terça-feira, 27 de abril de 2010




Fugas noturnas

* Por Paulo Valença

1

Calado Mauro deixa-a na varanda e vencendo os degraus à direita chega ao oitão da residência onde se encontra o automóvel. Abre a porta e adentra. Acionando o controle remoto abre o portão largo e ganha a rua, para contornar a praça e desaparecer na rua transversal.

Dulce desvia os olhos, resignada. A vida com suas terríveis surpresas: quem, no passado, quando era jovem, morena-esguia, risonha, graciosa poderia prever a sua existência atual? Gorda. A cabeça grisalha. Pouco falando. Sofrendo o indiferentismo do marido, o Mauro, o rapaz que se mostrava atencioso, simpático... Mas, o quê fazer? Temos de ser realistas. Tudo muda, na metamorfose natural do tempo...
- Tudo nos é negado.

Sim, na velhice, tudo nos é tirado. Bem dizia o seu pai, quando vivo, na cadeira de balanço, naquele terraço da casa, onde sempre contava com a família em volta, ouvindo-o:
- Com o decorrer do tempo o que a gente adquire, vai perdendo: a cor da pele fica amarelada; os dentes são substituídos por a chapa; a visão por os óculos; os cabelos mudam de cor; a memória... Nada nos sobra.

Silenciava durante segundos e concluía:
- Só ficamos com as recordações, quando ficamos, porque há a doença que nos tira a memória!

A família nada comentava, entendendo-o...
- Tanto tempo disso!

“Tanto tempo”... Repete baixinho e, como está na cadeira de balanço, impulsiona o corpo à frente, cadenciando-se.

A noite se adianta. Nas residências muradas que circulam a praça (tão abandonada, deserta) as luzes cintilam, destacando os jardins, os terraços sem os moradores. O vento está mais frio? Da avenida próxima chega-lhe o som dos veículos cruzando-a. Cerra os olhos, sentindo-se de repente cansada, desejando nada mais pensar, fugir de tudo. Tudo...

Tomba o rosto sobre o busto cheio, largo, cochilando.
- Mamãe?

A voz da filha solteirona, sua companheira na velhice, que chega ao terraço. Repete a pergunta, sem querer acreditar, ante a imobilidade da idosa. A palidez. A fisionomia serena... E, devagarzinho, com a vista nublada de lágrimas ela se achega.
- Mamãe responda!

Ante o persistente mutismo, ela então entende e retrocedendo à sala conjugada, liga do celular, para tomar as primeiras providências. Onde está o pai a essa hora? Será que ele levou o celular? Trêmula, suando, disca. E não obtém a ligação.
- Pai não tá com o celular! E agora, Santo PAI?

2

Melhor voltar à casa. A Dulce naquele terraço. A filha presa a TV, com as novelas... Precisa ser mais humano, solidário. Está velho, tem de se adaptar à realidade, então, por que essas fugas noturnas, em busca de quê, aventura amorosa?
- Tou velho pra isso!

Sim, para tudo há a idade. O seu tempo. A nossa vida se constitui de fases, numa seqüência natural da própria existência...
- O senhor deseja mais alguma coisa?

Desperta ante a indagação do rapaz mulato, magro, alto ao lado:
- Quero não, moreno. Tire o “gasto”, por favor.
- Tudo bem.

O garçom retrocede ao balcão, onde solicitará a conta ao gerente. Mauro espera. Para tudo há a idade.
- A idade...

A mulher nova, morena adentrando no estabelecimento senta-se à mesa próxima. Com disfarce, corre os olhos estudando o ambiente e vendo o homem bem-vestido solitário... Por que não? Sorri, no convite. Promessa.

Mauro retribui ao sorriso, de repente sentindo-se outro, afinal, está vivo...
- A conta, doutor.
- Ah sim? Ô rapaz pensei melhor: traga-me outra dose, reforçada. Ainda está cedo...
- Certo, o senhor é quem manda – responde o rapaz, retrocedendo ao balcão.

A morena se ergue e encaminha-se à mesa do homem que aceitou ao seu convite, que caiu ante o seu charme.
- Com licença.
- Tem toda.

Ela decidida puxa a cadeira para trás e sentando-se:
- Tudo bem?
- Está. Tudo bem. Aceita uma dose de uísque?
- Aceito.

O sorriso de covinhas. O rosto de traços corretos. Os olhos negros, grandes. Os cabelos negros, longos. A imagem do pecado.
- O senhor vem sempre aqui?

Mauro sorri:
- É a primeira vez. Estava em casa, chateado... Resolvi dar umas voltinhas, relaxar.
- Sei. Fez bem. Aqui é legal.
- Muito legal!

Sorriem, entendendo-se, na promessa dos prazeres de logo mais. No hábito de pôr a mão no bolso interno do paletó, buscando o celular, então Mauro não o encontra.
- Onde deixei o celular?

A morena sorri:
- Se precisar ligar, tenho o meu aqui na bolsa...
- Tudo bem, tudo bem.

O garçom se avizinha, conduzindo a bandeja e vendo Mauro com a moça reflete. A Graciete “pegou” mais um cliente. Essa menina é fogo! Contudo, assim é a vida, cada um que se vire como puder.
- Faz parte.

Graceja baixinho, sorrindo, compreensivo.
- A bebida, doutor.
- Tá, pode deixar e traga-me outra dose.
- Pois não.

Sob a mesa Mauro sente o roçar da perna macia, na renovação ao convite do pecado.
Mais uma vez o garçom se ausenta, para cumprir com a obrigação de servir, apenas isso.

* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

4 comentários:

  1. Não é a velhice que distorce e corrói um
    relacionamento, é a falta de cumplicidade, o
    não olhar mais nos olhos de seu companheiro.
    Se apenas a beleza o prendia é sinal de não havia amor, só desejo. A nossa sociedade impõe regras tão severas que ao homem cabe a fuga e à
    mulher a resignação.
    Parabéns mais uma vez Paulo.
    Abraços

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  2. Paulo você é um espetáculo de contista, como sempre, trazendo seus deliciosos contos para nós do Literário. Mas para ser sincero, aceitar com paciência as dificuldades da vida, não é fácil! Por coincidência, estou ouvindo agora o Zeca Pagodinho:"Deixa a vida me levar, vida leva eu... rsrs
    Mais uma vez, parabéns!
    Abração do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  3. nubia,
    Essa sua facilidade de expressar o que o texto diz me fascina.
    Sim, você entende as coisas e sabe como enumerá-las e... sensibilizado repito: Obrigado!
    Abraço. Paulo.

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  4. Calvino,
    Você sabe se portar como poeta, historiador e fraternal colega.
    Obrigado!
    Abraços. Paulo.

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