domingo, 18 de abril de 2010


O impulso – inflexões sobre a criação

* Por Luiz Carlos Monteiro

O escritor uruguaio Victor Sosa desenvolve várias inclinações e realizações intelectuais no âmbito da escrita, como a poesia, a crítica literária e de artes plásticas, o ensaio e a tradução. É também pintor, tendo realizado exposições individuais na América Latina e na Europa. O seu livro O Impulso – Inflexões Sobre a Criação, foi traduzido para o português por Maria da Paz Ribeiro Dantas, escritora conhecida principalmente por seus estudos sobre Joaquim Cardozo.

Publicado pela primeira vez em 2001 pela Editorial Práxis, no México (onde o autor vive desde 1983, tendo se naturalizado mexicano posteriormente), O Impulso explicita a formação francesa de Victor Sosa e suas preferências pela fenomenologia e a filosofia da vida atenta bergsoniana, pelo surrealismo bretoniano e pelo modernismo elastecido em neobarroco e concretismo, pelas vanguardas que se propuseram a ser, a seu tempo e circunstância, de algum modo inovadoras. Nada escapa ao olhar barthesiano que busca a escritura como ludismo e produto poético, a alegria inescapável do circo e o efetivo alcance das formas que permearam o século 20 e se imiscuem por este novo.

No campo da poesia, no Brasil o poeta Cláudio Daniel verteu do espanhol uma boa quantidade de poemas seus, onde está incluso Dizer é Abissínia (1991), poema longo que estabelece uma clara referência ao último Rimbaud, àquele que emudeceu para a poesia nos seus tempos de aventura e comércio em terras africanas. Victor Sosa traduziu João Cabral de Melo Neto, sob o título Poesia y Composición, em 1999, resultando numa publicação mexicana da Universidad Iberoamericana. A sua tradução do Farwell de Drummond permanece inédita.

Logo nas primeiras páginas de O Impulso, percebe-se a presença de Bachelard em passagens que falam sobre a metáfora do caracol, comparando-o ao autor que sai de seu invólucro para o delírio inicial da escritura. Uma dialética bachelardiana das “imagens como acontecimentos súbitos da vida” revela uma fenomenologia pulsante da concha e do espaço, da casa e do universo, do ínfimo e do infindo. E ainda o desempenho borgeano que sinaliza para a tentativa de esgotamento da narração descritiva do objeto sob observação e dissecação analíticas, da abordagem incessante de detalhes, contrações, dilatações e atomizações que dão forma e visibilidade a esse objeto.

O Impulso se perfaz entre a objetividade das reflexões sobre o ato de escrever e a prosa subjetiva em que isto se realiza, reunindo o vulgar e o transcendente, o reflexivo e o superficial. Em Victor Sosa, nada é recusado e tudo inclui a possibilidade de funcionar como influxo motivador para a escrita. No seu livro encontram-se textos sobre a caneta e sua (in)utilidade para a escritura e as mãos, a febre e os calafrios que a acompanham, a sujeira do corpo, a gripe que nocauteia o ser e o esforço para deixar de fumar.

Um telefonema anônimo que passa a ser diariamente ansiado, onde o “encanto dura na iminência da chamada”. É uma espera para escutar o silêncio, a dupla expectativa de alguém que está do outro lado da linha e não fala, de quem se sente inclinado a fruir esta presença muda, distante e paradoxalmente ausente, que seduz e vicia, exaspera e contenta: “Decepciono-me quando ergo o fone e, em vez do cálido silêncio, irrompe, pedestre a voz de um amigo e, pior ainda, de algum departamento institucional. Só desejo receber o negro e desnudo silêncio que se segue à chamada. (...) Patologia do encantamento – esperar junto ao telefone um único chamado silencioso. Ansiar por esse momento para justificar o dia, justificar minha desordenada presença na casa.”

A luta travada em “Sonho com o Tigre” – expressão que poderia, também, servir como título ao texto, cuja característica visível e inicial é o fato de não ter necessidade alguma de vir titulado ou classificado – é definidora para ambos, homem e tigre, materializando-se do sonho para a narrativa, do etéreo e dissoluto para a consistência de uma forma e uma significação: “Ganhei o terreno, ganhei nesse significativo sonho – como todos os sonhos – o terreno do homem e, de alguma e de várias maneiras, o terreno do tigre. Fui tigre como o tigre refletido em meus olhos; e o tigre – pressinto-o – foi, por um instante, humano em seu furor”.

Não faltam referências a Kafka, como quando este questiona a valoração da escrita pelo poeta em favor de si mesmo. Por sua vez, Sosa analisa de passagem a complexidade do pensamento e da escrita kafkiana. Ao mesmo tempo em que lê e absorve os ditos kafkianos, rejeita-os no sentido epigônico ou imitativo de um estilo: “Afinal, o que peço ao Diário de Kafka? Que imaginária revelação busco inutilmente ali? Contudo, essas palavras podem servir de guia, de bússola para minha escrita pessoal. É um deter-se a mirar – mas sem admirar –, somente para tomar alento, voltar a dar o passo necessário ao encadeamento da marcha, o ritmo, o impulso da escrita, para que esta retome seu curso”. Fica, assim, patente, na estrutura de O Impulso, as numerosas reflexões sem data, contudo situadas e encadeadas aos acontecimentos de uma época, passando a se mostrar reconhecíveis em sua eficácia de textos que mantêm a necessária autonomia e descartam a excessiva dependência em relação aos níveis ideológico e estético.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

2 comentários:

  1. Linguagem culta e pedante a qual tão bem sabem usar os críticos literários. Quase larguei da leitura, mas decidi ir mais devagar para tentar entender e tive de me curvar a explicação sobre o caso da espera pelo telefonema mudo. Como são estranhas as nossas mentes. Bravo!

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  2. Mara, crítica não é crônica nem texto de auto-ajuda. Exige uma linguagem que, quer queira quer não, traz algo de especialização. Fazer um lastro histórico para referenciar uma obra e um autor não é pedantismo. Isto se faz apenas para siituuar o leitor. em determinado contexto. "Linguagem culta" só existe ainda para os gramáticos, neoparnasianos e quejandos. Esse texto foi publicado na revista Continente em 2006, cuja editoria tinha bastante cuidado em evitar o "pedantismo" e o "cultismo". Contudo, muitos leitores não têm interesse em conhecer o que se escreveu sobre obras e autores com um toque analítico e um mínimo de zelo interpretativo. Esta é uma simples resenha que elaborei ao longo da leitura do livro de Victor Sosa, que tem uma carga considerável de subjetividade. Além do mais, a crítica continua tendo o seu séquito de aficionados.
    Abraços,
    Luiz Carlos

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