sábado, 17 de abril de 2010




Rio: a falta dos "profetas da ecologia"

* Por Leonardo Boff

Entre os dias 5-8 de abril do corrente ano, o Estado do Rio de Janeiro (a cidade e outras vizinhas, especialmente Niterói) conheceram a maior enchente histórica dos últimos 48 anos. Houve grandes alagamentos nas principais ruas, deslizamentos de encostas, subida de um metro e meio das águas da Lagoa Rodrigo de Freitas provocada, em parte, pela elevação da maré que impediu o desaguar das águas pluviais. O mais terrível foi a morte de centenas de pessoas, soterradas por toneladas de terra, árvores, pedras e lixo.

Entre outras, três causas parecem as principais causadoras desta tragédia, que, de tempos em tempos, se abate sobre a cidade, encantadora por sua paisagem que combina mar, montanhas e floresta, associada a uma população alegre e acolhedora.

A primeira são as enchentes propriamente ditas, típicas destas áreas sub-tropicais. Mas ocorre um agravante que é o aquecimento global. A tragédia do Rio deve ser analisada no contexto de outras ocorridas no Sul do pais com tufões, prolongadas chuvas com enormes deslizamentos e centenas de vítimas e da cidade de São Paulo que durante mais de um mês seguido sofreu enchentes que deixaram bairros inteiros ininterruptamente debaixo de águas. Analistas apontaram mudanças nos ciclos hidrológicos causadas pelo aquecimento das águas do Atlântico, como vem ocorrendo no Pacífico. Este quadro tende a se repetir com mais frequência e até com mais intensidade à medida que o aquecimento global se agravar.

A tragédia climática trouxe à luz a tragédia social vivida pelas populações carentes. Esta é a segunda causa. Há mais de 500 favelas (comunidades pobres), dependuradas nas encostas das montanhas que serpenteiam a cidade. Elas não são culpadas pelos deslizamentos, como apontava o governador. Elas moram nestas regiões de risco porque, simplesmente, não têm para onde ir. Há uma notória insensibilidade geral pelos pobres, fruto do elitismo de nossa tradição colonial e escravagista. O Estado não foi montado para atender toda a população, mas principalmente as classes já beneficiadas. Nunca houve uma política pública consistente que inserisse as favelas como parte da cidade e por isso as urbanizasse, garantindo-lhes habitação segura, infra-estrutura de esgoto, água e luz e, não em último lugar, transporte. Sempre houve políticas pobres para os pobres que são as grandes maiorias da população e políticas ricas para os ricos. A consequência deste descaso se revela nos desastres que vitimam centenas de pessoas.

A terceira causa é a que eu chamaria de a falta de "profetas da ecologia". Observando-se ruas e avenidas inundadas, viam-se boiando por sobre as águas, todo tipo de lixo, sacos cheios de rejeitos, garrafas plásticas, caixotes e até sofás e armários. Quer dizer, a população não incorporou uma atitude ecológica mínima de cuidar do lixo que produz. Esse lixo entupiu os bueiros e outros sugadouros de águas pluviais, o que provocou a subida repentina das águas torrenciais e seu lento escoamento.

Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, nos oferece um belo exemplo. Sob a orientação de um irmão marista, Antônio Cecchin, que há anos vem trabalhando nos meios pobres em volta da cidade, organizou centenas de catadores de lixo. Fez levantar cerca de vinte grandes galpões, perto do centro, na ponta da Ilha Grande dos Marinheiros, onde o lixo é selecionado, limpado e vendido a diferentes fábricas que o re-utilizam.

Conscientizou os catadores de que com seu trabalho estão ajudando a manter a cidade limpa para que seja um lugar em que se possa viver com alegria. Orgulhosamente os catadores escreveram atrás de cada carrinho, em grandes letras, o seu título de dignidade:"Profetas da Ecologia".

Assumiram como ideal as palavras de um de nossos maiores ecologistas, José Lutzenberger:"Um só catador faz mais pelo meio-ambiente no Brasil do que o próprio ministro do meio-ambiente". Se existissem estes "profetas da ecologia" no Estado do Rio de Janeiro, as enchentes seriam menos avassaladoras e centenas de vidas seriam poupadas.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Nossa ressurreição na morte”, Vozes 2007, entre outros tantos livros

3 comentários:

  1. É fácil colocar a culpa naqueles que moram
    nas encostas dos morros, apontar outros que
    constroem na beira dos rios.
    Omissão é crime.
    Educar, trabalhar seriamente em projetos que
    protejam a população é viável sim, mas precisamos
    também cobrar e deixarmos de ser fantoches nas
    mãos dos representantes do Estado.
    Que falam bonito, mas pouco fazem.
    Abraços

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  2. Lições da tragédia

    Politização e sensacionalismo contaminaram as análises sobre os desastres provocados pelas chuvas no Sudeste.
    Caso São Paulo não fosse governado por José Serra, haveria um escândalo perante o despreparo material da Defesa Civil e dos Corpos de Bombeiros no atendimento imediato às vítimas. Não se trata de incompetência das corporações, mas de negligência administrativa: as cidades ribeirinhas do Estado estavam e continuam entregues às próprias sortes. Também seria a última vez que esses governantes descarados escapariam de fornecer satisfações sobre as fortunas incalculáveis empenhadas nas obras das marginais paulistanas.
    As autoridades fluminenses são historicamente omissas na questão das moradias irregulares. Elas preferem assistir ao martírio dos desvalidos a agir com o rigor da legalidade, politicamente desgastante. É óbvio que as famílias alojadas em situação periclitante precisam ser removidas. Como sugerir pretexto “social” para manter seres humanos pendurados em precipícios, à mercê de temporais?
    A sociedade precisa reagir à hipocrisia surpresa dos governantes. Ninguém esperava que aqueles casebres de papelão, montados nas enlameadas encostas de morros íngremes, fossem obedecer à lei rudimentar da gravidade? O que as oligarquias conservadoras que dominam São Paulo há quase três décadas fizeram para prevenir o alagamento das ruas da capital, salvo reclamar da atmosfera?
    Não se iludam: no ano que vem, as chuvas voltarão. E as verdadeiras responsabilidades passarão incólumes, novamente, até nova mortandade.

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  3. Caro Guilherme, é uma honr para nós, do Literário, contarmos com sua presença aqui, no Literário. Junte-se a nós. Concordo com seu comentário, evidentemente. Um grande abraço.

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