para, quem sabe, domesticar seus indomáveis pés.

* Médica endocrinologista em Montes Claros – MG, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a hiperatividade.

5 comentários:

  1. Joanna dos pés descalços e apaixonada
    pela vida. Uma mulher nobre de coração
    gigante.
    Me fez lembrar de uma certa mulher...
    Belo texto Mara.
    Abraços

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  2. Dona Cherubinna, em sua pobreza, talvez seja mais rica e mais feliz que muita rainha da Inglaterra. Sua caixinha de rapé talvez valha mais que todos os tesouros amealhados nas grandes navegações. Muito bom seu texto, Dra. Mara.

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  3. Muito bom, Mara, bela crônica sobre a vida de dona Joana!

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  4. Batizei minha personagem, que é real, com o nome da minha bisavó. Caso tivesse tido uma filha daria esse nome, que acho muito chique. Provavelmente o pai protestaria, mas a sonoridade e a lembrança de anjos, sempre me pareceu interessante.
    Obrigada gente!

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