segunda-feira, 31 de maio de 2010




Agradecimento e retificação sobre Cassiano Nunes em “Poesia de Brasília - duas tendências”

Por José Roberto Almeida Pinto

Caro Pedro Bondaczuk,

com surpresa e satisfação, vi que o “Literário” tratou, em seu editorial de 14 de abril (“Poesia culta e poesia marginal”), de um texto que escrevi muitos anos atrás, como tese de mestrado, intitulado Poesia de Brasília – duas tendências, de 1983, publicado em 2002 pela Editora Thesaurus. A distância no tempo fez-me lembrar outra surpresa do mesmo gênero: o texto só veio a ser editado porque Joanyr de Oliveira o “descobriu”, quase duas décadas depois, e, com seu espírito desprendido, tomou pessoalmente todas as providências para a publicação.

Desde que li o editorial, e na presunção de que é de sua autoria, pensava em enviar-lhe uma mensagem para agradecer seus comentários. Mas a mesma vida, que prega surpresas como as do Joanyr e do senhor, vai pregando outras, que nos obrigam a postergar planos. Além disso, confesso que, sem ser candidato a “poeta marginal” em qualquer dos sentidos que se atribua à expressão, tenho a contradição de admirar profundamente quem se dedica à divulgação da literatura e de me manter, geralmente, à margem (de resto, até onde saiba a geração dos chamados “poetas marginais” notabilizou-se, ao contrário, pela combatividade também no que diz respeito à divulgação...)

Ontem tive uma razão adicional para “sair da toca” e não adiar mais a intenção de escrever-lhe: a leitura de sua crônica de 28 de abril, em “O Escrivinhador”, sobre o poeta Cassiano Nunes, motivada pelo livro Cassiano Nunes: poesia e arte, de Maria de Jesus Evangelista. Essa crônica contém um engano que, se fosse possível, lhe pediria retificar – até porque o equívoco registra um suposto desacordo, absolutamente inexistente, entre a sua opinião e a minha. Explico-me.

Para começar, registro que, se o senhor é, como presumo, o autor do editorial que trata de Poesia de Brasília – duas tendências, estamos ambos de pleno acordo em enxergar com prudência, senão com desconfiança, quaisquer “classificações” de poemas, assim como estamos de pleno acordo em reconhecer a utilidade de determinadas classificações “para efeito de estudo”.

O que está por trás de nossa desconfiança é certamente que, conforme a leitura que se faça das classificações, elas podem tender a diminuir o alcance de uma obra, colocá-la artificialmente numa fôrma (com circunflexo...) e, portanto, servir mais para obscurecer seu estudo do que iluminá-lo. Temo que citar Max Weber nesse contexto possa parecer pedante, mas creio que a utilidade das classificações deriva de sua leitura como “tipos puros” ou “tipos ideais”, para tomar de empréstimo as conhecidas expressões de Weber. Na interpretação que julgo pertinente e proveitoso lembrar aqui, o “tipo ideal” de Weber constitui um “deliberado exagero da essência do fenômeno”, um “instrumento de compreensão”, que lança o foco sobre “o típico, o essencial”. Ou seja: os tipos ideais oferecem parâmetros com base nos quais se analisam as formas (sem circunflexo...) que, na realidade concreta, deles se avizinham ou distanciam, as formas mescladas, as formas de transição de um tipo a outro.

Acredito então que, ao vermos com prudência certas classificações empregadas nos estudos de literatura, mas admitirmos ao mesmo tempo sua utilidade, as estamos interpretando não como camisas-de-força, e sim como tipos-ideais. Raymond Aron observa que existe uma “tendência ao tipo-ideal” em “todos os conceitos usados nas ciências da cultura”. Parece-me que os conceitos usados na análise literária se encaixam nesse perfil.

Tenho a pretensão de entender que o editorial sobre Poesia de Brasília – duas tendências avaliou dessa maneira positiva (mais como “tipos ideais” do que como fôrmas) os conceitos de “poesia culta” e “poesia marginal” utilizados no texto, independentemente dos reparos que ambas as designações possam merecer, e efetivamente merecem. Fiquei particularmente satisfeito de constatar a acertada observação do editorial de que a divisão em “poesia culta” e “poesia marginal” não implica, no livro, juízo de valor sobre os poemas. É uma classificação, por assim dizer, “técnica”.

As duas categorias foram construídas a partir de quatro características dos poemas examinados: a linguagem, a temática, a posição que refletem em relação ao patrimônio cultural, e a concepção que transmitem do papel da poesia e do poeta. A “poesia culta” caracteriza-se pela preocupação com a elaboração da linguagem, que se traduz de diversas maneiras, entre as quais a variedade nas estruturas dos poemas e a constância no uso das figuras de retórica da área da metáfora; a universalidade dos temas; a inserção na tradição cultural e literária da humanidade, não com o sentido de contestá-la, mas com o ânimo de desenvolvê-la e renová-la; e a percepção do exercício da poesia como meio de realização ou aperfeiçoamento interno e externo. A “poesia marginal” destaca-se pelo coloquialismo da linguagem e, entre as figuras de retórica, pela ironia e os processos de repetição; no plano temático, ressalta a momentaneidade e as anotações rápidas de fatos circunstanciais, muitas vezes voltadas para incisiva crítica de comportamentos sociais e da situação política então prevalecente no país; vê de forma iconoclasta a tradição cultural; e desmistifica a poesia, o poeta e a própria “luta literária”.

Retomei esses pontos como moldura, que me pareceu conveniente, para desfazer o engano que figura na crônica de “O Escrivinhador” e sublinhar nosso total acordo com relação ao poeta Cassiano Nunes – ou, para ser mais preciso, com relação à inclusão de seus poemas vinculáveis a Brasília na categoria da “poesia culta”. Nunca é demais a ressalva de que essa categoria foi construída para “fins de estudo” de poemas que se poderiam julgar pertencentes à produção literária de Brasília num determinado período (até 1983) e não pretendeu, de modo algum, esgotar a riqueza de obras de autores diferentes, nem retirar de cada qual sua dimensão própria (“particular e intransferível”, como a noite de Anderson Braga Horta...)

Feita a ressalva, não há dúvida de que, nos termos da classificação proposta, os poemas de Cassiano Nunes, constantes dos livros Jornada e Madrugada, se filiam à “poesia culta”. Assim foram classificados em Poesia de Brasília – duas tendências, conforme os quatro critérios adotados. Bastam alguns exemplos para comprovar a filiação:

(1) a elaboração da linguagem, com rimas surpreendentes e figuras da área da metáfora

“Sonho rubro da infância
que em cinzas se desfaz!
Na avenida do Harlem
meus olhos choram jazz”.

(JOR)

“O sexo acendeu como um fósforo”

(MAD)

(2) a ênfase na temática universal da solidão

“Que quero? Que espero?
É capricho? Vício?
Não.
É a solidão
e o seu exercício”

(JOR)

“Tão acessíveis suas carnes claras,
tão disponível
o frescor de sua juventude!
Partem desajeitados
Com a recusa amável.
De novo, a solidão".

(MAD)

(3) a inserção na tradição cultural e literária, por referência explícita ou implícita (no segundo caso, a Drummond)

“O carinho mais quente
na promessa da cor
e que Camões chamava
a ‘pretidão do amor’”

(JOR)

“Chega um instante
em que, no amor,
não se procura mais pessoas”

(JOR)

(4) a percepção do papel da poesia e do poeta

“Afortunadamente
a Poesia surgiu
e transfigurou tudo”.

(MAD)

“O poeta é um estóico
de forma muito natural”.

(JOR)

Como informa, corretamente, o editorial de “Literário” de 14 de abril, Cassiano Nunes é um dos quatro autores cujos poemas analisei, em Poesia de Brasília – duas tendências, como representativos da “poesia culta”, juntamente com Anderson Braga Horta, Marly de Oliveira e Domingos Carvalho da Silva.

No entanto, a crônica de “O Escrevinhador” de 28 de abril último afirma, por equívoco, que:

“J. R. de Almeida Pinto destaca-o (Cassiano Nunes) em sua Poesia de Brasília – duas tendências... O que eu não esperava é que fosse classificado entre os quatro poetas que, no seu entender, simbolizam a ‘poesia de rua’, ou seja, a dos que não se preocupam com regras, definidos pelo autor como ‘marginais’ (reitero, sem nenhuma conotação pejorativa) ... É mero critério de avaliação de J.R. de Almeida Pinto. Eu, contudo, não classificaria esse emérito mestre das letras dessa forma, diante da vasta amostragem que tenho diante de mim de sua preciosa produção. Acho-o culto, cultíssimo”.

Peço-lhe, assim, que examine a possibilidade de retificar o engano de “O Escrevinhador”. Em Poesia de Brasília – duas tendências, os poemas de Cassiano Nunes são claramente incluídos na “poesia culta”, e não na “poesia marginal”. Acresce que tampouco usei, no livro, a expressão “poesia de rua”, nem considerei que a “poesia marginal” se definiria por “não se preocupar com regras”. Uma observação dessa natureza pode dar margem a outro equívoco, ou seja, o de se presumir que, por contraste, meu estudo sustentaria que a “poesia culta” se “preocuparia com regras”. Não disse nem uma coisa nem a outra. Utilizei, no texto, apenas os quatro critérios acima recordados.

Talvez o engano se tenha devido ao fato de que, num dos capítulos finais do livro, intitulado “Convergências”, são mencionados versos de Cassiano Nunes nos quais despontam características “típicas” da “poesia marginal”. Mas o objetivo desse capítulo era exatamente o de ressaltar que, “embora de forma esporádica, traços da poesia culta se encontram na poesia marginal e vice-versa”. Nele utilizei exemplos não só de Cassiano Nunes, mas também de todos os demais autores examinados no livro. Recorro de novo a Weber: o fato de tipos ideais não se encontrarem em casos históricos em forma pura “não é uma objeção válida a buscar-se sua formulação conceitual do modo mais aguçado possível”. Segundo Aron, a circunstância de que “na realidade, elementos pertencentes a diferentes tipos se combinem não contradiz a filosofia de Weber”. Ao contrário, é justamente “porque a realidade é confusa que nos devemos aproximar dela com idéias claras”. Será que o capítulo sobre as “convergências”, ao se aproximar da “realidade confusa”, acabou gerando confusão?...

Apreciei muito o espírito “não polemista” que, na mesma crônica de “O Escrevinhador”, o senhor indicou movê-lo em sua atuação literária, ou seja, alguém voltado para comentar textos de que gosta, e não para “tentar destruir o que os outros fazem”. Aqui no meu canto, à margem, acho que os polemistas e críticos também têm seu lugar, mas é ótimo ver em atividade pessoas com seu ânimo. Por favor, não interprete esta mensagem como polêmica. O fato é que estamos de inteiro acordo nos dois pontos fundamentais: (1) as classificações em literatura devem ser contempladas com prudência ou desconfiança, mas podem ser úteis para fins de estudo; e (2), entre as categorias de “poesia culta” e “poesia marginal”, tal como definidas a partir de certas características dos textos, os poemas de Cassiano Nunes devem ser inseridos, sem hesitação, na “poesia culta”.

Muito obrigado, não só pela atenção concedida ao livro, mas também por seu generoso comentário sobre meu poema “Remorso”.

Com o abraço amigo do
José Roberto de Almeida Pinto

PS: Caso o senhor se disponha a proceder à retificação que lhe solicito e prefira, para tanto, reproduzir a mensagem acima, autorizo-o, desde logo, a fazê-lo. Nesta hipótese, só lhe pediria que a reproduzisse na íntegra.
PS2: Candidato a poeta bissexto, não escrevi muito, mas, se o senhor tiver interesse, posso enviar-lhe um ou outro texto de que gosto mais do que “Remorso”, aproveitando que sua amabilidade já me fez sair da costumeira toca.
PS3: Envio cópia deste e-mail a outro endereço eletrônico meu, para certificar-me de que seguiu corretamente. Novo abraço, José Roberto.

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